O feitiço de Katie Stelmanis
A melhor banda desta década é o Austra. E o leitor me questionará: “Quem?”. O Austra não é das bandas mais famosas mesmo. Trata-se de uma banda do Canadá que faz algo situado entre a new wave, o synth-pop, a indietronica, o dream pop – gêneros de que nunca havia me imaginado gostando. O começo de tudo foi quando ouvi “Lose it”. Ouvi em meio às músicas de rock alternativo que costumo ouvir e os vocais me chamaram a atenção logo na primeira vez. Era uma mulher cantando. “Voz poderosa”, pensei. Depois de um tempo, ouvi de novo e gostei mais. E ouvi de novo, e de novo, e de novo – a ponto de a minha mãe perguntar se eu não havia me enjoado. “Lose it” tem, de fato, alguma coisa, uma magia, um encanto, aqueles vocais não são deste mundo. Sinto-me voando no espaço toda vez que a ouço – dizem as minhas estatísticas que já a ouvi quase 250 vezes.
Ora, tamanha obsessão fez com que eu fosse pesquisar mais sobre a banda. Descobri então que a vocalista se chamava Katie Stelmanis e que Austra é o seu nome do meio – além de ser o nome da deusa da luz na mitologia letã, sendo letã a ascendência de Katie. Também soube que, antes de se aventurar no mundo pop, Katie cantava ópera, o que fez sentido, porque a força de sua voz parece mesmo a de ópera.
Naturalmente, fui ouvir outras músicas que não “Lose it”. O primeiro álbum da banda, lançado em 2011, chama-se “Feel it break” e hoje eu já o reputo como o melhor da década – ah, não esperem comedimento de um apaixonado. O interessante é que, numa primeira ouvida, ele não me pareceu tão fantástico assim. Depois de “Lose it”, qualquer coisa me pareceria abaixo. Mas isso acontece muito com o Austra: depois de ouvir várias vezes uma música é que ela revela toda a sua beleza, força e genialidade.
Foi assim que percebi “Spellwork”, música e clipe repletos de referências ritualísticas, místicas, góticas, “bruxescas”, que lançam um “feitiço” sobre o ouvinte e que bem definem o tipo de som feito pela banda ao longo de todo o disco. Há músicas como a lindamente soturna “The choke” que podem ser classificadas como uma experiência espiritual. O som do Austra tem realmente algo de extracorpóreo. Posso até me imaginar flutuando em meio a luzes do pós-morte embalado pela voz de Katie Stelmanis. A isso se soma todo o efeito sensual de “Beat and the pulse”, o ambiente existencialista de “Identity”, todo o vigor de “Trip” ou “Energy”, dois belíssimos covers (“Woodstock”, da Joni Mitchel, e “Crying”, do Roy Orbison) e ainda as gêmeas, ah, aquelas gêmeas.
Os dois primeiros discos da banda contam com os vocais de Sari e Romi Lightman, as gêmeas que mantém a estranhíssima Tasseomancy, banda de música experimental. São provavelmente elas que explicam o surrealismo no clipe de “Lose it”. Ambas casam muito bem com a voz de Katie, como pode se observar na versão “a cappella” de “Woodstock”, que consegue o feito de ser melhor que a de estúdio.
São também as gêmeas que sopram a palavra “hope” nos ouvidos de Katie no clipe de “Home”, a carro-chefe do disco seguinte, “Olympia” (2013). Eu ouvi muito “Lose it”, mas hoje “Home” já figura à frente nas estatísticas, com quase 300 audições. Não é para menos, é incrível como em poucos segundos a banda consegue nos transportar para a atmosfera da letra – que é romântica, afinal, e fala da namorada de Katie. Ah, sim, Katie é lésbica, ou então queer, um termo sempre assumido para se referir à banda.
A ideologia à frente de Katie em questões de gênero também se estende à política. Leitora voraz de livros sobre “pós-capitalismo”, ela concebeu com o Austra em 2017 o disco “Future politics”, no qual se vislumbra uma humanidade que já superou todas as mesquinharias que hoje nos dividem. Calhou que isso coincidisse com as minhas próprias impressões, daí resultando o aumento do meu culto à banda.
Temas como a depressão também perpassam as músicas, destacando-se “I love you more than you love yourself”, inclusive pelo clipe, o qual reconta a história da astronauta Lisa Nowak (isso antes de a Natalie Portman estrelar “Lucy in the sky”). Certos dramas de relacionamentos também dão o tom do mais recente disco da banda, “HiRUDiN” (2020), que é, em essência, sobre relacionamentos tóxicos.
Ah, do que mais posso falar? Eles gravaram “Alone, Together”, dos Strokes, e posso garantir que nunca os Strokes soaram tão lindamente. “Habitat”, de um EP de 2014, é outra das melhores coisas que a banda fez. Cite-se ainda “Fire”, do segundo disco, e relacione-se ainda, entre os covers, uma do Duran Duran, “American science”. Tudo isso casou de um jeito muito marcante para mim, e hoje não passo um dia sem ouvir a banda. O feitiço foi forte.