Gênero, educação e ciência

FICHAMENTO

Gênero, educação e ciência

Maria Eulina Pessoa de Carvalho, 2010

O que é gênero? O que é educação? O que é ciência?

Gênero (construções de masculinidade e feminilidade, culturalmente variáveis) é um conceito criado pela teorização feminista, resultante da inserção e legitimação do movimento feminista (ainda que marginalmente) na academia. Diferenças de gênero implicam desigualdade. Relações de gênero (polares, assimétricas, hierárquicas) são relações de poder. Como construção cultural, social e educacional, gênero é uma estrutura de dominação simbólica, assim como classe e raça. Teóricas feministas e outros estudiosos das relações sociais apontam que as distinções de gênero (masculino/feminino) estruturam todos os aspectos da vida social e fazem parte de um complexo sistema de dominação masculina, fortemente institucionalizado e internalizado. As relações de gênero perpassam a construção de sujeitos/identidades, relações/práticas sociais, cultura/objetos/lugares/representações/valores, impondo o princípio masculino como parâmetro universal (ABERCROMBIE; HILL; TURNER, 1994; BOURDIEU, 1999). P-233

De acordo com Fourez (1995), a ciência é o modo específico de conhecimento adotado pelo mundo ocidental moderno, uma ideologia de um saber universal. Representa um projeto, originalmente ligado à ideologia burguesa, de dominar o mundo e controlar o meio ambiente. De fato, “foi um instrumento intelectual que permitiu à burguesia, em primeiro lugar, suplantar a aristocracia, e, em segundo, dominar econômica, política, colonial e militarmente o planeta” e seus sucessos serviram de base às ideologias do progresso (p. 163-164). Da perspectiva sociológica, a ciência moderna é uma instituição, uma profissão, uma prática organizada, com uma comunidade de participantes, locais específicos de trabalho como os laboratórios, publicações, congressos, projetos, paradigmas, métodos e linguagem própria, hierarquias e relações de poder. P-234

A ciência moderna, desde sua origem no século XVI, tem uma história construída por homens (brancos, de elite, cultos, cristãos, do hemisfério norte ocidental) e por atributos e valores ditos masculinos (racionalidade, objetividade, neutralidade ou não-envolvimento). No imaginário popular, o cientista é um herói moderno, admirado como benfeitor da humanidade: um homem genial, excêntrico, frio, desligado das coisas práticas, uma imagem na qual não cabem mulheres nem homens negros e indígenas. P-234

Cabe lembrar que, no passado recente, a ciência justificou a inferioridade das mulheres e a dominação masculina atestando que elas tinham um corpo mais frágil e um cérebro diferente do dos homens, portanto eram menos inteligentes ou ‘naturalmente’ desprovidas de certo tipo de inteligência necessária ao pensamento intelectual abstrato e à liderança na vida pública. Porém a ciência não tem sido eficaz para resolver as questões éticas e sóciopolíticas da humanidade (FOUREZ, 1995, p. 165) e tem sofrido críticas (pós-coloniais, pós-estruturalistas, feministas) por alimentar a corrida armamentista, a poluição ambiental, a desigualdade entre países centrais e periféricos, a dominação e opressão de grupos e indivíduos.

A crítica pós-moderna (baseada em postulados relativistas, antifundacionalistas, interconectivistas e dialógicos), em que se situa a crítica feminista, diz que os critérios de validação do conhecimento são baseados em noções ocidentais (e androcêntricas) de objetividade, neutralidade, racionalidade e dicotomia sujeito-objeto, tomadas como padrões universais (paradigma da ciência moderna). Em particular, a crítica feminista denuncia o androcentrismo da ciência moderna, descrevendo como a formação, as práticas e as instituições científicas permanecem gendradas (HUMM, 1989; SCHIEBINGER, 2001).p- 236

Sendo todo conhecimento sobre nós mesmas/os, pois não apenas estamos conectados aos objetos do mundo, mas somos no mundo, a educação é o processo de construção de sujeitos e de sentidos para a vida individual e coletiva, a partir de objetos, conhecimentos, valores e sentimentos herdados. É, em grande parte, violência simbólica (BOURDIEU; PASSERON, 1975), imposição e reprodução da cultura e das identidades hegemônicas (heterossexuais e gendradas), portanto, das relações de dominação de gênero, de modos de ser dicotômicos (masculino ou feminina), da cultura e da ciência androcêntricas, isto é, centradas em normas e valores masculinos. Pode ser também um processo de crítica, conscientização, autocrítica e transformação das relações sociais de dominação (FREIRE, 1987), particularmente da injustiça patriarcal, a exemplo da educação feminista para a consciência crítica (BELL HOOKS, 2000). P-237

É importante lembrar que a história da educação das mulheres foi marcada pela exclusão e, posteriormente (bem recentemente), pela inclusão com segregação. Elas só conquistaram o direito à educação com a instituição da escolarização compulsória, no século XIX, mas foram incluídas em escolas, classes, ramos do ensino ou áreas curriculares separadas – caneta para os meninos, agulha para as meninas. No século XX, generalizou-se a co-educação no sistema público de educação básica de muitos países ocidentais e, finalmente, com a luta feminista pela igualdade dos sexos, desapareceram as barreiras formais ao acesso das mulheres a quaisquer cursos superiores, porém persistem trajetórias diferenciadas por sexo e gênero na educação profissional e superior, e no mercado de trabalho. P-238

