Análise fenomenológica da canção “Apesar de você” de Chico Buarque e os limites da interpretação propostos por Umberto Eco
Setores mais conservadores da sociedade (grupo Tradição, Família e Propriedade, instituições religiosas, curso de Direto da USP) e as oligarquias brasileiras, com o apoio dos Estados Unidos, “justificaram” o golpe militar de 1964 como uma maneira de impedir o avanço comunista no Brasil. Outras ditaduras na América Latina receberam essa mesma bênção norte-americana como parte de um projeto político-militar relacionado à Guerra Fria. Durante esses vinte e cinco anos, o país sofreu ataques à liberdade de expressão (a censura), à democracia, aos direitos civis (repressão policial às greves e manifestações, torturas e assassinatos,). Nesse contexto, a classe artística brasileira tornou-se ainda mais producente no teatro, no cinema, na literatura e na música. Um assunto recorrente nas canções passou a ser crítica ao Regime Militar. Dentro dessa abordagem temática, destaca-se o poema “Apesar de você”.
Apesar de você
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
Chico Buarque,1970
O poema Apesar de você é um samba (de protesto) de seis estrofes, as cinco primeiras com doze versos cada, a última com cinco versos. Na essência do texto, predomina um monólogo do sujeito-poético com um “você”, interlocutor não identificado na estrutura textual. Portanto, tal pronome de tratamento (substituto do pronome pessoal “tu” de segunda pessoa do discurso, mas com seus verbos conjugados em terceira pessoa) é referencial exofórico, ou seja, o seu referente está fora do texto, é contextual e pode variar conforme a interpretação do receptor (leitor e/ou ouvinte). Nesse sentido, em todo o texto, há um contraponto entre as ações praticadas pelo você, e as outras praticadas pelo eu e pelo nós (minha gente, a gente, nosso) em que o sujeito-poético se coloca como representante de uma coletividade, no caso, o povo brasileiro. Nesse monólogo, percebe-se que as ações descritas podem ser distribuídas no hoje e no amanhã.
Dado o contexto histórico geracional do poema, cabe a leitura em que o você, claramente, se refere à Ditadura Militar Brasileira Pós-64 personificada ou há qualquer outro referente do mesmo campo semântico: Gama e Silva (autor do AI-5), General Médici, o AI-5, o Ordenamento jurídico, a Censura, etc. Nos versos da primeira estrofe, o sujeito-poético reconhece que as “regras do jogo” hoje são ditadas pelo você e o acusa de ter imposto um clima de medo e desconfiança no povo brasileiro. “Esse estado” de medo e desconfiança (o inimigo-delator pode estar ao lado) é também o Estado brasileiro e o estado de exceção inventado pelo Regime que também reinventou a escuridão, nesse contexto, a palavra ganha novas significações (SNI, os porões da ditadura, torturas, desaparecimentos, assassinatos).
A locução prepositiva concessiva Apesar de inicia o refrão do samba: “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia”, cantado em tom mais elevado e com vocal de apoio, ele abre a segunda, quarta, quinta e sexta estrofes. Na segunda, traz um conjunto de perspectivas positivas: a euforia, o canto, o amor (o amanhã) que irá confrontar o estado de coisas caóticas já descritas (o hoje). Portanto, o sujeito-poético projeta: o amanhã substituirá o hoje suas ditaduras, imposições e cerceamentos porque tamanha iniquidade não pode se sustentar por muito tempo. E acrescenta num tom de revolta: os agentes protagonistas do presente serão punidos por todos os seus crimes: “...o amor reprimido”, “...o grito contido”, “Este samba no escuro”. Em seguida, o autor ironiza com hipérboles o autoritarismo do Regime que tem o desejo de controlar até mesmo os fenômenos da natureza: “Inda pago pra ver / O jardim florescer / Qual você não queria / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença” e “Você vai ter que ver / A manhã renascer / E esbanjar poesia / Como vai se explicar / Vendo o céu clarear / De repente, impunemente” ou são metáforas anunciando algo novo, belo, superior e imponente. Percebe-se também os termos “dia raiar”, “manhã renascer”, “céu clarear” em oposição à “escuridão” inventada e “samba no escuro”. No entanto, esses versos finais também sugerem a mensagem de que o desejo de liberdade é inerente à natureza humana, é indomável como os elementos fenomenológicos da Physis.
No site oficial de Chico Buarque, Humberto Wemeck escreve algumas curiosidades sobre a canção Apesar de você: "No início de 1970 Chico volta ao Brasil em meio a um estardalhaço (organizado por recomendação de Vinícius), que incluía especial para a Globo, show no Sucata e o lançamento do LP Chico Buarque Vol. 4. Mas o Brasil não era aquele descrito nas cartas de André Midani. A tortura e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime do general Médici eram uma constante. O ufanismo do ditador ("Ninguém segura este país") aderia aos carros ("Brasil, ame-o ou deixe-o", quando não "Ame-o, ou morra!"), e a algumas canções populares ("Ninguém segura a juventude do Brasil"), tudo isso no ano que a seleção canarinho conquistaria o tricampeonato mundial. Chico fez "com os nervos mesmo" Apesar de Você e enviou para a censura certo de que não passaria. Passou. O compacto com Desalento e Apesar de você atingia a marca de 100mil cópias quando um jornal insinuou que a música era uma homenagem ao presidente Médici. A gravadora foi invadida, as cópias destruídas. Num interrogatório quiseram saber de Chico quem era o VOCÊ. “É uma mulher muito mandona muito autoritária.”, respondeu. A canção só foi regravada no LP Chico Buarque 1978.
Nesse episódio, é curioso observar que, tanto para o funcionário, responsável pela Censura, quanto para os demais ouvintes, pertencentes ao governo, a música não possuía teor político. Precisou um jornalista afirmar que o você da canção era o general Médici para eles mudarem de opinião. Daí, a plurissignificação do texto literário. E perceber também que a intenção do leitor na obra surge de uma leitura meramente apreciativa. O seu horizonte de expectativas vai se ampliando conforme a análise da obra. Essa análise será a apreensão simultânea dos aspectos (mais relevantes) textuais, contextuais, intertextuais e transtextuais (a intenção da obra e suas ressonâncias).