"Guerra dos Mundos" (War of the Worlds )
"Guerra dos Mundos" (War of the Worlds )
A primeira captação foi de nariz torcido. Fiquei com a impressão de que eram vários carros saindo do buraco. Mas não. Bastou um.
Cinema.
Tinha de acontecer com o Tom Cruise, desfrutar do único veículo que funcionava. Ele merecia. Foi a única pessoa que, ao olhar para aquela tempestade, matutou: que estranho, a ventania vai em direção à ela.
Spielberg já era considerado um gênio desde antes do lançamento de “Encurralado”, com o Denis Weaver. O conjunto da sua obra faz jus à todo mérito. É o gênio do claro-escuro do fotograma em movimento. Se fosse outro refilmando essa história, o espectador ia ter de lastimar em silêncio ante um sem número de câmeras alopradas, badernando o conjunto da ação.
Em cada fatia do “Guerra dos Mundos”, a voz de comando do mestre e o acasalamento perfeito do roteiro dão o tom harmônico do outro mundo, que é o cinema.
A tempestade chama a atenção, e o que por instantes parecia uma aberração climática, coloca a pulga atrás da orelha de toda a vizinhança. Tom sai de casa e se depara com a rua cheia de curiosos. Coisas de bairro. Comentário levianos, caçoada...
Fiquei me perguntando quem faria um carro sair do chão com a mesma classe, quem faria aquele asfalto irromper de ponta a ponta, as feições dos proprietários de um antiquário lá na esquina, pasmos, o reflexo na janela, o prédio rachando em virtude do buraco na rua, a engenhoca que sai lá de dentro e começa a pulverizar os habitantes, deixando apenas suas roupas. Se fosse outro diretor, teríamos de aturar o enfadonho modismo dos micropolanos, que fracionam os segundos e pelo mau uso só atordoam.
Cruise chega em casa catatônico, coberto de pó, os filhos estão cheios de questões, não há como explicar. Pé na estrada, com o único carro que funciona. Verdade seja dita, a menina Dakota Fanning não deixa por menos. O roteiro pensante de Josh Friedman e David Koepp caracterizou-a como criança e com reações de criança. Dentro da proposta surreal de H.G. Wells.
Mais uma fatia. Cruise chega num bairro até onde se supunha, inatingido. Prístina residência da ex-mulher, vazia. Os filhos querem respostas. Ele acha melhor que todos durmam no porão, como quando acontecem os furacões. À noite, luzes, estrondos e zunidos. Ele tem uma ligeira idéia do que aquilo significa. Pela manhã, protagonista e espectador desfrutam da mesma surpresa. Parte da casa está destruída e os restos de um Boeing jazem no quintal. Ao lado, uma equipe de TV enlouquecida e esfaimada. Um câmera, um motorista e uma repórter. Cruise quer alguma notícia, alguma informação. Indaga se existem outras engenhocas daquelas, por aí. Ela gargalha. E lhe mostra os tapes com “tripods” aniquilando tudo pela frente.
Quando se está numa sinuca, e tem que se correr alucinadamente – não se sabe de que e não se sabe para onde, melhor que o Spielberg esteja filmado, porque as cores dos clichês pelo menos dão legitimidade para o “non sense”. E plasticidade.
Alguns diretores sabem como equilibrar um filme de ação com tutano. Sam Peckinpah e Peter Yates, dois nomes só para constar.
“Guerra dos Mundos” é um filme de terror com ação. Só fica escancarado que é um filme de terror nos últimos 30 minutos.
Diretores sem fim colocaram uma metralhadora nas mãos de um protagonista, raros lhe ensinaram como manejar na frente de uma câmera, As cenas de ação de “Munique” mostram um Spielberg que sabe fazer as vezes de Sam Peckinpah. Sem demérito para ninguém. Na ação do “Guerra dos Mundos”, a missão do Tom Cruise incide em manter os filhos vivos no meio do caos.
Spielberg já brincou com uma barbatana de araque, pontuada por um Si e um Si bemol. Fez história. Continua fazendo. Trinta anos depois ele arruma uma geringonça assassina, e a cena em que ela olha para a multidão espremida numa balsa, deve ter enchido de inveja muito produtor/diretor nas plagas californianas.
Tom Cruise perde o único carro que funciona para uma turba ensandecida. Quando ele se refugia com a família numa lanchonete ícone do American Dream, assiste de camarote o novo motorista ser assassinado pelos que querem porque querem o veículo. As luzes da lanchonete piscam. Penumbra. O motorista tomba com um único tiro. Cinema.
Cinema de novo dentro da balsa, com o filho adolescente entrando em parafuso, ajudando outros desesperados. Mais alguns minutos e este decide ingressar nas fileiras para combater os “tripods”. Inútil. Eles tem um campo de força que os circunda, deixando-os invulneráveis aos projéteis humanos. E prosseguem aniquilando. Vem a cena de um monte roupas caindo do céu, no meio da neblina. Não há como não pensar numa citação cinematográfica, sobre a chuva de próteses e muletas no Afeganistão, há uns anos atrás.
Ultima fatia desta fatiagem. Cruise e a menina chegam na casa do Tim Robins. Tim era encarado como a promessa, no início dos 90. Acho que emplacou à moda dele. Em “Guerra dos Mundos”, pelo menos, ele colocou a cereja no topo do próprio bolo, no papel de um estóico/embriagado que vai lutar até a derradeira gota. Nesta fatia fica claro ao espectador tratar-se de um filme de terror, onde o sangue das vitimas é aspergido de volta à terra, deixando-a vermelha... Todavia, foi o trecho que me levou a perceber o que me aborrecera na primeira captação. Muito longo, muito dramático. Resta o pensamento do Tim Robins: “Não se trata de uma guerra entre iguais. É o que o homem trava com as larvas. Um extermínio”.
Pai e filha chegam em Boston, e os pássaros pousam num “tripod”. O aviso que bastava: não existe mais o campo de força. Face à algumas bazucas o “tripod” se mostra um tigre de papel. Finalmente aparece o alien que pilotava a engenhoca, e antes de dar o último suspiro, evidenciando que ele não passava de um organismo vivo, vomita.
O que deixa algumas questões. A principal delas, sobre o que mantinha o campo de força ativo. A força vital do tripulante? Algo ou paradoxal, ou sugestivo. Porque, se alguém se tranca num cofre inviolável, qual motivo irá destravar a fechadura, no caso de morte súbita do ocupante? Um mecanismo?
A outra questão o próprio roteiro descortina. O que matou os aliens foi um microorganismo ingerido, relata a voz de Morgan Freeman , contratada para as locuções iniciais e finais. Considerando-se que o que eles ingeriam eram os humanos, nalgum momento a alimentação se tornou indigesta e fatal. Não vieram para cá com um propósito colonizador. A impressão que se tem é que estavam pelo sabor da caça e pelo vandalismo. Como quem pisa num formigueiro por diversão e ainda se compraz em degustar saúvas.
Termina o filme e vamos ao tele-jornal. Irresistível não comentar que, ao descortinarem-se as notícias do dia, ainda que com plasticidade diversa, o título continua a fazer sentido. Só que, desta feita, não é cinema.