2046 (2046 - Wong Kar-Wai - 2005)
Ao correr pela internet procurando informações, críticas e debates sobre o mais novo filme de Wong Kar-Wai me deparei com um empecilho grave que se pôs à frente do texto de crítica do filme que faço agora. 2046 é um filme que mixa referências das outras obras e põe tudo em uma nova perspectiva.
Como não vi os outros filmes dele só vou me deter e comentar o que me passou essa e exclusiva obra.
O subtítulo que adicionaram na versão brasileira é totalmente incongruente com o filme e deveria ser retirado, já que prepara o espectador em uma contra-mão do que vai ser apresentado. O subtítulo “Os segredos do amor” sucinta uma idéia romantizada e abre espaço para expectativas a um filme romântico e leve. Ao contrário 2046 é um tanto down e nada leve, é arrastado, é denso.
2046 é sobre memórias e sobre o amor. Sobre, no mais profundo nível, sobre aquelas memórias que preferimos esquecer, ou daquelas que, ainda, preferimos lembrar durante toda nossa existência.
O escritor Chow Mo-Wan é um escritor medíocre que consegue sobreviver com seus textos, sempre passeando pelos estilos, que vende para jornais. Ele se envolve com mulheres que despertam sentimentos distintos, dependendo do momento e com quem se envolve.
A história mostra como o medo, o ressentimento, a marca e demais desdobramentos dos relacionamentos grudam na pessoa e passam a interferir em sua vida. Chow Mo-Wan é na maioria das vezes distante e indiferente quanto às pessoas com quem se relaciona, projetando nelas o que mais tem dentro de si mesmo. Desconfianças. Tendo uma exagerada dose de desconfiança ele não consegue se entregar a ninguém, fato brilhantemente mostrado em um diálogo onde certa personagem pergunta se ele pode se emprestar à ela por uma noite apenas, respondendo logo em seguida que a única coisa que ele prometeu pra ele mesmo nunca emprestar era ele mesmo. Triste, mas muito sincero.
Ao longo da estória vamos vendo vários momentos da vida do escritor, sem que elas, contudo, apareçam bem definidas e em ordem cronológica certa, o que vale reparar é o modo como ele enfrenta e é defrontado por cada situação em cada parte de sua vida, algo muito bem retratado pela ótima interpretação de Tony Leung Chiu Wai. Deixando sempre aquela distância em relação ao que se passa e às vezes conquistando um pouco da simpatia do público. Pelo menos aquele que consegue identificar que mesmo querendo agir de uma outra maneira ele se mantém fiel a si mesmo.
O amor estampado na tela ao longo dos 127 minutos do longa não é um só, nem tampouco é aquela maravilha de amor em qual o final triunfa com uma explosão de alegria e regozijo pela felicidade. A cena final transparece claramente o estado solitário e introspectivo de cada um ao sofrer.
2046 é a metáfora perfeita do eterno descontentamento do ser humano com tudo o que vive. Ele idealiza futuros baseado nos passados vividos e suas conseqüências, nunca conseguindo se entregar ao momento que vive inteiramente, principalmente no quesito abordado pelo filme. O amor.
É de nossas memórias que vivemos e nos alimentamos o tempo inteiro, e meio que para se livrar ou se afundar nelas que o escritor transforma momentos de sua vida no que vem a ser a estória paralela, um ci-fi inserido como paralelo dos desejos e alternativas da vida que ele vive, todas também sempre frustradas e nunca concretizadas.
Passei até agora em meu texto explicitando quesitos do conteúdo narrativo do filme, mas devo ressaltar que a experiência é muito mais visual e auditiva que propriamente narrativa.
Os planos e enquadramentos arrumados pelo cineasta são primorosos, e aqui valendo ressaltar uma cena em especial. Há uma cena em que há um casal jantando e a câmera passeando por detrás de superfícies reflexivas consegue um plano absolutamente delirante em que, enquanto vemos a conversa desenrolar, vemos cada personagem derreter e se transformar em um amontoado de reflexos indistintos e logo vemos o outro personagem falando, que vai ser derretido logo após, em umas três ou quatro passagens temos uma das cenas mais lindas do filme.
A fotografia explosiva do filme é também algo que densifica a experiência. As cores são altamente vibrantes e cada claro e escuro as contrapõe saltando a vista nesse misto de mistério e desembaraços em que somos jogados no desenrolar da estória.
Além dos magníficos planos, à encorpada fotografia temos a trilha sonora que vem em tom, altura, composição e arranjos certos para aumentar a experiência visual. Com músicas que vão dos boleros 60´s até composições próprias e recentes ela encaixa-se perfeitamente tornando mais ou menos aparentes sentimentos exaltados de outras formas na tela e sempre de acordo com o tom do momento.
Devido a sua montagem um tanto quanto errática e com um arrastar pesaroso, o filme se torna um teste a concentração do espectador que se não conseguir manter-se atento começa a viajar na viagem do diretor.
Muito mais como um exercício de estilo e capricho 2046 ainda consegue passar seu desespero quanto às nossas memórias e relacionamentos, jogando toda a hora com o jogo que chamamos de vida em que os jogadores não sabem que estão efetivamente jogando até que se dêem conta que tudo o que fazem afeta a própria vida e a vida de outrem dali a 1 hora, 100 horas ou quiçá 1000 horas. Todas as jogadas proferidas pelos jogadores são a risada veemente da vida com seus resultados, e no final a única coisa que sobra são nossas memórias a fim de nos lembrar o quanto somos inúteis em nossas aspirações, orgulhos, escolhas, freadas e atitudes, principalmente naquelas que fulguram durante mais de duas horas na telona, nas amorosas.