Mutilação genital feminina

 

MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA

Miguel Carqueija

 

Resenha do livro condensado “Flor do deserto”, por Waris Dirie e Cathleen Miller. Título original: “Desert flower”, copyright Waris Dirie, 1998, publicado por William Morrow e Co., Inc, Nova York, EUA. Condensação publicada na revista “Seleções” de junho de 2000, edição brasileira de “The Readers Digest”.

 

Embora se trate de livro condensado — como centenas de outros editados pela Seleções — o texto que me chegou ao alcance já é bastante revelador sobre essa infame prática que ocorre em dezenas de países africanos e chega até a Europa através de imigrantes.

Waris Dirie é uma heroína somaliana, que precisou fugir de casa e depois sair do país para escapar da escravidão imposta a tantas mulheres por conta de tradições primitivas.

“Minha família era uma tribo de pastores no deserto da Somália. E, quando criança, a liberdade que eu tinha de apreciar as paisagens, sons e perfumes da natureza, era pura alegria.”

Mas essa alegria acabou logo: “Aos 5 anos descobri o que era ser mulher na África e ter de conviver com um sofrimento terrível, de maneira passiva. As mulheres são a espinha dorsal da África; elas fazem a maior parte do trabalho. No entanto, não têm poder de decisão. Não podem opinar, às vezes nem na escolha do futuro marido”.

A futura modelo célebre conta suas origens humílimas e como decidiu fugir com 13 anos. Isso aconteceu porque o pai de Waris decidiu casá-la com um velho. Ela contou à mãe sua intenção e esta a acordou de noite e disse para a filha ir.

“Olhei em volta, mas não havia nada para levar — nem água, nem leite, nem comida. Assim, descalça e envolta apenas num manto, lancei-me na negra noite do deserto.”

Na jornada à capital Mogadício, onde morava uma tia, ela chegou a encontrar um leão. Mas o felino, depois de estudá-la um pouco, foi embora, desprezando presa tão pequena. “Quando percebi que o leão não ia matar-me, compreendi que Deus tinha outros planos, algum motivo para manter-me viva”.

Waris, com a família, era pastora nômade de cabras e ovelhas. Seu nome era da flor do deserto da Somália. Ela poderia ser feliz naquela vida, se não fossem os costumes bárbaros. Pois aos 5 anos ela foi submetida à terrível mutilação genital — a extirpação do clitóris.

“E, uma vez que a crença predominante na Somália é a de que há partes ruins entre as pernas da mulher, a jovem é considerada suja, lasciva e imprópria para o casamento, a não ser que o que há de ruim — o clitóris, os pequenos lábios e a maior parte dos grandes lábios — seja removido. Então, a ferida é costurada, deixando-se apenas uma pequena abertura e uma cicatriz no local antes ocupado pelos órgãos genitais. A essa prática chama-se infibulação.”

Prestem atenção! Esta “cirurgia” horripilante é praticada por mulheres que nem da classe médica são, em procedimentos mal feitos, dolorosíssimos e altamente perigosos. No caso de Waris: foi operada por uma cigana, sem anestesia e utilizando uma gilete quebrada. Pior, a mulher cuspiu na lâmina e enxugou o cuspe no vestido. Waris chegou a desmaiar.

“Sofri em consequência da circuncisão, mas tive sorte. Muitas meninas morrem de hemorragia, choque, infecção ou tétano. Considerando-se as condições em que o procedimento é executado, o surpreendente é que algumas de nós sobrevivam.”

Como deixam apenas uma abertura minúscula, o ato de urinar é um tormento e dura muito tempo.

Percebem o horror disso tudo? Segundo Waris, “A mutilação genital é uma prática predominante na África, onde ocorre em 28 países, mas há relatos de casos nos Estados Unidos e na Europa, entre o grande número de imigrantes africanos. (...) As operações em geral são feitas em condições primitivas por mulheres da aldeia, utilizando facas, tesouras e mesmo pedras afiadas. Não usam anestésicos”.

Waris foi parar na Inglaterra, onde trabalhou para uma tia. Ela explica como às vezes membros ricos das famílias usam membros pobres como serviçais. Mas Waris conseguiu, por sua beleza, tornar-se modelo, e também submeteu-se a uma operação para reabrir seu corpo, voltando a poder urinar normalmente.

“Por causa de um ritual cruel, muitas mulheres do continente africano passam a vida sofrendo.”

Através das Nações Unidas, Waris tornou-se enfim uma ativista pelos direitos das mulheres africanas, lançou-se numa cruzada contra a infâmia da mutilação genital.

“Rezo para que um dia ninguém mais tenha de sentir dor e que tal prática se torne um fato do passado.”

Palmas para essa grande mulher.

 

Rio de Janeiro, 16 de junho de 2024.