A persistência da divisão de gênero do conhecimento e do trabalho segrega as mulheres a ocupações desvalorizadas, precárias e mal-pagas, reforçando a invisibilidade do trabalho de reprodução, paralelamente ao ingresso de algumas delas em carreiras masculinas (ROSEMBERG, 1994, 2002). Atualmente, Hirata (2002, p. 345) aponta uma bipolarização do trabalho feminino: “um dos pólos é constituído de profissionais altamente qualificadas e bem remuneradas (engenheiras, arquitetas, médicas, professoras universitárias, gerentes, advogadas, juízas etc.), e outro de trabalhadoras ditas não qualificadas, ocupando empregos mal remunerados e não valorizados socialmente”, caso exemplar do emprego doméstico. Porém, os ganhos das mulheres são sempre inferiores aos dos homens, mesmo nos novos campos profissionais ou naqueles campos tradicionalmente masculinos, como Medicina, Engenharia, Arquitetura e Direito (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000, p. 67). P-239

As antigas estruturas da divisão sexual permanecem objetivadas nas carreiras e nos cargos segundo três princípios práticos: (1º) “as funções que convêm às mulheres se situam no prolongamento das funções domésticas: ensino, cuidados, serviços”; (2º) “uma mulher não pode ter autoridade sobre homens” e, portanto, tende a ser “preterida por um homem para uma posição de autoridade ou ser relegada a funções subordinadas, de auxiliar”; (3º) o homem tem “o monopólio da manutenção dos objetos técnicos e das máquinas” (BOURDIEU, 1999, p. 112-113).p- 241

Ora, as definições diferenciais de habilidades masculinas e femininas, bem como a valorização das primeiras e desvalorização das últimas são reproduzidas na escola: as meninas aprendem que os meninos é que são bons em matemática e tecnologia, e seguem para as faculdades, cursos e especialidades de menor prestígio; também aprendem que devem ser dóceis e servis, ou seja, não-competitivas e atraentes aos olhos masculinos. Mais tarde, elas assumirão a responsabilidade pelo cuidado das crianças e as tarefas domésticas, investindo menos nas carreiras, reproduzindo, assim, o caráter gendrado do trabalho (produtivo/reprodutivo, instrumental/expressivo). Uma ilustração recente: as análises dos resultados do SAEB 2003 apontaram diferenças de rendimento entre meninos e meninas, conforme o gênero da matéria escolar: meninas têm notas mais altas em Português e meninos em Matemática. No ENEM 2003, as meninas se saíram melhor em redação e os meninos na parte objetiva (GODINHO et al., 2005), o que indica que conhecimentos e habilidades continuam sendo gendrados no processo de escolarização.

Como explica Bourdieu (1999), as diferenças e oposições de sexo e gênero se inscrevem em estruturas objetivas e subjetivas: apresentam-se “em estado objetivado nas coisas, em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes” (p. 17). Habitus são estruturas psicossomáticas duráveis, adquiridas na socialização primária, na família e na escola, já que nela as crianças ingressam cada vez mais cedo. Os habitus de gênero resultam do trabalho pedagógico psicossomático de nominação, inculcação e incorporação através de variadas e constantes estratégias de diferenciação de meninas e meninos, implícitas e explícitas nas práticas de vários agentes e instituições – família, igreja, escola, meios de comunicação, estado. Assim, “a educação primária... favorece mais nos meninos as diferentes formas da libido dominandi” (BOURDIEU, 1999, p. 71), facultando-lhes o desenvolvimento da força física e o domínio dos movimentos e espaços amplos. Excluídas do jogo do poder, as meninas são educadas para entrarem nele “por procuração, isto é, em uma posição ao mesmo tempo exterior e subordinada, e a dedicar ao cuidado do homem uma espécie de terna atenção e de confiante compreensão”, aprendendo tais tendências afetivas juntamente com a impotência feminina (BOURDIEU, 1999, p. 77-97), a “submissão encantada que constitui o efeito característico da violência simbólica” (BOURDIEU, 1999, p. 53). p-242

Desde a década de 1960, as feministas têm posto questões acerca da reduzida participação das mulheres no campo científico. O que vale como ciência? Há maneiras de compreender a natureza e responder a necessidades humanas que não contam como “ciência”, como os conhecimentos indígenas das mulheres (SCHIENBINGER, 2001). P-244

Postulados do feminismo liberal e do feminismo da diferença alimentaram o debate em torno dessas questões. As mulheres são essencialmente iguais aos homens (seres humanos com virtudes e defeitos aprendidos/cultivados) ou diferentes (mais comprometidas com a vida e com valores como o cuidado e a compaixão, graças ao dom de gerar)? Elas se adequariam às práticas hegemônicas, pondo-se a serviço de uma ciência que cria conhecimentos e artefatos de destruição e dominação ou lançariam novas questões, métodos e valores, redirecionando as práticas científicas? Enfim, se elas são diferentes, supostamente desinteressadas do fazer científico, elas deveriam mudar para ingressar no clube dos cientistas, ou, inversamente, a cultura e as práticas da ciência é que deveriam mudar para incorporar mulheres e valores femininos? P-244

