"Gran Torino" (Gran Torino)
Gran Torino (Gran Torino)
O irmão Fabio (espantoso como a gente encontra novos irmãos, na web), vocifera que eu faço resenhas com o mesmo capricho que os rinocerontes lustram os cascos. Pobres bichos. Precisam mesmo de um cuidado especial. Mal sabe o Fabio que me formei com distinção na Faculdade de Resenhas de Heresias, pequeno povoado litorâneo entre Maresias e Tufazias. Como não havia papel suficiente, de tanto que resenhávamos, utilizava-se um graveto, para resenhar nas areias de Heresias.
Com o tempo as coisas se sofisticaram, que nem a TV à cabo que hoje se desfruta no éter brasileiro. Porque ontem havia um canal, que exibia uns documentários de nível Além-do-Superior. Toda vez que lembro disso, suspiro, lembrando também das moças de Tufazias, prendadas resenhadoras.
Certa feita, saltou-me aos olhos um documentário sobre os bastidores da polícia nova-iorquina. Relação zero com tiros, violência, corrupção, corregedoria, etc. Tratava-se de um trabalho sobre as unidades policiais envolvidas com logística. Em determinado trecho, abordaram a “Asian Gang Unit”, e o duro labor de um esquadrão centrado num único objetivo: tentar entender os acontecimentos da vez. A comunidade chinesa em NY tem mais entranhas que um javali, ou, por que não, um rinoceronte, e a busca do esquadrão pela compreensão era obter um mínimo de discernimento, para que se alcançasse um mínimo de ordem, face às múltiplas facções, dialetos e costumes, de múltiplas ramificações de máfias chinesas. Período: 93/94.
“Gran Torino” por pouco não usa a carapuça dos seriados top de linha – um pano lá no fundo, sobreposto por pequenas ações que se desenrolam a cada episódio.
O pano lá no fundo = Clint Eastwood, na varanda de sua casa, dia a dia, com suas memórias latentes da guerra na Coréia, a recém viuvez, uma antipatia não dissimulada pelo mundo e uma raiva contida com os seus vizinhos, todos chineses. Todo o bairro, que antes deveria ter sido um encanto para o patriota septuagenário Clint, tornara-se infestado de chineses, as casas ainda muito parecidas, ruas arborizadas, gramados, mas na porta da casa dele, hasteada, paira a bandeira de listras e estrelas. A família ao lado, com seus ritos e rancores, prima pela fraternidade entre si e abomina uns primos pouco queridos, que andam num carro branco e usam metralhadoras.
Existe um lado positivo da questão “interpretar a si mesmo”. Quando o produto tem qualidade, o espectador termina por ansiar que o artista fique nos trilhos de sempre, para manter o encantamento.
Em se tratando do Clint, tal postulação agremia mais dois lados positivos, perfazendo assim 3 positivos, tudo errado nas leis da física e tudo certo nas leis do cinema. Clint atua, dirige, produz e ainda de quebra é um dos compositores da trilha, já que o ex-prefeito da esotérica Carmel também é um pianista, amante do jazz e do blues, tendo realizado neste século um documentário primoroso sobre jazz e blues.
Clint é o centro do filme, literalmente, e se ele já anda na casa dos setenta, cabe-lhe o papel de um aposentado, que passa as tardes na varanda, em silêncio, tomando umas breja. Não é de se esperar, portanto, um filme de ação. A grande sacada do astro, no âmbito da interpretação, foi ter juntado boa parte de todos os seus personagens num só, caso você o conheça desde os tempos em que ele cuspia a cada 5 minutos, no implacável “Josey Walles”, até o lacônico gerente de uma espelunca ringue de box, em “Menina de ouro”.
Talvez o paladar fique mais aguçado quando se conhece todos os temperos que compõem a iguaria. Talvez seja só impressão. Mas a expectativa do espectador é ver o astro de sempre, se você vai num show do Roberto Carlos, pretende ver o rei tal qual se plasmou e não como uma reinvenção do Alice Cooper. Espera-se que o Roberto cante, por exemplo, “Força estranha”. (Que ficou de arrasar junto com o Caetano...).
A força estranha do presente filme foi a capacidade de um artista conhecido, fazendo o que parece ser o de sempre, mas com a habilidade de surpreender.
O título é acertado, saberás no decorrer, não há porque não assistir, é o velho Clint de sempre, mas parece que sobrepuseram várias folhas de papel transparente, cada uma com um traço, sendo a soma do traçado o velho Clint, talvez com uma feição a mais – a experiência adquirida.
“Gran Torino” é uma aula despretensiosa sobre o básico da vida, sobre atitudes, sobre percebimento e a falta de, e, como diz o tal padre que sempre bate à porta do viúvo, “vim falar com o Sr., sobre a vida e a morte”. Clint não lhe dá ouvidos. Dois tópicos efêmeros, como as resenhas que eu fazia, nas areias de Heresias.