“A Troca” (Changeling)
“A Troca” (Changeling)
- Esse menino não é o meu filho – ela adverte.
O capitão olha para ela e depois para a multidão de repórteres ao fundo. Então replica:
- Você não está reconhecendo ele. É natural, depois de cinco meses,
crianças mudam, e você está em choque, certo? Talvez não esteja pensando direito.
Ela hesita. Uma mulher sozinha no mundo. Se houvesse uma dúzia de familiares, talvez esse diálogo não tivesse ocorrido. Mas não. Solteira, independente, trabalhadora, e naquela estação de trem viu-se rodeada por homens uniformizados, autoridades, imprensa.
A expressão dela evidencia o sinal inequívoco de, “seja lá o que está acontecendo, melhor eu dizer que não estou raciocinando direito”.
O oficial sorri triunfante. Minutos antes ele havia dito que pessoas gostam de finais felizes.
Clint Eastwood dirige. Vou te falar onde ele estava, por volta de 1780. Estava freqüentando umas casas retiradas, nos arredores de Bruxelas, Paris, Londres. Seres ousados, quiçá afortunados, se reuniam logo após o entardecer para burilarem experimentos com voz, textos, e a projeção de sombras nas paredes, usando as lâmpadas de então. Não sei que nome ele usava nesses idos.
Talvez nem estivesse em seu corpo tangível.
Hoje beira os 80 anos e definitivamente estava lá, embora não fosse o único, participando direta ou indiretamente da inoculação do germe cinema nalguns exemplares da raça humana. Só quem esteve lá poderia brindar nossa existência troglodita, aspirando ascender a algo melhor, através da ilustração auto-transformante e transformadora, alcunhada cinema.
Baseado numa história real. Ou, se preferir, o dia em que uma história real foi finalmente bem contada, mostrando que basta um louco e um conceito distorcido para fazer da vida dos outros um real inferno.
O filho de Angelina Jolie, com 9 anos de idade, desaparece de casa em 10 de março de 1928. Em outubro do mesmo ano ocorre o maior protesto civil, até então registrado, nas ruas de Los Angeles. Os costumes de 1928 permitiram que um protesto desse naipe acontecesse, sem que os manifestantes tomassem uma chuva de cacetadas. Quarenta anos depois a América revelaria a outra face - e a mão de ferro - sobre os que empunham cartazes para protestar. Ocorre que o germe do totalitarismo ianque foi parido na Los Angeles dos anos 20. Se se pensar bem, esse é o olho do furacão contido num filme contido, posto que repleto de camadas, elas vão saindo de cena e outras entram, revelando como acontecem certas coisas, numa cadência que só mesmo um maestro sabe ajeitar para que nada se perca e tudo se transforme.
A luta de Angelina, para saber o que aconteceu com o filho, vai de março a outubro de 1928. Entre uma data e outra, cinema puro sangue vai agindo com a edição impecável de Joel Cox, editor master da Malpaso, sobre um roteiro fluído de Michael Straczynski (Homem Aranha).
Straczynski ruminou na cebola de tal jeito, que quando você pensa em dar os trâmites por findos, novas facetas vem surgindo na bem constituída Los Angeles da época, embalada na trilha delicada cuja autoria é do próprio Clint, em recortes de texto que sintetizam muito dos fatos atuais, e nos pequenos sortilégios de edição – como por exemplo, a sensação dada ao espectador que o trem está se movimentando, mas não, é o vidro traseiro de um carro.
A América tenta esconder seus crimes, algo compreensível. Em 1984, o caso divulgado e depois sumariamente abafado, de Ottis e Fulano – juntos mataram 326 pessoas em 10 anos de atividades, leva o personagem de Antony Hopkins, em “O Silêncio dos Inocentes”, a suspirar como uma florzinha assustada no campo.
Veja deu a notícia em agosto de 84.
Deixe a pipoca de molho uma semana, numa panela de sal grosso e exposta à lua cheia, antes de assistir “A Troca”. Não espere tiros, perseguições de carros, brutalidade explícita de qualquer forma que não a dos agentes do Estado usando papel, caneta e fotos para a imprensa.
Clint foi pinçar uma pepita ainda escondida – agora não mais – e nos diz que graças a luta de uma moça chamada Christine Collins , cujo filho desaparece, graças a perseverança de um religioso e comunicador - John Malkovich, e um capitão da LAPD - Jeffrey Donovan, forças entram em atrito, em conflito, cada um dá o que tem e se imortaliza no jogo de luz e sombra, cuja maior proposta é, antes de mais nada, ensinar.
“A Troca” transborda a somatória de várias experiências acumuladas no ramo artístico, dando um tapa bem dado na cara de tudo o que está putrefando e um soco no estômago dos fazedores de cinema de faz de conta. Podem nos dopar à vontade com a vertiginosa realidade virtual. Alguém sempre se dará ao trabalho de nos beliscar gentilmente e dizer: acorda!
Fica ao cargo do livre arbítrio do espectador usar o lado direito ou esquerdo do cérebro. Tanto faz. A turma engajada na didática se esforçou para facilitar a compreensão, pois quanto mais real a história, mais próxima da surrealidade ela se apresenta.