“JFK – A pergunta que não quer calar” (JFK)
“JFK – A pergunta que não quer calar” (JFK)
“A traição não prospera”, disse um poeta inglês. Deixando a ambientação “JFK” de lado e focando no conteúdo, vem uma espécie de desencantamento na percepção das linhas gerais que permeiam o cotidiano. Talvez seja por isso que os sábios orientais orientam na alegre busca das pequenas coisas. Podendo agora acrescentar: e as pequenas cenas.
As pequenas cenas e as pequenas performances são memoráveis. O olhar de Jack Lemon no hipódromo, para o único homem na América que instaurou um processo contra o “establishment”, o promotor Jim Garrison, alegando com todas as letras que o assassinato do presidente foi uma conspiração, um golpe de estado. “Você é tão ingênuo”, diz Lemon, se afastando.
Walter Matheu, no avião, conversa rápida com o mesmo promotor, interpretado por Kevin Costner. Nesse diálogo, surge a faísca que irá mover as perguntas que não querem calar.
Mel Gibson fez uma brincadeira com Oliver Stone, ao dizer no filme “Teoria da Conspiração”, que Oliver Stone faz parte do governo, por isso ele sabe tanto. Stone sabe de cinema, fortificou o gênero didático de tal jeito, que não há como negar que professor tem que ter muito, mas muito miolo. As informações compartilhadas com o mundo são baseadas em dois livros: “On the trail of the assassins”, do próprio Jim Garrison, e “Crossfire: the plot that killed Kennedy”, de Jim Mars. O “establishment” só vai permitir ver o que já se sabe, com um ou outro detalhe ainda mais sórdido, em 2039.
Tolice imensa achar que “JFK” é um assunto de gringo, pois o bicho tá cada vez mais solto, e a lição dada na película, além de universal, transborda inteligência e revela as nuances do comportamento do mal, quando se torna corporativamente monstruoso. Ao assistir despreocupado, já conhecendo o filme de fio a pavio, percebe-se os paralelos entre os mundos de ontem e de hoje.
(Menos de 24 horas depois do assassinato, um jornal da Nova Zelândia já tinha toda a biografia de Lee Harvey Oswald, com foto de estúdio e tudo. O suposto coordenador da segurança de Kennedy fora mandado na véspera para o Pólo Sul).
Gary Oldman, Sissi Spacek, Tommy Lee Jones, Laurie Metcalf, John Candy, Michael Rooker, Joe Pesce, cada um teve sua hora de mostrar que ator que é ator vende um peixe que qualquer um compra, que nem o peixe que as Forças Ocultas venderam para o mundo.
(O procedimento padrão para um desfile em carro aberto, numa cidade considerada hostil, como Dallas, seria de no mínimo 150 agentes na rua, outro tanto nos prédios, não haveria uma janela aberta e ninguém abriria sequer um guarda-chuva, sem que fosse notado. Coisa que não ocorreu. O coronel encarregado do 112 Batalhão, de San Houston, recebeu a estranha ordem de ficar estacionado nas suas dependências, e protestou inutilmente. Códigos básicos de proteção foram descaradamente violados, o que por si só evidencia conspiração).
Toda bobajada que o cinema mostra hoje, com o justo adjetivo de entretenimento, fica pulverizado quando quer brincar com assuntos sérios desse gênero. Oliver Stone recebeu o Santo Talento e fez bom uso dele, graças à trabalhos de interpretação de se tirar o chapéu.
Kevin Bacon, o homossexual detento, falando pelos cotovelos nas dependências da prisão. Joe Pesce, fumando um cigarro atrás do outro, de peruca ruiva, gesticulado, dizendo que tudo o que ele queria na vida era ter sido padre, mas não deixaram, porque ele tinha uma fraqueza, e se transformou numa tranqueira militarista e perigosa.
Numa segunda olhada, a colagem de imagens iconográficas com imagens feitas para dar a mesma impressão, foram selecionadas e editadas num trabalho de rara habilidade. Sai uma seção de cortes e entra outra, mostrando a montagem da foto de Oswald com um rifle. E depois outra, abordando os campos de treinamento de mercenários em Miami. Enquanto isso, John Candy, de óculos escuros, na pele de um advogado mais sujo que pau de galinheiro, vocifera num restaurante de Nova Orleans.
(O gabinete de JFK estava no extremo oriente. Um terço da divisão de combate sobrevoava os EUA, vindos da Alemanha, na hora do crime. Às 12:34, todo o sistema telefônico de Washington pifou durante uma hora. Oswald tinha a ficha mais esquisita do exército, que foi devidamente queimada).
“Essa conjunção de imensas forças militares e industriais é nova na experiência americana”, disse Dwight D. Eisenhower, na cerimônia de posse de JFK – “temos de nos prevenir contra as injustificadas aquisições de influências por parte do complexo militar industrial”.
