"Um Homem Bom" (Good)
"Um Homem Bom" (Good)
Sistema de crenças. Foi o que me saltou à mente durante o espetáculo. Em determinada escola espiritual, chamam o ego negativo de “um sistema de crenças” baseado nos conceitos de medo, separatividade e morte. Em 2003, no cinema assistindo “A Paixão de Cristo”, lembro de uma mulher na fila próxima exultando na cena do suplicio, e na saída dizendo: “o cara era macho mesmo”.
Não deu para esquecer isso. Em “Good”, quando ele coloca a farda da SS, ela, literalmente, se ajoelha. Sistema de crenças. Cada um tem o seu. Julgar é tolice.
Vicente Amorim (O caminho das nuvens ) dirige. Viggo Mortesen estrela. Outro ator que vende bem o peixe do ser convincente. Dava pra acreditar nele no “Senhor dos Anéis”, e também num outro, sobre um cowboy na Arábia, e ano passado sua atuação como mafioso russo lhe conferiu uma indicação ao Oscar. Aqui ele usa óculos e se enquadra no estereótipo do escritor/professor de literatura na Berlin de 1933. O bem feito do roteiro adaptado, a direção impecável de Vicente e a competência do Viggo levam até o espectador a se curvar face a cena da farda, por motivos outros. É o que estava bem na nossa cara e que um dia teria de aparecer. Por motivos outros.
“Good” é um bom ensaio sobre a cegueira dos contemporâneos de Adolf, desde que o público já tenha uma certa noção sobre o que foi esse movimento, porque ninguém está ali para mastigar nada, já se parte de pressupostos, uma trama cheia de elementos ordinários – no sentido de não serem extra-ordinários, filme de arte nada cansativo. Para quem gosta é um prato cheio. Seleção oficial de Chicago, Toronto, Rio de Janeiro e Roma.
O futuro espectador desde já está poupado de “baseado numa história verídica”. Esperei até o último crédito para ver se isso aparecia. Esse professor de literatura não existiu. Não com essa performance. Até porque, em linhas gerais, ela não se destaca das demais. O motivo pelo qual um professor de literatura se envolve com a Gestapo, nessa ficção, leva à reflexão.
Vicente Amorim foi assistente de direção de Paul Mazursky, Hector Babenco, Carlos Diegues e Bruno Barreto . Mais um brasileiro dirigindo bem os gringos, como fez o Meirelles na obra de Saramago.
Viggo Mortesen leciona e escreve, entre os casamentos, o funeral da mãe e o ingresso a contragosto no partido. Seu melhor amigo apregoa que o homem do bigodinho é uma piada, e que nunca irá vingar. Seu melhor amigo tem o sangue errado, na hora errada, no lugar errado. Em Paris existe o Museu das Armas, com pavilhão especial sobre a Segunda Guerra Mundial e o nazismo. Para quem um dia pensar que isso possa ter sido uma piada, vale visitar o museu. Documento com curadoria de expertismo mundial tem uma apresentação bem diversa dos rabiscos de Google e Youtube.
“Good” reza na sutileza, como preza a boa obra de arte. Não há nenhum peixe a ser vendido ali, exceto o do cinema em bom tamanho. Muito já se falou sobre esse tipo de cegueira, e aqui só não se transforma em chatice graças a habilidade dos mentores.
Não teria sido também a habilidade dos mentores do movimento da suástica, o fator primordial para a cegueira dos afiliados?