Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças
Ficha técnica: Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, EUA, 2004). Direção: Michel Gondry. Roteiro: Charlie Kaufman, baseado em estória de Charlie Kaufman, Michel Gondry e Pierre Bismuth. Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Elijah Wood, Mark Ruffalo, Tom Wilkinson, Jane Adams, Deirdre O’Connell. Drama / Romance. 108 min. (Cor).
Por André Azenha, jornalista e editor do site www.cinezencultural.com.br
Quem nunca desejou apagar alguém da memória? Seja pra esquecer um grande amor, ou uma pessoa que lhe tenha feito mal? Esse é o tipo de situação que se repete não uma, duas, mas várias vezes durante nossas vidas. Nos apaixonamos, amamos, compartilhamos nosso dia-a-dia, depois a relação se desgasta, não dá certo, acaba, não importa quem rompeu, se foi bilateral, se acabou bem, mal. Mergulhamos em conflitos pessoais. Refletimos, nos arrependemos, e até sentimos raiva. E é nessa hora que, se pudéssemos, “deletaríamos” tudo o que vivemos naqueles últimos tempos, sem parar pra pensar que talvez tenhamos presenciado um aprendizado.
Pois é, esse turbilhão de pensamentos, sentimentos e sensações é normal. Devíamos estar calejados, porém sempre que volta a acontecer, nos flagramos sofrendo tudo novamente, igualzinho. E é simplesmente genial o fato de, Charlie Kaufman, roteirista criativo, autor de textos no mínimo inusitados como os dos filmes “Quero ser John Malkovich” (1999), e “Adaptação” (2002), ambos em parceria com o diretor Spike Jonze, e “Natureza Quase Humana”, dirigido por Michel Gondry (que fez videoclipes da banda inglesa Radiohead), tenha realizado seu trabalho mais original a partir de algo tão batido na vida do ser humano.
“Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, cujo título foi retirado do poema “Eloisa to Abelardé”, de Alexander Pope, que Charlie Kaufman já havia usado em “Quero Ser Johm Malkovich”, é uma pequena obra-prima do século XXI, um trabalho cinematográfico que paquera a ficção científica, mas usa poucos – e eficientes – efeitos visuais, ancorando-se principalmente em seu roteiro inovador (premiado com justiça no Oscar) e um excelente elenco. É um filme tecnicamente simples, mas que atinge profundamente o espectador.
Para dar vida a esse romance contemporâneo, os produtores escolheram um casal nada convencional: Jim Carrey e Kate Winslet.
Ele, provando ser um bom ator dramático (já havia mostrado o potencial em “O Show de Truman”), injustamente ignorado nas premiações, interpreta Joel, sujeito tímido, que, segundo ele mesmo, se apaixona por toda mulher que lhe retribui qualquer tipo de contato.
Ela, em mais uma atuação de encher os olhos, foi indicada ao Oscar (prêmio que só levaria em 2009, por “O Leitor”), ao viver Clementine, garota maluquete, tagarela, temperamental, que troca a cor do cabelo conforme o sentimento da vez.
A escalação da dupla, se podia causar algum tipo de dúvida antes do longa ganhar as salas de projeção, tornou-se um tremendo acerto. Há uma química diferente entre eles, que conseguem transmitir, beirando a perfeição, as qualidades e os defeitos de duas pessoas extremamente diferentes, que ao mesmo tempo se completam. Trata-se de um romance, mas sem a pompa hollywoodiana. São pessoas reais, que poderiam ser nossos vizinhos. E por isso mesmo, há uma identificação entre personagem e platéia. Torcemos por eles.
Mas não são apenas os dois que chamam a atenção. Cada ator tem seu momento. Tom Wilkinson, Mark Ruffalo, Elijah Wood, Kirsten Dunst e o restante do elenco. Todos, sem exceção, protagonizam pelo menos uma grande cena. E não é necessário uma catarse para cada artista revelar seus dotes dramáticos. A entrega de cada ator está embutida em pequenos gestos, olhares, momentos quase silenciosos.
Joe e Clementine namoravam, mas num impulso gerado pelo desgaste da relação, ela procura uma clínica (onde o proprietário é Tom Wilkinson) que apaga as memórias das pessoas. Ao descobrir a ação da amada, Joe decide fazer o mesmo. Só que, durante o processo, se arrepende, e tenta salvar suas lembranças, num conflito que acontece dentro de seu próprio cérebro.
O texto não é linear. É “viajandão”. Exige certa atenção do público. E Gondry soube como dirigir esses instantes sem recorrer a clichês, filmando a cidade em tons quase cinzentos, utilizando o frio para dar ênfase à solidão dos personagens, e alternando sequencias sublimes, como aquela em que Carrey e Winslet deitam sobre um lago congelado, ou nas cenas em que a “memória” de Joe luta, dentro da sua mente, para não ser apagada. Uma história que acredita no destino, porém não dá o seu recado de maneira brega nem didática.
“Brilho Eterno” ainda foi premiado em Edição e Roteiro no BAFTA, Atriz (Kate) e Roteiro pelos Críticos de Londres, e venceu mais 31 prêmios ao redor do mundo. Foi o melhor longa de 2004 (junto com “Menina de Ouro”, vencedor de 4 Oscar no mesmo ano, incluindo Filme e Atriz, para Hillary Swank), e um dos melhores e mais sensíveis desta década.
E mesmo que um dia a tal clínica especializada em apagar as lembranças da pessoas possa existir, eis um filme apaixonante que jamais sairá da memória de quem o assistir. Afinal, quando nos apaixonamos, mesmo que a relação acabe, e nos apaixonemos de novo por outro alguém, não esquecemos, por mais que tentemos acreditar, das paixões passadas.
10,0