Dwight tinha visto o bicho de perto. Era só o começo.
Devemos a Jango o fato de não termos nos tornado um Vietnã. Vale ver o documentário. A sanha sanguinolenta dos gringos aspergiu sua saliva na nossa costa ensolarada. Era cá ou lá. Jango não quis uma guerra civil. Se quisesse, o outro lado teria como aliado o US Army, que iria confeitar nossas estrelas. Escapamos, e a má sorte foi lançada para outro hemisfério.
(Como e quem, foram distrações para o público: Oswald, Ruby, Fidel Castro, Cuba, Máfia, elementos para ludibriar a audiência, evitando que a pergunta básica fosse feita: por que JFK morreu e quem se beneficiou com isso? É só raciocinar um pouco: o sujeito estava com dois anos de governo. Deve ter mexido num senhor vespeiro, para ser abatido no próprio terreiro, e de forma tão organizada.)
Já estando no caso há pouco mais de um ano, sofrendo pressões de toda sorte, Jim Garrinson chega em casa e encontra todo o seu “staff”, além da esposa e os cinco filhos. Já haviam matado Martin Luther King, o caso JFK lhe dera desilusão de sobra para, na hora do jantar, quando Bob Kennedy aparece vitorioso na TV, ele murmurar com amargura: vão matá-lo. Seus associados chamam-no de paranóico. A esposa estava achando o mesmo há um bom tempo e retruca que não vai assistir ao julgamento. Algumas horas depois ele a acorda e diz: Bob foi morto. Para ela, naquele instante, a ficha caiu. Quem está de fora, assistindo esse drama humano, ocorrido há 46 anos atrás, acha tão lógico quanto ele, pois está de posse das mesmas informações que ele obteve.
(Em 61, JFK expressa através de 3 memorandos, que todas as ações paramilitares em tempos de paz são oficialmente responsabilidade da Junta Militar. No mesmo período ele demite Allan Dulles, chefe da CIA desde 1955. Outros poderosos foram demitidos. A maior base da CIA nos EUA, em Miami, fora fechada. Com isso, fecharam 50 empresas de fachada, para lavagem de dinheiro. JFK puxou o tapete dos militares em termos de verbas e assessórios – desativou 52 instalações em 25 estados, e 21 bases ultramarinas).
Uma coisa o terceiro mundo que aspira ao primeiro deve entender sobre a América – o show não pára. Não acredito em qualidades ou deméritos absolutos sobre nenhum povo. Acredito em carma coletivo, em ações e bem feitorias. Melhor ou pior só vigora na cartilha dos idiotas. Todos caso, verdade seja dita – o assassinato do trigésimo quinto presidente americano, infelizmente, extrapola as fronteiras deles na mesma medida em que eles extrapolam outras fronteiras. Se inteirar sobre o assunto, especialmente o mecanismo do assunto, através dessa irrefutável obra cinematográfica do senhor Oliver Stone, constitui programa salutar para o exercício da inteligência. Ganha-se de brinde uma visão raio x dos eventos da atualidade. Mesmo em crise, a máquina industrial americana não deixa de ter uma história e tanto. Em 1924 os caras produziam 1 milhão de carros por ano. A frota brasileira atingiu essa cifra em 1996, à custa de ônibus e caminhões. São realidades muito diferentes.
(JFK investiu nas minorias e nos menores distritos eleitorais. Pretendia o fim da guerra fria, assinou o tratado pelo fim dos testes nucleares, recusou-se a invadir Cuba, assinou um memorando decretando a retirada das tropas do sudeste asiático o quanto antes, e de quebra colocou o óbvio em palavras: se não mandei tropas para Cuba, tão perto, por que iria mandar para o Vietnã, tão longe?)
“JFK” foi lançado em dezembro de 1991. Teve 20 indicações e conquistou 2 estatuetas. As mentes abertas de toda a América não só compraram o debate, como estenderam as mãos para reverenciar esse cineasta – “ele sabe como contar uma história”. Para o espectador de primeira viagem, fica a informação de que o filme dura 186 minutos. Nada cansativos. O tratamento de câmera dado por Stone transforma o espectador numa testemunha - com certeza foi mais do que intencional - o olho humano e a percepção humana não andam exatamente juntos.
A conversa de Donald Sutherland com Kevin Costner em frente a estátua de Lincoln, a trajetória da bala mágica demonstrada por Kevin no julgamento, o filme de Abraham Zapruder, que ficara no cofre da Time durante 5 anos, três exemplos rápidos de cinema sobre cinema, de cinema a serviço de um debate com tutano que vale cada minuto, principalmente se se pensar que um dia houve um sujeito com poder executivo para transformar, e que sua intenção revelou um poder muito maior, gigantesco, de proporções até então impensáveis, capaz de derrubar o que for. Inclusive o presidente da nação mais poderosa do planeta.