A Negação do Brasil: O Negro na Telenovela Brasileira - Análise crítica do filme
ANÁLISE CRÍTICA DO FILME
Por: Marcia Santos da Silva
O filme “A negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira”, foi produzido e dirigido por Joel Zito Araújo, doutor em Comunicação pela USP, em 2000. Com o objetivo de lançar um olhar reflexivo sobre a questão da não valorização da multietnicidade, o filme é um documentário que mostra a atuação de atores negros em diversos momentos da telenovela, programa preferido do telespectador brasileiro.
O filme é narrado sob dois ângulos: O da objetividade, onde um primeiro narrador empresta sua voz para apresentar formalmente os fatos, e em outro momento, apresenta uma segunda voz que se insere no contexto subjetivamente, remetendo às vivências de sua infância, quando se dividia entre ver um filme no pequeno cinema de sua cidade ou assistir à “Beto Rockefeller”, novela de sucesso exibida no final da década de 60.
A proposta do documentário é trazer à discussão os papéis representados pelos afro-descendentes, quase sempre subalternizados, inferiorizados em função da pouca visibilidade e quando muito, representando estereótipos de jagunços, feitores, delegados e empregados domésticos.
Baseado nas informações do documentário, o que se vê diariamente nas telenovelas é a hipervalorização da matriz euro-descendente, tida como modelo de beleza estética e superioridade intelectual, em detrimento das matrizes afro e índio-descendentes, já que “os grupos de maior prestígio têm hegemonia cultural e tudo que diverge de suas concepções é desqualificado". (Est. Culturais, 2008).
Em entrevista ao programa Salto (Rede Brasil), Joel Zito afirma que “as pessoas, inconscientemente partilham a visão de que o belo, o culto, o desejável, o ser moderno, o ser Primeiro Mundo, é ser branco”. Arraigado na cultura brasileira, esse estigma é extremamente negativo para que o negro atue em papéis positivos que contribuam para a auto-afirmação da sua imagem.
Os atores entrevistados no filme denotam que têm consciência de que a maioria dos papéis que lhes são destinados nas novelas ratifica o preconceito e perpetua a imagem do negro escravizado e humilhado. A atriz Zezé Mota relata que recusou um trabalho pelo fato de seu papel resumir-se apenas a servir água e café, mesmo correndo o risco de futuramente ter as “portas fechadas” pelo autor e pela Rede Globo. Esses papéis estereotipados são reflexos da disseminação da “ideologia do branqueamento”, que segundo Moritz, “são teorias raciais que deixam de ser modelos científicos, mas não são abolidas. Estão presentes no cotidiano das pessoas, internalizadas e eficientes por serem invisíveis e silenciosas”, passando despercebidas pelos menos politizados e desavisados.
Vale ressaltar que apenas 10% das vagas disponíveis nos elencos das novelas são destinadas aos atores afro-descendentes, o que não atende nem de longe às expectativas do mercado e dos profissionais que estão na luta por reconhecimento, trabalho e dignidade.
A telenovela, diante dos índices de audiência que alcança, tem um papel de extrema importância na formação de opinião do telespectador brasileiro, por isso é grande a sua responsabilidade diante do público. Ao abordar questões importantes e polêmicas, ela conduz o telespectador à reflexão, instigando discussões, direcionando opiniões. Porém, ela se torna nociva quando inculte no imaginário da população, principalmente dos negros, que a matriz étnica euro-descendente é infinitamente superior e esteticamente perfeita, tornando-se um veículo a serviço da propagação da desigualdade, da segregação racial e mostra sua falta de comprometimento com a valorização da identidade e da diversidade do povo brasileiro.
Para alguns telespectadores, especialmente crianças, o que se vê nas telenovelas pode vir a ser danoso, já que pode parecer a representação do real, fazendo com que, segundo Joel Zito “haja a reafirmação de uma vitória simbólica da ideologia do branqueamento”.
“O sítio do pica pau amarelo”, uma espécie de novelinha infantil adaptada de literatura produzida por Monteiro Lobato (1976), exibida até pouco tempo, mostra a dimensão do preconceito e da falta de cuidados com o que é veiculado na programação, especialmente ao que é destinado ao público infanto-juvenil, que está com seu processo identitário em formação. Um trecho de um diálogo entre personagens exemplifica o que queremos dizer:
“Disse Emília à tia Nastácia:
– Cale a boca! [...] Você só entende de cebola, alhos, vinagre e toucinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto fada porque elas não aparecem para gente preta. Eu, se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre sempre que vê uma negra beiçuda [...].”
