Fecha o que o olho neste instante abriu como fresta - Prefácio do Livro Cinquenta por William Teca
Whether ‘tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles
And by opposing end them.
Disse certa vez um poeta carioca – não sem uma certa
dose de ironia, que: “poesia é sentir e dar sentido”, dentre as
inúmeras tentativas de estabelecimentos de conceitos daquilo
que se possa chamar poesia (e os seres humanos, como seres
do/com o logos têm um certo fascínio por definições palpáveis
para reificar o mundo e pegá-lo com a mão – o fantasma da
técnica nos assombra mais do que o da poesia, ainda que sejam
irmãos), e sabendo que é mais fácil optar pelo simples do que
por tergiversações complicadas que exigem piruetas de justificativas, essa me parece ser uma excelente definição.
Como todas as definições simples, essa é uma definição
complicada, pois, para seu entendimento, apesar da aparente
obviedade de sua compreensão, ela guarda em si, quando vista
mais de perto, uma série de camadas cujo requinte exige uma
certa dose de refinamento para ser efetivamente captada.
Todo mundo sente, embora esse “sentir” possa ser interpretado de diversas maneiras, ainda mais quando se trata de
poesia e de arte, em que é lugar comum pressupor que a o
universo artístico é o espaço do sentir por excelência, o significado da palavra está mais ao rés do chão do que o voo metafísico propõe. Quem sente sente: frio, calor, fome, sede e todas
as determinações físicas que os sentidos nos permitem, ainda
que, num passo além, também sintamos raiva, amor, tristeza e
toda uma gama de coisas que dependem de um outro tipo de
parafernália.
Comumente, ao poeta cabe esse segundo aspecto e muito menos o primeiro – é como se essa criatura das nuvens (o
poeta) vivesse sete palmos acima da terra, transitando efêmero
e fugidio como um espírito, sem corpo, somente “alma”. E é
aqui, justamente, onde reside um dos maiores equívocos. O
poeta, meus caros – pasmem – é de carne e osso, e é graças a
isso que ele é capaz de (literal e literariamente) estar no mundo
e, a partir dessa sua existência, falar.
Todo mundo fala, embora nem todos digam algo diferente do ruído – o mundo é um lugar muito barulhento. Eis o
segundo elemento de nosso conceito: “dar sentido”. Em meio
a essa algaravia i-munda (porque cheia de mundo), o poeta é
aquele capaz de alçar seu discurso acima das outras vozes, incorporando-as e fazendo delas sua matéria prima, e nesse ato
estabelecer a diferença entre uma poesia que seja real e palpável
como um soco na cara e aquela dos lugares comuns dos nefelibatas que pararam no tempo e ainda pensam que poesia fala de
algo que não seja aquilo que está sendo sentido com o corpo,
antes de ser sentido com a “alma”.
II
É no corpo que mora a poesia de Júlio, é na sua vivência
e combate com a vida (gozando vez por outra o armistício do
vinhozinho que ninguém é de ferro, mas só para ter um tempo
de lustrar as armas) que percebemos o suor do corpo nas andanças e no despertar cotidiano que espanta e dá o que falar.
É na carne que ele sente e dá sentido, seja no rasgo visceral de
versos como:
Asfixia
Versificar é moer o grito
Do não-sonoro com as mãos do ouvido.
Estender a presa respiração e
O suspiro.
O desenho
Invade a tesoura do infinito.
A imagem da tesoura que corta não apenas o infinito,
mas também a realidade sensível e sentida, numa costura que
alinhava o discurso poético de maneira inusitada e marcante,
define bem a temática e a postura de Júlio na sua disposição
afetiva fundamental de poeta que vive e que não teme o nu,
o cru e o carnal. Mas, por vezes, sem perder a sutileza de um
quase-afago:
Farpas
Faca por aqui não é
Arma branca
É arma branda.
Armados de Tenazes
Dissimulares
Com garras de angústias
E sombra nos olhares
Os outros e os outros
Em mim combatem:
A luz da minha sombra.
Bem dito que “a mesma mão que afaga esbofeteia”, além
do óbvio parentesco temático que vez por outra compartilham,
creio que Júlio e Augusto possuem a capacidade de transitar
não somente entre a agressividade e doçura (numa antítese
que estilisticamente captamos como recurso em seus fazeres),
mas também de evidenciar em seus versos o inaudito irônico
(no sentido mais duro do termo ironia) da eterna pergunta de
Hamlet.
E tudo isso, graças à capacidade de ter escolhido a clave
fundamental da vida que é viver, e não apenas se alimentar de
espírito e letras nos gabinetes limpinhos da virtualidade plástica
que nos assola enquanto leitores de poesia (e como há poetas!),
a poesia de Júlio tem sim o cheiro do humano e, mesmo que
vez por outra O corvo paire, somente os desavisados julgam que
é da morte que se trata. Poesia (e dou cá uma definição que me
agrada) é acima de tudo “viver e dar vida”, à palavra, ao sentimento e ao que nos define na eterna procura das definições de
nós mesmos.
O livro de Júlio traz bem mais do que cinquenta poemas,
traz cinquenta anos de vida.
Este medo tem medo de existir
Não tenha medo de desistir
De ter um medo assim
Segue o baile.