Como lembra Londa Schienbinger (2001), o feminismo liberal lutou para dotar as mulheres das habilidades e oportunidades necessárias para vencer num mundo masculino e gerou a doutrina da ação afirmativa, que acelerou o ingresso das mulheres nas profissões. Todavia, concebeu a igualdade como uniformidade e assimilação, propondo que “as mulheres sejam como os homens – culturalmente ou mesmo biologicamente” (p. 23), que elas simplesmente ingressem na ciência normal, sem que a “cultura ou o conteúdo das ciências precise mudar para acomodá-las” (p. 24). O feminismo da diferença enfatizou

as diferenças culturais e não a uniformidade entre homens e mulheres e propôs reavaliar atributos desvalorizados como “femininos”, como subjetividade, sentimento, empatia e cooperação. Afirmou a necessidade de “mudanças, não apenas nas mulheres, mas também nas aulas de ciência, nos currículos, laboratórios, teorias, prioridades e programas de pesquisa” (p.24). Todavia, foi criticado pela visão reducionista, unitária e romântica de uma “mulher universal”, prenhe de valores positivos. 244 a 245

Como argumenta Londa Schienbinger (2001, p. 26-29), por um lado, não faz sentido equacionar o ingresso de mulheres com mudança na ciência ou esperar que traços denominados femininos sirvam de base para um tipo inteiramente novo de ciência. A hipótese de que as mulheres podem fazer ciência diferentemente precisaria ser testada, já que não é óbvio que o gênero tenha maior influência sobre a ciência do que outras divisões políticas e culturais, como classe ou etnia; seria preciso um estudo complexo de história da ciência, considerando as perspectivas e contribuições específicas de mulheres de diversas origens étnicas, classes sociais, regiões, assim como outras diferenças culturais (p. 37-38). Por outro lado, o estudo da construção histórica das diferenças de gênero pode oportunizar a compreensão daquilo que os cientistas desvalorizaram. Ademais, a tentativa de ligar o bom e o belo às mulheres é divisora e pode alienar os homens; é importante reconhecer que também há homens trabalhando de “um ponto de vista feminino” (p. 39).

“A ciência é masculina? É sim, senhora!” – responde Attico Chassot (2003). Tanto as mulheres, como questões e valores denominados femininos foram excluídos da ciência. Portanto, a ciência não é neutra em relação às questões de gênero – as desigualdades de gênero foram incorporadas à estrutura e à produção do conhecimento, (re)produzidas e representadas. É importante atentar para os modos como a consciência ou a ignorância das relações de poder de sexo e gênero influencia o conhecimento que se produz, as escolhas de prioridades e procedimentos, e o cuidado com as consequências dessas escolhas.” P-245 a 246

“[...]Sabemos que a divisão sexual e de gênero do conhecimento e do trabalho é continuamente ensinada e aprendida, de modo formal e informal/inconsciente, no contexto das várias instituições e práticas sociais, destacando-se a escola, que prepara para o trabalho e a escolha das carreiras. Sendo social e culturalmente determinadas, as escolhas profissionais se dão ao longo da trajetória escolar, portanto a exclusão das mulheres das disciplinas e das carreiras científicas é uma questão pedagógica.”

Atingir uma proporção de mulheres na ciência igual à proporção de mulheres na população mais ampla é uma meta social e educacional importante, que já foi objeto de políticas públicas em alguns países. Porém, para que mais mulheres possam se dedicar à carreira científica é preciso mudar a organização patriarcal da família e do trabalho, baseada na separação público/privado: a atividade profissional requer a apropriação do trabalho não remunerado do cônjuge que fica em casa (geralmente, a dona-de-casa) e oferece a estrutura básica (alimentação, limpeza, cuidados) para que se possa exercê-la (SCHIENBINGER).

2001). Além de aumentar o ingresso de mulheres no campo científico, é preciso também atentar para as condições que dificultam seu progresso na carreira, tanto as de ordem familiar, quanto as de ordem profissional. P-246 a 247

A educação constrói e reconstrói a cultura. Por isso é tão importante estudar a construção educacional da desigualdade de gênero, especialmente na escola. O I Plano Nacional de Políticas para Mulheres (BRASIL, 2004, p. 56) propôs “incorporar a perspectiva de gênero, raça, etnia e orientação sexual no processo educacional formal e informal”, destacando a inclusão destas temáticas no ensino superior e na formação inicial e continuada de educadoras/es, bem como o acompanhamento e avaliação dos programas educacionais com vistas à garantia da equidade. Todavia, a problemática de gênero ainda permanece ignorada na academia, na política acadêmica e na formação profissional. P-248

MACHADO, CJS., SANTIAGO, IMFL., and NUNES, MLS., orgs. Gêneros e práticas culturais: desafios históricos e saberes interdisciplinares [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2010. 256 p.ISBN 978-85-7879-038-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.