Exemplos de Poemas dos Poetas realistas portugueses
IDÍLIO
Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;
Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:
Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces
O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.
Antero de Quental
A UM POETA
(surge et ambula)
Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…
Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!
Antero de Quental
HINO À RAZÃO
Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.
Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.
Por ti, na arena trágica, as nações
buscam a liberdade entre clarões;
e os que olham o futuro e cismam, mudos,
Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
Antero de Quental
A miséria é um horrível sorvedoiro;
Vamos! enchei-o com punhados d'oiro,
Mostrando assim aos olhos das nações
Que é impossível já hoje (isto consola)
Morrer de fome alguém, pedindo esmola
Na mesma língua em que a pediu Camões!
Guerra Junqueiro
Guerra Junqueiro
A Benção da Locomotiva
A obra está completa. A máquina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas, antes de partir mandem chamar a Igreja,
Que é preciso que um bispo a venha baptizar.
Como ela é com certeza o fruto de Caím,
A filha da razão, da independência humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,
E convertam-na à fé Católica Romana.
Devem nela existir diabólicos pecados,
Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais
Saem da natureza, ímpios, excomungados,
Como saímos nós dos ventres maternais!
Vamos, esconjurai-lhes o demo que ela encerra,
Extraí a heresia ao aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,
E há-de ser com certeza um pouco protestante.
Para que o monstro corra em férvido galope,
Como um sonho febril, num doido turbilhão,
Além do maquinista é necessário o hissope,
E muita teologia... além de algum carvão.
Atirem-lhe uma hóstia à boca fumarenta,
Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
E lancem na caldeira um jorro d'água benta,
Que com água do céu talvez não possa andar.
Guerra Junqueiro
DE NOITE
Ele vinha da neve, dos trabalhos
violentos, custosos, da enxada,
cantando a meia voz, pelos atalhos.
A mulher, loura, infeliz, resignada,
cosia junto à luz. O rijo vento
batia contra a porta mal fechada.
Ao pé havia um Cristo, um ramo bento
e uma estampa da Virgem, colorida,
cheia de mágoa, olhando o firmamento...
Uma banca de pinho, mal sustida.
vacilante nos pés; um candeeiro,
companheiros daquela negra vida.
O homem, alto, pálido, trigueiro,
entrou. Tinha as feições queimadas, duras.
dos que andam, com a enxada, o dia inteiro.
A mulher abraçou-o. As linhas puras
do seu rosto contavam já tristezas
de grandes e secretas amarguras.
Tinha chorado muito as estreitezas
daquela vida assim!... Talvez sonhado
um dia com palácios e riquezas!
Ele deitou-se a um canto, fatigado
de erguer-se, alta manhã, todos os dias.
mal voavam as pombas do telhado.
Lá foca, nuvens grossas e sombrias
no pesado horizonte. Ele assim esteve
– as noites eram ásperas e frias -.
Ela cobriu-o duma manta leve,
esburacada, velha. No telhado
ouvia-se cair, sonora, a neve.
E, àquela hora da noite, por que trilhos
andariam no mundo – ela cismava -
nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!...
Ele, na manta velha, ressonava.
Gomes Leal Claridades do Sul
A SESTA
Na rede, que um negro moroso balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e dormita,
enquanto a mucamba nos ares agita
um leque de plumas.
Na rede perpassam as trémulas sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso embalada,
pendidos os braços da rede nevada
mimosos e nus.
Na rede, suspensa dos ramos erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de flores;
aos guinchos dá saltos na esteira de cores
felpudo sagui.
Na rede, por vezes, agita-se a bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
que triste colono por noites formosas
descanta chorando.
A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
de negros cativos os cantos magoados
soluçam no ar.
Na rede olorosa... Silêncio! Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede serena;
mestiça, teu leque de plumas acena
de manso, de manso...
O vento que passe tranquilo, de leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto sentido;
as rodas do «engenho» não façam ruído,
que dorme a sinhá!
