“Frost/Nixon” (Frost/Nixon)
“Frost/Nixon” (Frost/Nixon)
A mais importante atitude que você pode ter com relação a esse filme consiste em desligar (temporariamente) seu sistema de julgamento com relação ao fato de: ops, mais um filme sobre os gringos e sua história doméstica.
Enumerando motivos:
1. Você tem razão.
2. O buraco é mais embaixo.
Geografia do buraco:
1. História verídica.
2. Análise de como a ousadia de um entre aspas incompetente lhe rende o trabalho de sua vida. Essa ousadia entra para a lista dos exemplos universais.
2 A. Estamos falando de David Frost, jornalista britânico que na época tentava a sorte como apresentador de TV de banalidades na Austrália, e percebe o que poucos perceberam. Quando o único presidente em toda a história da América renuncia, ele solicita uma pesquisa para saber quantas pessoas assistiram. Cifra: 400 milhões. Nesse momento lhe surge a idéia: vou entrevistar Nixon.
Parece fácil para os dias de hoje, e talvez seja hora de colocarmos o número 3 em ação.
3. Em 1974 a percepção da moral, mesmo que se cometessem atos imorais, era absurdamente distante se comparada com a atualidade. Nixon negou e refutou todas as acusações contra ele, teve perdão total de seu sucessor, Gerald Ford, o que significava que o homem que cometeu o maior crime no cenário político americano nunca enfrentaria um julgamento, enfiou-se na sua bela residência litorânea e juntou uma equipe para fazer seu livro de memórias. Detalhe: ninguém na grande imprensa lhe dirigia a palavra, ninguém demonstrava interesse, não se dava espaço para marginais megalônomos como acontece hoje.
3 A. Frost conseguiria o impensável: a primeira entrevista com Tricy Dick desde sua saída da Casa Branca. Entre a proposta (75) e a concretização do fato (77), já haviam escrito livros sobre ele e sobre suas discrepâncias no poder, sobre como ele ultrajou o cargo com atitudes deslavadas de gangsterismo puro e ralo. A indignação no meio jornalístico e no meio intelectual era contundente.
Com isso, a matemática mais que correta: para que entrevistá-lo? Para jogar mais holofotes em cima dele?
4. David Frost quer pagar pela entrevista. Oferece US 500 mil dólares. Nixon pede 550. Frost acaba pagando 600. Na sua primeira visita ao tubarão republicano, ele preenche um cheque de 200, conforme combinado. Depois vai passar o chapéu nas grandes emissoras americanas, para comprarem o peixe.
5. Resposta em uníssono dos conglomerados: o que!? Não bastasse você ainda pagar para esse bandido descarado, ainda quer entrevistá-lo, sendo inglês, e sem o menor preparo para o assunto?
6. O conjunto de idéias do primeiro mundo nos anos 70 achava um absurdo alguém fazer sucesso na mídia sem ter alguma qualificação que justificasse as manchetes. (Mal sabiam eles para onde caminhava-se). Uma moça muito bonita (Rebecca Hall) recita esse ponto de vista para David Frost no avião. Ele retruca: isso não parece delicado.
Ron Howard dirige, e não nega fogo no trabalho de cinema didático. Foi responsável por “Uma mente brilhante” e “Código Da Vinci”, dois filmes respectivamente água e vinho. Peter Morgan, autor da peça teatral onde a história se embasa, assina o roteiro.
Frost monta uma equipe para se preparar para a entrevista. Um correspondente político de peso em D. C. (Oliver Platt) e um escritor, (Sam Rockwell) engajado e ultrajado pela era Nixon. Esses serão seus norteadores, e cada dia que passa ficam mais atônitos com a conduta pouco ortodoxa do inglês.
Kevin Bacon, militar linha dura e assessor do presidente, trata das negociações e como se dará a entrevista: 4 blocos de 2 horas cada, somente no último tratarão do escândalo Watergate.
7. O despreparo do britânico vai chegar no espectador em seu tempo, pois até então o que ele vende - e é o que parece ter sido de fato – está imbuído de uma confiança em si e no projeto a toda prova. Chegará o momento em que ele dirá: onde eu estava com a cabeça? Por que não me amarraram, para impedir essa loucura? Nesse ponto, ele e seus associados se vêem encalacrados, endividados e sem perspectiva alguma no fim do túnel.
Os três primeiros blocos são um fiasco total. Nixon dá o tom sendo que, as entrevistas só seriam um sucesso se ele jogasse a toalha no chão. Se ele assumisse seus erros e se desculpasse. Longe disso.
(Indagação entre os números: quantos brasileiros não se sentiriam melhor com um pedido de desculpas de seus governantes?)
7 A. Afinal, quem é Nixon, face um apresentador de TV com muita disposição mas sem conteúdo, acostumado só com trivialidades?
7b. Nesse número fica clara a escolha mais que acertada de Frank Langella para o papel. Ele personifica muito bem um sujeito que esteve no topo do poder, e põe topo nisso. Richard Milhous Nixon já era um macaco velho quando perdeu a eleição para JFK em 60, por 100 mil votos. Falou-se muito que esses cem mil eram nomes de falecidos do estado da Flórida, ou seja, ele viu a maracutaia e ficou na dele. Em território de bandido todo mundo assovia baixinho e Richard teve a sua vez para ensejar uma opereta avassaladora, que frustrou não só o seu próprio povo como povos de além mar. Venceu duas eleições, era conhecido por não ter a menor disposição para conversa fiada, bombardeou o sudeste asiático com uma sanha que especialistas dizem que os famosos bombardeios de Dresden (Segunda Guerra) eram festa junina perto da sua bestialidade. Esteve com Mao e Brezhnev, teve Kissinger como confidente e braço direito, manipulou as supremas cortes ainda liberais de uma época de multi transformações e convulsões, barganhou por quase uma década com tudo quanto é tipo de cartel, grampeou oponentes, sabotou sindicatos, um sujeito com esse carma e com essa aura, com essa bagagem não iria pestanejar face a um oponente sem a devida tarimba.
Foi o que aconteceu. O mais interessante é que a despeito de toda bravura do repórter, que o ator britânico Michael Sheen atende muito bem, dada altura ele mesmo percebe que está numa barca furada, que não tem a menor estrutura para lidar com um peixe grande como aquele.
A não ser que o peixe peça água.
Foi o ocorrido.
Uma noite antes da última entrevista Nixon, num pileque federal, liga para Frost e, ao invés de enrolar a língua, entre outras dá o seguinte recado: seja um desafiante a altura.
Filme ou não, a partir do dia seguinte David Frost entraria para a história como responsável pela reportagem de maior audiência da TV americana. Naquele ponto da vida, o homem Richard Nixon, acostumado com a ação e com o poder, especialmente do gênero “doa a quem doer”, precisava desabafar, precisava pedir desculpas para a América por seus delitos, seu abuso de autoridade, sua falta de respeito para com os votantes e o cenário político.
Ele assim se comporta e a câmera enquadra os olhos abatidos, a expressão sem a empáfia, entristecida.
Um dos produtores suspira: televisão é isso, toda uma vida fica reduzida a um close.