O desabafo do homem total

O DESABAFO DO HOMEM TOTAL
Miguel Carqueija

Resenha do conto “O desabafo do homem total" (homo totus), de Helando Marques de Souza, dentro do livro “Você! Você gostaria de desabafar?” – Editora Vozes, Petrópolis, 1988.

Esse conto de ficção científica encontra-se isolado numa coletânea de histórias que têm por tema principal o desabafo de pessoas angustiadas — especialidade do autor, que é plantonista do CVV-Samaritanos e do Telefone Amigo. A idéia central do livro é que desabafando, contando seus problemas a alguém que tenha paciência para escutar, a pessoa atormentada obtém assim uma redenção, ou descobre a solução. Ao interlocutor não caberia muita coisa senão escutar, dialogar, fazer perguntas que levem a conclusões úteis, sem dar conselhos e sem interferir nos acontecimentos. Uma tese discutível mas que não cabe aqui analisar.
Vou falar apenas do único conto que pode ser classificado como ficção científica, e que fecha o volume. Um cientista dialoga interminavelmente com um homem pré-histórico encontrado numa geleira e que, descongelado, mostra ser conhecedor de todos os idiomas existentes. O diálogo, transmitido pela televisão, provoca tamanho impacto político-social que os dois são obrigados a se esconder. Eles são, portanto, personagens tipo “salvadores da humanidade”, arquetípicos, e a validade do conto fica dependendo muito da validade da mensagem.
Acontece que, de início, o primitivo sábio não fala como filósofo ou guia da humanidade. Começa dizendo coisas assim: “Já não tenho mais lágrimas. Aliás minhas lágrimas se transformaram em vingança.” E logo depois: “Tenho prazer com o sofrimento alheio”. Eis como começa quem tem uma mensagem transcendental ao mundo!...
O cientista conduz o diálogo evitando se comprometer, apenas sugerindo ou puxando pelas sucessivas revelações do “Homo Totus”. Parece até um plantonista do CVV, que dialoga à base de perguntas e insinuações.
A mensagem é de natureza ecologico-transcendentalista. O “Homo Totus” refere-se seguidamente à “Mãe Natureza”: “A mãe não está satisfeita com a poluição, principalmente a poluição do homem contra ele, ou melhor, dentro dele mesmo e fabricada por ele mesmo. Isto é auto-extermínio, e a mãe não aprova”. A apóstrofe do primitivo atinge as asas delta, o boxe, as corridas de automóvel, a roleta russa, os tóxicos, o álcool e (pasmem) até o xadrez, que ele considera “autodestrutivo”. Ele compara os antigos cataclismos — que situa há milhões de anos (aumentando de muito a idade que os antropólogos calculam para a raça humana) — com os atuais. Sua descrição do passado é tétrica: “Subiam montanhas de fogo, aquelas ondas, hoje inofensivas, levantavam-se num cenário aterrador, com sede de devorar a todos nós (...) Muitos, centenas corriam em fuga (...) mas sobravam poucos, muitos ficavam naqueles rios que, na época, eram de terra fervente, lavas derretidas que a mãe usava para nos castigar; outros eram tragados pelas fendas (...) E então ficávamos à mercê das feras, monstros descomunais, aves gigantescas (...)
Para o “Homo Totus” a situação atual não é melhor: “Agora, milhões e milhões padecem de fome (...) Quantos morrem de fome? (...) eles já têm a própria destruição implantada em suas cabeças; matam-se, destroem-se a si mesmos, milhares a cada dia, e ninguém percebe!” O problema evoluiu, portanto, para a agressão do homem contra o homem, do que foi inicialmente a natureza contra o homem e vice-versa.
Infelizmente a mensagem é muito confusa e também o enfoque, já que no início o cientista aparece em conjeturas de dúvida sobre o seu interlocutor, e no fim das contas já estavam ambos mancomunados. Ou não estavam?
Note-se que é o melhor conto do livro, sem dúvida por se tratar de ficção científca, um gênero que, já pelo insólito que carrega, enriquece as histórias escritas em seus domínios. Os outros contos, mostrando a realidade prosaica (e por vezes cruel) da vida brasileira, pelo ângulo do desabafo, deixam muito a desejar e estão repletos de clichês. Agora, é um tanto ingênua a idéia de que a redenção da humanidade possa ocorrer mediante uma transmissão de tv.
O autor, que eu conheço pessoalmente, tem outros livros publicados, com alguns contos fantásticos na coletânea “Além de um desejo”.

Rio de Janeiro, 1 e 2 de dezembro de 1990.

NOTA: este texto foi originalmente escrito para a coluna "Galeria do Tempo", que eu tinha na época no fanzine de ficção científica Megalon (hoje extinto), editado pelo jornalista Marcello Simão Branco. Nela eu publicava resenhas de livros de ficção científica e fantasia; neste caso apenas pincei o único conto do gênero encontrado no livro.