“Um domingo qualquer” (Any Given Sunday )
“Um domingo qualquer” (Any Given Sunday )
O que se espera quando se adentra num mundo?
Que ele contenha todas as características anunciadas.
Não somos mais camponeses usando enxadas ou rifles, não estamos mais no oceano Índico catando larvas de camarão numa embarcação pré-medieval, ou então estamos assistindo bocejantes as chantagens no/do Senado.
Nada disso. Temos opção.
Durante 165 minutos vamos conviver com várias facetas de um esporte truculento, e concluir que o fruto da arte já não serve apenas como objeto de crítica mas antes como a prancha do desenhista, que ou bem nos ensina como se desenha, ou no mínimo nos convida a descobrir que a encenação nem sempre prescinde dos ingredientes básicos do melodrama para surtir efeito.
Lançado em 1999 e dirigido por Oliver Stone . O mais triste é que numa busca superficial sobre ele, surge apenas: dirigiu “Assassinos por Natureza ”. Qual. Nem de longe seu trabalho mais expressivo.
A turma da publicidade desenvolveu mais de 40 cartazes diferentes para o lançamento do filme. Todos ostentam a trinca Al Pacino, Dennis Quaid e Cameron Diaz. Jamie Foxx estava pertinho do seu futuro brilhante. Hoje os cartazes seriam diferentes. O curioso é que Jamie assina duas músicas e ainda por cima canta.
A dinâmica proposta por Stone nesse filme foi toda embasada no tom mais que orquestrado da câmera em movimento versus câmera parada, sobre o mundo (frente e verso) do futebol americano, um mundo à parte, como todos os mundos.
Grande elenco e atuações dignas dão tanta veracidade ao show que mesmo quem não gosta do esporte acaba se envolvendo e este se torna um item menor. Só mesmo artista em grande estilo banca uma contradição dessas.
Do ladrãozinho de quinta (“Um dia de cão”), ao advogado inconformado (“Justiça para todos”), ao policial melancólico (“Sea of love“), mais os incontáveis, quem viu sabe que Pacino tem uma mágica própria para animar personagens que não teriam essa expressividade, nem em 20 encarnações.
Em “Um domingo...”, cada discurso dele no vestiário, no papel de Tony D'Amato , técnico bom de briga com consciência histórica do que significa esse esporte, remete a ética que usa de palavras coerentes para animar os desanimados e colocar a trincheira de pé.
Por mais que tudo seja movido à grana, se vier com bom palavreado surte melhor efeito. Pelo menos para quem ainda pode ouvir.
Stone diz que foi um processo longo e que envolveu a costura de vários roteiros, onde jogadores e técnicos veteranos providenciaram a informação necessária. Ele mesmo faz uma ponta diminuta como comentarista esportivo.
Cameron Diaz havia acabado de fazer um filme água com açúcar com Julia Roberts. Ali ela era doce, chorava e sorria.
Aqui ela vive a dona do time “Sharks”, de Miami, escrúpulo inexiste no seu dicionário mas tal feito não se vende só com palavras – é preciso ter a fisionomia do inescrupuloso. Ela consegue. James Woods, o médico canalha, vai se redimir com um bom diálogo (coisa que o filme esbanja), mas em termos de canalhice tem muito que aprender com a dona. Matthew Modine , “o médico do bem”, trata da vida real de gente humilde com músculos, sem chance alguma de amealhar um milhão de dólares com trabalho honesto. Precisam se manter de pé, à custa de injeções.
Numa rápida analogia, ao passo que o jogador médio brasileiro ganha 50 mil/mês - sendo o nosso já não tão elegante futebol algo, na minha opinião, infinitamente superior ao futebol deles - pelo menos pra se assistir, “Any Given Sunday ” além de ser colírio para os fãs do gênero, prima pela discussão sem demagogia. A diferença gritante entre os “futebóis”, lá e cá, é que lá o sujeito corre sério risco de voltar com a C4 esmigalhada depois do jogo. Aqui, os velhos e aposentados diretores de clubes contam que no seu tempo, enquanto eles chegavam de Cadillac no clube, os jogadores desciam do bonde. Mudanças...
“Me engana que eu gosto”, eis um dos atributos fundamentais do cinema, designers colocaram a mão na massa para criar o time fictício, com variações do logo, bonés, fantasias, uniformes, brindes, vídeo clipes, etc. Todos os estádios são reais e parece que mais real ainda foi a luta para consegui-los.
Stone não poupa os artifícios do espetáculo de domingo dando tratamento cinematográfico com status de grande cineasta e transmitindo um senso de unidade de: platéia, banco, juizes, torcida organizada, mídia, etc., realmente impressionante. Deixa-se de lado a inclinação pelo jogo frente as forças em ação e seu colorido singular. É a América dos tons acrílicos e plásticos, dos pontos eletrônicos, da fibra de vidro, contrapontos que jogam com a consciência de quem sabe que parte do planeta, grande parte, vive quase tal e qual a era da pedra lascada.
Pacino bate na tecla do senso de honra com a relação à camisa do clube (pensei profundamente nisso em 2006, assistindo a seleção canarinho – aquelas 5 estrelas foram conseguidas na base de muita luta, perder é uma coisa, fazer corpo mole não condiz com a condição de penta campeão). Os Sharks tinham sua história, Pacino tenta incutir um pouco disso, e do senso de trabalho em equipe no arrogante Jamie Foxx. A cena do diálogo entre eles, sobre o rei morto/rei posto, (Dennis Quaid), é entrecortada com cenas de “Ben-Hur”, expostas numa TV sem som na sala de jantar. O velho “Ben-Hur”, com Charlton Heston conduzindo a biga, trucidando oponentes e o público delirando. Essa metáfora só não despenca na pieguice pela intensidade da proposta maior, sem mencionar que o próprio Charlton Heston aparece no filme de Stone, como comissário esportivo.
Futebol - glória, dinheiro e fama. Trata-se de uma disputa. Disputas sempre renderam mais.
Pacino cozinha e tenta explicar para Foxx que a estratégia tem de ser como a vida, ganha-se devagarzinho, polegada por polegada. Foxx retruca que chegou sua hora, que foi injustiçado pela cor da sua pele e não está nem aí para conseqüências. Atletas. Situação diferente dos olímpicos, que tem de ralar 8 horas por dia sem patrocínio. Sua luta é consigo mesmo, grana é pura ficção, vão brilhar numa olimpíada ou duas.
Talvez num domingo.