Conforme vimos, não dá para mensurar o que é pior. Se a fala da “boneca-gente”, ou a interferência contemporizadora e “piedosa” de dona Benta, a seguir:
“– Mais respeito com os velhos, Emília! – advertiu Dona Benta. – Não quero que trate Nastácia desse modo. Todos aqui sabem que ela é preta só por fora [...]”.
Esse tipo de programa povoa os sonhos da infância com suas fantasias, fazendo crer que existe um mundo mágico e perfeito. Nesse “mundo de sonhos” criado por Monteiro Lobato, nós, inconscientemente partilhamos sem perceber o quanto de preconceito ele traz no contexto e a disseminação do “racismo cordial e gentil”.
Num país que tem o maior contingente populacional de negros fora da África (a Diáspora), é preciso que os afro-descendentes se sintam representados em todos os segmentos da sociedade. Um país que nega suas origens e não assume sua diversidade populacional e cultural, denota que ficou perdido no caminho, envolvido por pensamentos retrógrados e eugenistas que atuaram num passado não muito distante.
É necessário haver o entendimento de que “a dominação cultural de um sujeito/grupo sobre o outro (s), provoca o esvaziamento e a fragilização da imagem de um, aquele que é dominado, enquanto o outro, aquele que exerce o domínio, se reafirma positivamente”, (Est. Cult. 2008).
Não se pode esperar, no entanto, que algo mude, se as pessoas que são afetadas pelo problema da intolerância racial não mudarem e assumirem suas identidades perante o mundo. Nos Estados Unidos, as coisas não aconteceram de modo muito diferente daqui. O que diferencia a situação vivida pelos afro-brasileiros e afro-americanos é a maneira de se comportar diante do problema. Segundo Araújo (2000),
“A classe dominante americana também tentou definir, controlar e manter sua influência sobre o grupo subalterno, enquanto o último lutou para criar sua imagem própria autêntica, buscando sua identidade histórica”.
O resultado de tudo isso pode ser conferido na figura de Oprah Winfrey, um ícone do talk show americano, a artista negra mais bem paga da televisão americana, se não do mundo.
É possível que as mudanças que estão ocorrendo no cenário político mundial, especificamente no contexto norte-americano, com a iminência da eleição do primeiro presidente negro na história da Casa Branca, influenciem positivamente o mundo globalizado, contribuindo principalmente para a reafirmação da identidade cultural dos afro-descendentes, viabilizando papéis condizentes com a formação do indivíduo.
Infelizmente, o documentário não alcança a todos que deveria, pelo fato de não ser exibido nos cinemas do circuito nacional e não encontrar veiculação na televisão comercial, ficando restrito ao público universitário, militantes e pesquisadores. Importa dizer que o filme serve como importante ferramenta de conscientização e como um grito de alerta para que a imagem do afro-descendente tenha o valor e o respeito que lhe é merecido, dentro da mídia televisiva e de outras tantas.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
Depois de assistir ao filme “A Negação do Brasil” e ler vários textos que abordam o tema “a imagem do negro na televisão”, o que se pode concluir é que muitas vezes o preconceito está tão diluído na programação, que passa despercebido aos olhares inocentes do telespectador comum. No entanto, o futuro promete ser melhor do que o passado. A consciência crítica desperta para um novo rumo na valorização do ser humano enquanto cidadão, pertença ele a qualquer etnia dentro da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira. Filme de Joel Zito Araújo, em 2000.
ARAÙJO, Joel Zito. A Negação do Brasil: O negro na telenovela brasileira. São Paulo, Senac, p. 22 a 75, 2000.
SCHWARCZ, Lília Moritz. Sobre o signo da diferença: A construção de modelos raciais no contexto brasileiro. Niterói, Eduff, p. 67 a 98, 1998.
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo, Brasiliense, 1976.
BOTELHO, Marcos. Notas de aula. Unijorge, Salvador, 2008.
SITES:
http://www.portalafro.com.br/joelvito/joelzito.htm . Acesso em 22/08/08.
http://www.facom.ufba.br/artcult/brasiltelenovela/pag_negro.htm. Acesso em 25/08/08.
www.redebrasil.tv.br/salto/boletins2004/rab/tetxt3.htm . Acesso em 25/08/08.
DANON, Carlos A. Ferreira; SILVA, Lúcia M. Guimarães. Estudos Culturais. A marca original do sujeito político. Aulas 3 e 4. Série EAD FJA. Salvador: Editora Aymará, 2008.