Quem vigia os vigilantes?
Em tempos de tentativa de golpe, assassinato do presidente e militares assanhados com a possibilidade de volta ao poder… li Watchmen que por muitos é considerado a obra prima dos quadrinhos. Não vou falar aqui sobre aquele filme tosco do Snyder ou da série da HBO que também nem vi direito, e sim sobre o que fizeram Alan Moore e Dave Gibbons, lá nos meados da década de 80.
Nem se eu quisesse eu conseguiria comentar a história em si. São tantas camadas, tantos diálogos, imagem e texto se complementando, tem muita coisa. As vezes só os desenhos de Gibbons por algumas páginas, dando um ar para cabeça do leitor, entre as longas conversas escritas por Moore. Gibbons que cá entre nós, foi muito mais que um ilustrador e colorista, dirigiu como se tivesse uma câmera na mão, parecendo um filme mesmo e conseguiu passar no papel de uma maneira muito elegante e poética a maioria das vezes.
A história muito simplificadamente é: depois de uma greve de policiais, seres mascarados, ditos como heróis foram colocados na ilegalidade, e os únicos que ainda detinham privilégios eram os que trabalhavam para o governo, o Comediante, que é morto na primeira página da HQ (kkk) e o Dr. Manhattan, esse sim, um super-herói, com poderes, onipresente e onisciente, meio Deus, mas a medida que vai "perdendo a sua humanidade" vai também, perdendo as roupas e indo parar nu em Marte, no seu exílio. Pode parecer um fato cômico, mas nada nesse quadrinho é aleatório, tudo está ali por um motivo, tudo faz parte de uma grande teia de informações e símbolos e que cada vez fica mais complexo dentro de uma história maluca. Depois da morte do Comediante, Rorschach um herói na ilegalidade começa a investigar a morte do seu ex-companheiro de time, dando um fundo paranoico e noir a revista. Para fechar a escalação do elenco temos, Ozymandias, que na verdade seja o principal? Talvez…Homem-Coruja e Espectral, o núcleo romântico da HQ.
Tudo sobre Watchmen é sobre o tempo. Nas últimas folhas de cada edição um relógio vai se aproximando da meia-noite, dando um toque de contagem regressiva com cada vez mais sangue em volta e junto com uma sensação incrível de que algo vai acontecer, somado com os desenhos de capa, vai nos dando agonia, uma sensação de desespero velada, uma espécie de "fodeu, algo horrível vai acontecer" e acontece, talvez eu não estivesse preparado para aquele fim pesado, talvez as pessoas de 40 anos atrás o estivesse, devido ao contexto, um Holocausto Nuclear poderia acontecer a qualquer momento, além desses mascarados todos, a história dá a versão das pessoas comuns, que vão se entrelaçando conforme o conto avança, vamos criando empatia com o povo da vida cotidiana, e quando lá no fim acontece o que aconteceu, temos dó daquela gente, fiquei com a sensação de que poderia facilmente ser qualquer um de nós.
Quando era mais novo li apenas o capítulo I, agora tive a oportunidade de ler os 12 agora, confesso que tem momentos da história que fica maçante os longos diálogos, principalmente no conto do navio negreiro, que mesmo sendo estranho e as vezes chato de se ler, é uma metáfora para tudo ali que está no enredo, como disse, nada está jogado, tudo faz sentido no fim, até as notícias estrategicamente colocadas que escritores desapareceram, no final faz todo o sentido. Mais uma vez, nada está ali por acaso. Talvez se tivesse lido mais cedo na vida, teria me apegado a várias coisas, mas como outras obras do Moore, uma sensação de melancolia e dos aspectos mais sujos da humanidade saltam bem na sua cara.
A HQ mergulha fundo na psique dos personagens, mas quando o autor deixa o final em aberto, talvez ele mal sabia que Rorschach, virasse algo que a extrema-direita pudesse usar. O personagem é maniqueísta, que enxerga apenas o bem ou o mal, mas que dentro do preto e branco, expões seus defeitos e virtudes, demonstrando que o buraco é mais embaixo do que a gente pensa. Numa sociedade polarizada, em que as emoções contam mais na leitura de cada um, do que os fatos que podem ser comprovados, você abre possibilidades para qualquer tipo de leitura em qualquer espaço de tempo, adaptando para qualquer contexto e mesmo sendo errada ou anacrônica, continua sendo uma leitura. Ou talvez ele sabia, e deixou assim, e tudo isso viria a calhar no que ele pensa sobre heróis nos dias de hoje, que nada se resolve num estalar de dedos, e se na última década a onda fascista tomou seu espaço no lado público, precisamos ver o que estava em cartaz nos cinemas, a maioria filmes de herói. Moore renega até os direitos autorais de Watchmen, vai tudo para a caridade, muito por causa dessa leitura deturpada da mesma. Sim, as pessoas se acostumam e querem tudo na canetada, decisões democráticas, tendem a demorar e isso cria espaço para tentar envenenar o presidente, matar o vice, e explodir o ministro do STF.
Se Watchmen nasceu para criar uma nova fase das HQ's de super-heróis, depois da era de ouro e de prata, mais do que conseguiu, criou uma nova percepção sobre esse mundo, criou o seu próprio legado. Lançado no mesmo ano que Batman: Cavaleiro das Trevas e Maus, conta com essas um aspecto mais humano e mais cru desses ditos super-heróis. Eu preciso ler de novo e de novo, sei que vou encontrar coisas novas, mas primeiro preciso digerir o fim do capítulo XI e o começo do XII.