A História de Chapeuzinho Vermelho (na versão do lobo)
Texto Original, disponível em https://www.educlub.com.br/a-historia-de-chapeuzinho-vermelho-contada-pelo-lobo/
O conto do lobo
O bosque era meu lugar. Eu vivia ali e gostava muito. Sempre tratava de mantê-lo limpo e organizado. Um dia ensolarado, enquanto estava recolhendo o lixo deixado por umas pessoas que estiveram ali acampadas, escutei passos. Escondi-me detrás de uma árvore e vi como vinha uma menina vestida de forma muito divertida: toda de vermelho e sua cabeça coberta, como se não quisesse que a vissem. Andava feliz e começou a cortar as flores de nosso bosque, sem pedir permissão a ninguém. Talvez não lhe tenha ocorrido que essas flores não lhe pertenciam. Naturalmente, fui investigar. Perguntei-lhe quem era, de onde vinha, aonde ia, ao que ela respondeu, cantando e dançando, que ia à casa de sua vovozinha com uma cesta para o almoço.
Pereceu-me ser uma pessoa honesta, mas estava no meu bosque, cortando flores. De repente, sem nenhum ressentimento, matou um mosquito que voava livremente, pois também o bosque é para ele. Dessa forma, decidi dar-lhe uma lição e o sério que é estar no bosque sem se anunciar antes e começar a maltratar seus habitantes.
Deixei-lhe seguir seu caminho e corri até a casa da vovozinha. Quando cheguei, abriu a porta uma simpática velhinha. Expliquei-lhe a situação e ela esteve de acordo com que sua neta merecia uma lição. A vovozinha aceitou permanecer fora da vista até que eu a chamasse e se escondeu debaixo da cama.
Quando chegou a menina, convidei-a a entrar no quarto onde eu estava deitado, vestido com a roupa da vovozinha. A menina chegou, sorridente e me disse algo desagradável sobre minhas grandes orelhas. Fui insultada antes, mas tratei de ser amável e lhe disse que minhas grandes orelhas eram para escutá-la melhor. Pois bem, me agradou a menina e tratei de dar-lhe atenção, mas ela fez outra observação humilhante sobre meus olhos grandes. Vocês compreenderão que comecei a me sentir com raiva. A menina tinha bonita aparência, mas começava a me parecer antipática. Entretanto, pensei que devia dar a outra face e lhe disse que meus olhos me ajudavam a vê-la melhor. Mas, seu seguinte insulto me deixou com muita raiva. Sempre tive problemas com meus grandes e feios dentes e essa menina fez um comentário, realmente, grosseiro. Sei que deveria ter me controlado, mas pulei da cama e rosnei, ensinando-lhe toda minha dentadura e dizendo-lhe que eram assim de grandes para comê-la melhor. Agora, pensem vocês: nenhum lobo pode comer uma menina. Todo o mundo sabe disso. Mas, essa menina começou a correr por todo o quarto gritando e eu corria atrás dela para acalma-la. Como tinha colocada a roupa de vovozinha e me incomodava para correr, eu a tirei, mas foi muito pior. A menina gritou ainda mais. De repente, a porta se abriu e apareceu um lenhador com um machado enorme e afiado. Eu o olhei e compreendi que corria perigo, por isso saltei pela janela e escapei.
Gostaria de lhes dizer que este é o final da história, mas, por desgraça, não é assim. A vovozinha jamais contou minha parte da história e não passou muito tempo sem que corresse a voz de que eu era um lobo mau e perigoso. Todo mundo começou a me evitar. Não sei o que passará a essa menina antipática vestida de forma tão estranha, mas sim posso dizer que eu nunca pude contar minha história. Agora vocês já a sabem.
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REFLEXÃO
É muito interessante a perspectiva na qual o texto trabalha: desenvolver um conteúdo a partir de um ponto de vista contrário ao da narrativa original de uma maneira bastante criativa e inovadora com requintes de bom humor. A fábula original apresenta o lobo como o vilão da história, atribuindo já no título da peça o adjetivo da maldade. Mas analisando a história do animal humano como parte da natureza, constatamos que o racionalismo do homo sapiens provocou uma enorme predação da natureza, e nesse aspecto, a adaptação da história assume uma sensibilidade em prol da preservação ambiental. Este é um bom exemplo de como uma situação tradicional, cotidiana, muito explorada dentro de uma determinada cultura pode oferecer pontos de vistas totalmente diferentes. No entanto, alguns conceitos estão fortemente pré-estabelecidos como um padrão de verdade indiscutível e muitas vezes, uma opinião diferente pode causar certo desconforto e trazer problemas, pois discordar, na maioria dos contextos de iteração social, independente do tipo de assunto, acaba gerando uma competição de opiniões e uma elevação de inimizades. É preciso ter bom senso para que nossas críticas sejam fundamentadas em conhecimentos sólidos e não desrespeitem as opiniões diferentes, e acima de tudo devemos colocar em prática com humildade aquilo que o falecido astrônomo Carl Sagan nos ensinou de uma maneira sublime: “O brilhantismo intelectual não é garantia contra estar enganado”.
Adorno e Horkheimer, na obra Dialética do esclarecimento, ao perceberem que a imaginação é mais bem aceita do que o conhecimento e na perspectiva filosófica conclui que “a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal”. Por outro lado eles defendem que a superioridade do homem está de fato na sua capacidade de conhecer seja como sociedade, ou como individuo. O desafio é compreender e ensinar que não existem verdades absolutas e é importante saber que mudar de opinião a partir de fundamentos sólidos significa uma forma de evolução, como aconteceu com o caso de Galileu Galilei, quando a igreja católica assumiu que estava equivocada. Outra questão interessante é a ideia de que quanto mais conhecimento adquirimos, maiores se tornam as nossas dúvidas. O Livro A Ilha do Conhecimento do Astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser explora a metáfora de uma ilha representando nosso conhecimento, e o oceano o desconhecido. Mesmo que a nossa ilha fique cada vez maior, as margens com o desconhecido também ficam cada vez maiores, e a história da ciência ao longo do tempo é uma constatação dessa forma de pensar, como por exemplo, podemos citar a famosa frase de Isaac Newton “se enxerguei mais longe é porque me apoiei em ombros de gigantes”, ou seja, a epistemologia é uma área que está em constante evolução, uma forma de pensar que nos remete a Heráclito que defendia que tudo está em uma eterna forma de mutação. E não devemos nos esquecer do que a psicologia e a neurociência têm mostrado sobre o efeito Dunning Kruger, o qual sugere que pessoas pouco especializadas em determinado assunto tendem a superestimar sua habilidade, o que pode causar uma forma errônea de pensar e julgar. Por fim é importante agir com cautela ao trabalhar nossas certezas, elas são traidoras e devemos tratar a dúvida como a fagulha que nos leva a chama do conhecimento.