Gonçalves Crespo Miniaturas
DE TARDE
Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aquarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde
O LIVRO DE CESÁRIO VERDE (extracto)
O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL
I
AVE-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.
Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.
E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.
Cesário Verde
AO GÁS
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!
Cesário Verde
A GERMANO MEIRELES
Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.
Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?
Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!
Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!
Antero de Quental
O CONVERTIDO
Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.
Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!
Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!
Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!
Antero de Quental
MORS-AMOR
Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,
Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz «Eu sou a morte»,
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor».
Antero de Quental
EVOLUÇÃO
Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…
Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo…
Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…
Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.
Antero de Quental
SOLEMNIA VERBA
Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...
Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!
Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,
Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.
Antero de Quental
O VISIONÁRIO OU SOM E COR
1
Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.
Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,
passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,
enquanto o mar produz o monstro azulejado
e Deus, em cima, faz as verdes primaveras.
Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
e erro como estrangeiro ou homem doutras eras,
talvez por um contrato irónico lavrado
que fiz e já não sei noutras subtis esferas.
A espada da Teoria, o austero Pensamento,
não mataram em mim o antigo sentimento,
embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...
E obedecendo ainda a meus velhos amores,
procuro em toda a parte a música das cores,
– e nas tintas da flor achei a Melodia.
Gomes Leal
REGRESSO AO LAR
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...
Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!
Guerra Junqueiro Os Simples
O ETERNO FEMININO
Ninguém vive sem amor,
Neste mundo sub-lunar.
Cada pomba tem seu par,
Cada zagala um pastor.
O doirado pica-flor
Ama a rosa-de-toucar;
Enfim, na terra e no mar,
É Ele o rei, o senhor.
Pois que amar é lei sem metas,
Amemos, cantando aos ventos
As nossas musas dilectas.
Até os próprios jumentos
Têm, como nós os poetas,
Burras dos seus pensamentos.
João da Penha Canto do Cisne
A CARNE
A Cândido de Figueiredo
Carne mimosa, carne cor de rosa
Nada mais sois, oh anjos, na poesia
Dos vates dissolutos de hoje em dia,
Nos romances de amor, hedionda prosa.
A vossa alma gentil, ideal, mimosa,
Nestas idades de descrença ímpia,
Como escondida, numa estátua fria
Sonha e não voa, de voar medrosa!
Anjos chorai o Amor! Com voz dolente
Dizei-lhe adeus! Bronco recife
Se apruma entre ele e vós, cruel, ingente:
Que par mais que de vinhos o borrife,
Ninguém gosta de ver, continuadamente,
Diante de si, fatal, o mesmo bife!
João da Penha Novas Rimas
FÁBULA ANTIGA
No princípio do mundo o Amor não era cego;
Via mesmo através da escuridão cerrada
Com pupilas de Lince em olhos de Morcego.
Mas um dia, brincando, a Demência, irritada,
Num ímpeto de fúria os seus olhos vazou;
Foi a Demência logo às feras condenada,
Mas Júpiter, sorrindo, a pena comutou.
A Demência ficou apenas obrigada
A acompanhar o Amor, visto que ela o cegou,
Como um pobre que leva um cego pela estrada.
Unidos desde então por invisíveis laços
Quando a Amor empreende a mais simples jornada,
Vai a Demência adiante a conduzir-lhe os passos
António Feijó, Sol de Inverno, 1922
(A JOÃO PENHA)
Sossega: não troquei a lira da vingança
Pelo doce arrabil dos velhos trovadores,
E em nada justifico, eu penso, os teus furores,
Saudando uma mulher, beijando uma criança!
Courbet que tem pintado as corrupções da França,
Não sabes o que fez? desenha, às vezes, flores!
E o realista audaz, cruel, dos Britadores,
Na tela diminuta o braço então descansa.
Oh! não conheces bem quanto eu sou generoso!
Entrega-te uma vez ao momentâneo gozo
Dum creme perfumado e um cálix de madeira,
Que não te acusarei, João, de apostasia!
Tu és sempre o cantor que poz salchicheria,
Mas que um momento esquece a musa salchicheira!
Guilherme Azevedo