LORD OF WAR E HOTEL RWANDA – UM OLHAR SOBRE DOIS FILMES
O Senhor das Armas (Lord of war). Termino de assistir à película com uma grande sensação de impotência diante da denúncia do tráfico de armas no mundo. O filme dirigido pelo neozelandês Andrew Niccol é uma obra de ficção baseada em dados reais sobre o comércio clandestino de armas nas últimas duas décadas. O protagonista, Yuri Orlov, é um ucraniano de origem humilde que imigrou com a família para os Estados Unidos ainda na infância e cresceu convivendo com a violência urbana dos bairros pobres norte-americanos. Seu ingresso no tráfico de armas é a possibilidade de ascensão econômica e social e ele realiza suas atividades com precisão sem se preocupar com as conseqüências das suas operações. Suas atividades ganham um perfil renovado com o colapso da União Soviética, o abandono de armamentos sem o pagamento dos soldados, o fim da guerra fria e as inúmeras guerras travadas no Oriente Médio.
Um mundo à margem em que a prostituição, o tráfico de drogas, populações contaminadas pelo HIV, os excessos dos regimes ditatoriais, as intolerâncias religiosas e as guerras civil dos países africanos, estimuladas e mantidas pelos interesses ocultos das grandes potências, são argumentos intercalados num roteiro instigante com um final assustador. Os cinco maiores comerciantes de armas do mundo são membros do Conselho de Segurança da ONU.
A atuação dos grandes traficantes de armas nos países subdesenvolvidos é focalizada na relação do traficante com o ditador militar da Libéria e o armamento de grupos para acirrar os conflitos em Serra Leoa com o assassinato de vítimas civis. O ambiente poderia ser o comércio de armas soviéticas nas favelas do Rio de Janeiro, nos grupos guerrilheiros da América Latina, do Oriente Médio ou em qualquer outro país da África.
A impunidade é mostrada com sarcasmo no diálogo final do traficante de armas com o policial idealista da Interpol que tenta pegar Yuri em flagrante para, com sua prisão, por fim ao “comércio da morte”. O traficante mostra-se parte de um jogo poderoso, protegido por interesses das grandes indústrias armamentistas e da política de exclusão a que estão submetidos os países pobres. Deixá-los, entregues à miséria e à ignorância, sucumbir em guerras intermináveis. Um elo inquebrantável...
Assisto ao filme Hotel Ruanda (Hotel Rwanda), direção de Terry George, como uma complementação de Lord of War. Os ódios étnicos entre os hutus e tutsis, acirrados pelos interesses dos colonizadores belgas, são o estopim para o genocídio de 1994 em Ruanda iniciado por hutus radicais com a morte de milhares de civis, principalmente tutsis. O conflito surpreende o gerente do hotel luxuoso Des Milles Collines de um grupo belga que usa as dependências do hotel como um refúgio para salvar vidas. Paul Rusesabagina, negro hutu casado com uma tutsi, exerce um cargo que lhe dá prestígio e vive alheio à política. Apesar do contato estreito com os poderosos, o gerente do hotel, de uma hora para outra, vê a vida de sua família e de vizinhos em risco. A intolerância e a brutalidade dos radicais junto à indiferença do mundo e a passividade da ONU permitem os atos hediondos que não foram filmados ou reproduzidos na época. O que ocorria no “fim do mundo” não era do interesse das grandes potências. O filme dramático, baseado nos relatos de Paul Rusesabagina, retrata a fragilidade dos civis quando a comunidade internacional fecha os olhos e fica indiferente à tragédia das guerras civis em países africanos. Mulheres, crianças... O objetivo dos hutus radicais era fazer uma limpeza étnica e dizimar a raça (tutsi) que representava 14% da população e que, durante muitos anos, defendeu os interesses dos colonizadores belgas no poder.
Mais de uma década após o genocídio, a realidade de Ruanda ainda é de completo desamparo. Os grupos hutus continuam armados, o presidente do país, Paul Kagane, sustenta-se com um grupo reduzido de tutsis, a repressão governamental permanece intensa, 70% da população vive abaixo da linha da miséria, estima-se que há 380 habitantes por quilômetro quadrado de terras cultiváveis num país de economia agrária, os milhares de refugiados em países vizinhos não conseguem retornar a Ruanda, o assassinato de quase toda intelectualidade de Ruanda no genocídio impede o desenvolvimento, a justiça é lenta e ineficaz para julgar as responsabilidades: menos de dez por cento dos acusados do genocídio já foram levados a julgamento.
Hotel Ruanda, testemunho do genocídio de 1994, só foi exibido uma vez em Ruanda num estádio de futebol para dez mil pessoas. A maioria da população não verá o filme. Em Ruanda, não há cinemas.
O tráfico de armas e o crescimento da violência são retratos do mundo desigual, mapeado nos grandes interesses e na impossibilidade e ignorância da maioria da população mundial.