“Traffic” (Traffic)
“Traffic” (Traffic)
Das muitas reflexões que o cinema propôs sobre si mesmo, houve o curioso debate nos anos 80, acerca do cinema ser ou não arte.
Também nos anos 80, 84 para ser preciso, especulou-se à larga o fim do cinema, em virtude da tecnologia HDTV, recém lançada no Japão. Sobrevivemos aos 80. Mesma década em que certo livro foi editado no hemisfério norte, mostrando o fluxo de caixa dos articuladores da droga. Economistas interessados no assunto, verdadeiros cérebros das finanças, conscientes de que a conta da macro economia extrapola a matemática da coluna da esquerda versus a coluna da direita, escreveram artigos primorosos antevendo que não tem pra ninguém, quando o assunto envolve uma das mais antigas formas de poder da humanidade: grana.
Nesse quesito, a sacada do “Traffic” fica por conta de algumas falas, que em última análise asseveram: não existe guerra contra as drogas, ou, se existe, ela já está perdida desde o começo. Em termos de guerra, o que existe é um teatro, muito bem retratado por Steve Soderbergh, diretor do espetáculo.
Corta.
Mais de 110 papéis com fala.
Corta.
Nas várias tramas que correm soltas, há que se prender a atenção do espectador inovando ou, se preferir, potencializando os aspectos de roteiro e edição para comunicar. Como mostrar o assassino? Só algumas fotos. Alguém diz que ele é terrível, perigosíssimo. Corta. O investigador Benicio Del Toro chega num bar gay, vestido a caráter. Ao se encostar no balcão, pede uma bebida e coloca o maço de cigarros bem à vista do assassino. No plástico que envolve o maço, há uma camisinha. O assassino vê e lhe pede um cigarro. Corta. Ele já está de olhos vendados, amarrado no banco traseiro, para ser entregue ao general. Corta. O general pergunta a Benício como ele conseguiu tão rápido? Benício responde: todos temos um ponto fraco.
O ator Tomas Milian perfaz o general. Milian é cubano. Soderbergh exigiu que todos os personagens latinos fossem latinos. Uma obra de arte se destaca na sutileza dos detalhes. Logo nas primeiras cenas, o general vem para a câmera sorrindo e tocando um trombone inexistente. Uma autêntica figura. Usa palavras no diminutivo, acaricia capas de livros e tem um anel com a figura de uma caveira.
“Traffic” é um filme sobre pontos fracos. Michael Douglas, o juiz nomeado para combater os cartéis mexicanos, tem como ponto fraco a ingenuidade, além de uma filha cujo ponto fraco é a dependência química.
Muita coisa usada em “Traffic” foi copiada logo depois, como sempre. Situações de cor para caracterizar, por exemplo. As cenas rodadas no México calcam no amarelo desbotado. Nas cenas de Michael, o cian prevalece. Com exceção do seu jantar em Washington D.C. Nesse jantar, seis senadores e um governador conversam com ele. Não são figurantes, são eles mesmos. Falas válidas até hoje.
Corta.
As cenas rodadas em San Diego tem o colorido normalizado. Em San Diego vivem Catherine Zeta-Jones, cujo ponto fraco é a grana, e o de seu advogado, Dennis Quaid, é a burrice. Só ele não percebe que a cliente vai fazer de tudo para resgatar o vidão que levava, antes do marido ser preso pelo DEA, por negócios escusos. Inclusive levar um boneco de cocaína compactada para o México, grávida de 5 meses, como de fato ela estava, quando o filme foi rodado. Don Cheadle e Luis Guzman, os policiais que rondam a casa dela, satisfeitos até o ponto de descobrirem que seus ideais são impotentes face ao tamanho da encrenca.
Corta.
Paulinho da Costa, o nosso, integra o time dos executores da trilha.
Corta.
Quatro estatuetas.