PECADOS ÍNTIMOS

Talvez o único grave delito do filme Pecados Íntimos esteja no descabido título que lhe deram na Língua Portuguesa. Little Children, seu nome em inglês seria na tradução literal “Crianças Pequenas”. Reside aí um dos grandes segredos desse longa do fantástico diretor Todd Field. A história em si não é extraordinária, mas a forma sutil que é feita a sua leitura nos remete a uma espécie de Beleza Americana revisitada.

Eis o enredo: Sarah Pierce (Kate Winslet) é uma jovem acadêmica na inatividade, casada com Richard (Gregg Edelman), um viciado em pornografia digital. Sarah deixou a empolgante vida acadêmica para mergulhar de cabeça na tarefa de ser uma dona de casa exemplar. Para isso dedica-se a levar sua filhinha Lucy (Sadie Goldstein) regularmente ao playground do bairro. Brad Adamson (Patrick Wilson) é um formado em Direito, que está tentando (sem louvor) passar no exame da Ordem. Ele é casado com uma bela produtora de documentários, que banca financeiramente a casa. Todos os dias, Brad sai à noite para estudar na Biblioteca, mas acaba se distraindo com alguns adolescentes skatistas. Brad possivelmente sonha ser um deles, ter talvez a mesma idade e não ser o que acabou se transformando: em um marido dependente do bolso da mulher, um profissional abortado, um fracassado, que cresceu de repente. Sua vida tem um leve consolo: todos os dias, leva o filho para balançar no playground do bairro. Brad não balança ali o seu filho, é a criança que ele foi um dia que balança.

A vida do pacato bairro é abalada com a chegada de Ronnie ( interpretado por Jackie Earle Haley), um recém saído da cadeia, condenado por pedofilia. Ronnie é de longe o melhor personagem do filme. Mas não é a única criança pequena da história. Não por acaso o ponto decisivo do filme se passa no playground, pequena versão do paraíso pela ótica infantil. Lá, o mundo de Brad e de Sarah se cruzam. Brad todos os dias está no parquinho. Três típicas donas de casa ficam suspirando, desejando e amando-o no silêncio do anonimato. Elas apelidaram-no de “Rei do baile”. Para elas ele não tem nome é apenas o desejo secreto do trio. Um ser a ser devorado em segredo, em um plano espiritual, longe dos banquetes carnais. Sarah nunca se mistura com as senhoras. Ela sente-se exilada, um ser estranho em seu próprio corpo, de esposa frustrada, de mãe ausente, de bem comportada dona-de-casa. Sarah queria ser dona do mundo, de um mundo povoado por seres diferentes do que era obrigada a engolir sem mastigar.

Quando Sarah se dispõe a descobrir o nome do “Rei do Baile”, ela acaba conseguindo em uma brincadeira mais que isso. Forja um abraço e um beijo, motivo pelo qual foi excomungada da vida das três senhoras. Sarah tocou em um objeto sagrado, profanou carnalmente o que para elas era apenas uma versão que passeia de uma divindade, algo que era para ser venerado, mas ao chegar em casa, não teria grande valia. Brad era para elas um deus a ser adorado apenas no templo, no santo dos santos do playground.

A partir do encontro entre os dois dublês de “donos-de-casa”, a história passa a ser guiada para o plano das execuções. Sarah e Brad, infelizes para sempre em seus casamentos e com a missão de distrair seus rebentos, passam a ser encontrar frequentemente em clubes, parques, e afins. Duas crianças pequenas com seus filhos, brincando de se encontrar, de fantasiar um mundo esquecido em algum lugar bem próximo, deposto das suas vidas por talvez, uma promessa, um eufórico momento de decisão.

Não é preciso ser gênio para concluir que Sarah e Brad acabam brincando de coisas proibidas e cada vez mais sentem-se bem acomodados, abrigados nessa aventura. Quando os dois pombinhos nos concedem uma licença poética, presenciamos a cena mais impressionante do filme, quando o terrível e odiado Ronnie resolve se refrescar em um dia de calor no clube do bairro. Devidamente equipado com aparelhos de mergulho, o pedófilo mergulha na piscina e fica de lá, seguro em seu abrigo, observando as pernas das crianças. Ele era ali um tubarão em uma lagoa de peixinhos. Mas Ronnie não podia se alimentar, era apenas um cão penitente, sem a esperança de qualquer migalha. Quando alguém reconhece o temível pecador, o cube entra em erupção, os pais retiram suas crianças rapidamente (e conferem se está faltando algum pedaço). Ronnie fica excluído, sozinho como uma idéia a ser esquecida, estranho como um tumor em um corpo sadio. Os guardas o retiram da água. Pronto. O monstro estava fora de combate. As crianças podiam pular de volta na piscina e nadarem felizes. Conheçamos Ronnie. Um sujeito cinqüentão, que tem as crianças como bem-aventuradas no mais amplo sentido do verbo amar. Ele mora com sua mãe, uma idosa super protetora, a única a amá-lo e protege-lo contra o ódio de todos os seres que o rodeiam. Ronnie é a criança mais frágil da história.

Como dois adolescentes, Sarah e Brad bolam um plano de fuga. Como dois adolescentes, vêm seus intentos falharem. O desfecho do filme está longe de ser uma lição de moral. Aos conservadores de plantão que respiraram aliviados quando a ordem e os bons costumes foram restabelecidos, um aviso: essa é uma história de crianças pequenas, que não conseguiriam viver longe de casa. Todd Field não quis oferecer um final politicamente correto. Ele foi apenas honesto.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 26/07/2009
Código do texto: T1720028