“Thelma e Louise” (Thelma & Louise)

“Thelma e Louise” (Thelma & Louise)

Das muitas flores que brotam no nosso jardim perceptivo, duas sempre chamam atenção: a do bom gosto e a do mau gosto. Digo isso pela quantidade de porcaria que tremula na sétima arte, e não só na sétima, com atores e atrizes de talento, etc. e tao.

Desde a sua primeira exibição (1991) até o presente, “Thelma & Louise” só nos insufla com reflexões, além é claro do bom gosto presente da abertura aos créditos finais.

Geena Davis e Susan Sarandon combinam uma viagem de fim de semana, para se livrarem por 72 horas do cotidiano – vocábulo que remete ao estado de pasmaceira - para se dizer o mínimo, aos que se submetem ou tem de submeter-se, por força das circunstâncias, a uma espécie de labirinto sem ventilação.

B.B. King compôs “BETTER NOT LOOK DOWN”, que elas vão cantar nos finalmente do filme. O refrão é mais ou menos assim: “se você está voando, melhor não olhar para baixo, senão vai chorar”. Nesse trecho, na cabeça delas, já não havia como voltar atrás. Sarandon havia dito ao policial Harvey Keitel: “toda vez que eu falo com você me vem à mente algemas, uniforme laranja, grades...”

Aquilo não servia mais para elas. Já não era uma opção viável, mesmo que significasse sobreviver. Metaforicamente elas já se sentiam algemadas, de uniforme e entre grades. Queriam o que todo mundo quer, sem as desastrosas conseqüências que acarretaram. Tempo livre, sair da rotina, um mísero final de semana numa cabana na beira dum lago qualquer para tirar a mente de um estado que, dependendo das forças que o regem, terminam por aprisioná-lo.

Um Thunderbird 1966 azul seria o veiculo sem metáfora para o idílio de duas amigas que queriam mais da vida e não sabiam. Susan era garçonete e em dado ponto de sua existência passara maus bocados no Texas por conta de um estupro. Em momento algum isso é falado com todas as letras durante o filme. Na verdade esse fato só ganha força pela sutileza com que é abordado. O policial Harvey Keitel diz pra ela ao telefone: “eu sei o que aconteceu no Texas”. Mais nada. O tempo todo ele percebe o barco delas sucumbindo e tenta avisar: “até agora não temos nada contra com vocês. Queremos apenas conversar”. Ao passo que a consciência dele permite uma visão panorâmica da situação, a delas tem qualidade oposta. Mas o que vale salientar é que ninguém, no lugar delas, poderia pensar diferente. Índole das meninas e a força dos eventos dá o tom. Thelma e Louise caracterizam-se perfeitamente na tarja: gente boa.

Louise é garçonete período integral, tem um amigo colorido (Michael Madsen) e dor profunda no coração. Thelma jovem, dona de casa, conhece pouco “o caminho sob o sol, o sol que ainda brilha na estrada e eu nunca passei”.

Sexta-feira, meio da tarde ou quase isso, o Thunderbird 1966 azul estaciona na porta da casa dela. Sol, óculos escuros, som na caixa, a perspectiva dum final de semana azulado, umas biritas, quem sabe, conversa séria e banalidades, arejar a cabeça.

O filme de Ridley Scott levou o Oscar de melhor roteiro original, mas fica inegável, sobretudo depois de um tempo, que poderia ter levado muito mais.

Acho que o grande erro do termo happy-hour é supor que fora desse momento as outras horas não sejam felizes. A primeira parada das meninas num estabelecimento beira de estrada, desses com música ao vivo e um bar repleto será, contudo, a forquilha maior de suas vidas. Geena Davis nunca esteve tão bonita.

Parece que tudo em “Thelma e Louise” funciona do inocente á pior conseqüência. No bar ela dança com um tal Harlan e no final ele quer violentá-la. Quando ela conhece JD (Brad Pitt), ela supõe um romance casual mas ele quer roubá-la. De um primeiro inquérito policial onde bons advogados soltariam as duas sem pestanejar tem ensejo a perseguição policial com a mais que velha e quem sabe um dia os céus nos livrem fórmula da bala de canhão para matar passarinho.

Criamos as nossas misérias e limitações, as vezes apenas de um modo imaginário, as vezes com proporções que não há como desfazê-las.

Susan Sarandon é uma das grandes damas do cinema, se você conhece um pouco o trabalho dela vai pensar no assunto, se conhece mais vai concordar comigo. Ela atira à queima roupa no tal Harlan no estacionamento. Já havia salvo a amiga do pior, bem a tempo. O olhar de ódio para ele, impensável para a alegre solteirona de momentos antes, o olhar de quem carrega um trauma e a vida lhe põe à prova, e isso emerge num segundo com toda a mágoa represada. A situação já estava sob controle, Geena poupada, seria só entrar no carro e partir. Mas Harlan evidentemente não conhecia limites. Devia ter calado a boca antes de falar para a mulher de olhos faiscantes e com um revolver na mão que ela não passava de uma vaca ou coisa no gênero. O ódio de Susan apertou o gatilho. O mais pacifico e zen dos espectadores não deixa de sorrir silenciosamente. Harlan vive o tipo à toa que age brutalmente contra indefesos ou indefesas.

Teve o que merecia é uma das muitas questões pertinentes da história. Quando Harvey Keitel chega na cena do crime ninguém sabia de nada. A própria garçonete que atendeu as meninas lhe expõe: “quer melhor julgadora de caráter do que eu, que sirvo mesas há tantos anos? Pode ter sido qualquer um, menos elas”.

Só que elas não sabem disso. Quem carrega a tarja Gente Boa, não raro, lida com os eventos com menos frieza. A partir daí as leis de causa e efeito e do “uma coisa leva a outra” atuam progressivamente. As coisas funcionam plasticamente porque os envolvidos na produção do filme são o que se pode chamar de profissionais de alta categoria. O bom gosto com que cada ação é mostrada é tão extenso quanto a estrada que elas palmilham. As repetidas cenas em close das duas, cujas feições vão ganhando o bronzeado de estar no caminho da fuga de si mesmo, antes de mais nada, difere do bronzeado Club Med, levando ao entretenimento o estofo questionador.

Nos finalmente, Geena diz para a amiga: “olhe por esse lado, se você não tivesse aparecido, ele teria me agredido muito mais, e hoje eu estaria pior, bem pior. Pelo menos hoje estou feliz”.

“BETTER NOT LOOK DOWN”, canta B.B. King, “se você está voando, não olhe para baixo, senão você vai chorar”.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 14/06/2009
Reeditado em 01/04/2013
Código do texto: T1648505
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