Quando Bourdieu desmascara a meritocracia: a formação das elites brasileiras e a manutenção dos privilégios

Universidade de São Paulo (USP)

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP)

Disciplina: EDF 01143 – Sociologia da Educação II

Docente: Jaqueline Moraes Teixeira

Cristina Barcelos Rodrigues Pinto

São Paulo - 2018

De acordo com os índices apontados pelos órgãos mensuradores de dados, apresentados corriqueiramente pelos veículos de comunicação, é evidente a disparidade social em que se encontram os indivíduos brasileiros. Separados por um abismo concretizado na figura das oportunidades, tem-se posto um quadro onde as ordens sociais, política e econômica tendem a se manter, reproduzindo-se, via de regra, da mesma forma. Essa situação torna-se possível pelo fato de um pequeno grupo de pessoas dominarem largos recursos, ocupando posições de poder em detrimento das demais camadas sociais, sistemática essa, que nos acompanhou desde o início da formação do Brasil, ainda nos primórdios de nossa colonização.

Durante a conquista das terras brasileiras e de sua posterior ocupação, tivemos a formação das elites coloniais que se desenvolveram e se aprimoraram. À nobreza portuguesa cabia os cargos públicos, civis e eclesiásticos. Porém, com os desdobramentos dessas conquistas provas de coragem e conquistas militares foram reconhecidas e devidamente gratificadas, com entregas de cargos públicos, por exemplo. As terras começaram a ser divididas visando sua ocupação defesa, e designadas aos donatários que, consequentemente, tornavam-se chefes administrativos de sua demarcação. Dava-se início assim, a formação de uma incipiente elite política e econômica.

Posteriormente, tivemos atividades econômicas que se evidenciaram em dado período de tempo, trazendo desdobramentos sociais de acordo com sua atuação. Os principais eixos econômicos do período colonial foram, o ciclo da cana de açúcar e o ciclo do ouro e pedras preciosas.

Nesse cenário, temos já fortalecidas as elites social, política e econômica, ilustradas pela aristocracia rural, seja na imagem do senhor de engenho ou dos grandes beneficiários do garimpo. Sendo a aristocracia uma instituição de essência fundamentalmente familiar, sua manutenção se dava de forma geracional, por meio do matrimônio e dos filhos, os então, herdeiros.

Já durante o período imperial e nos anos iniciais da república, tivemos como principal eixo econômico o ciclo do café, onde a elite era representada pelos então barões do café, dotados de grandes recursos financeiros e políticos, considerando nesse caso, as elevadas posições ocupadas pela elite cafeeira em cargos públicos de notável importância. Esse quadro se altera quando o poder político das elites rurais, sobretudo paulistas e também mineiras, é centralizado no governo de Getúlio Vargas após a o golpe de 1930, onde o Estado liberal abre espaço para o Estado social de políticas populistas, onde são estabelecidos direitos - ainda que muitos deles sejam oriundos de conquistas sociais- o que desagradou as elites tradicionais que, após a República da Espada, se revezavam no poder presidencial do país, pelo sistema que ficou conhecido como Café com Leite.

Vale salientar que, por mais que os membros da elite estivessem substancialmente ligados à atividades econômicas pertencentes ao primeiro setor, constitui-se no início e meados do século XX, um semento elitista ligado as atividades industriais, visto que nessa época instaurava-se um inicial processo de urbanização e industrialização em determinados lugares, sobretudo em São Paulo.

Toda essa apresentação da história econômica de nosso país se fez necessário para mostrar que, a constituição das elites econômica, políticas, intelectual, dentre outras; detentoras dos recursos necessários para ocupação de elevada posição dentro de nossa sociedade, esteve presente desde os primórdios de nossa formação social– considerando o período pós colonização, uma vez que, no Brasil já havia a sociedade indígena, portadora de sua cultura – e assim se manteve ao longo de nossa trajetória , refletindo em danos sociais de origem histórica.

Após a abolição da escravatura, no final do século XIX, a produção de café ainda exercia influência no mercado financeiro do Brasil, portanto, mão de obra era necessária para suprir a demanda do cultivo para consumo e exportação, fato que possibilitou a massificação da imigração, sobretudo europeia, para o Brasil, tanto para suprir a necessidade de mão de obra, quanto para iniciar o processo de branqueamento da população brasileira, segundo pretensões institucionais da época.

Ocorre que havia um grande contingente de escravos que de uma forma ou de outra foram largados a própria sorte. Alguns continuaram nas fazendas, outros ocuparam morros e ruas na tentativa de sobreviverem mesmo sob o estigma, simbólico e palpável, oriundo do sistema escravocrata que perdurou por quase trezentos anos em nosso país.

Próximo a esse período, tem-se o inicio do processo industrial presente em dadas localidades do país onde, desde de seu momento incipiente, até a legitimação direitos trabalhistas na Era Vargas, fora marcado por exaustivas jornadas de trabalho, baixa remuneração e por poucos ou nenhum direito. Foi nesse momento inclusive, que as lutas trabalhistas foram ganhando espaço, até mesmo como reflexo do cenário internacional.

Portanto, fica nítida a polarização social em que estava, e continua, inserida a nossa população, independentemente do período histórico abordado e das atividades econômicas vigentes. Seja com a aristocracia rural, detentora e acumuladora de recursos, de um lado, e os escravos e trabalhadores livres de outro; seja com os industriais e empresários também monopolizando os recursos, ocupando posição oposta à dos trabalhadores assalariados que vendiam sua força de trabalho por um preço injusto, realidade essa que na verdade ainda se mantém. O fato é que desde o início de nossa construção social até nossa contemporaneidade, tem-se a continuidade estrutural dos mecanismos de manutenção da distribuição de poder.

Diante desse cenário, tem-se ilustrado um elemento importante de nossa composição social, o privilegio, sendo esse, designado a dadas pessoas, que ocupam lugar de prestígio em nossa sociedade. E é justamente nesse contexto que entra em cena um autor estudado em classe, que aborda entre outras temáticas, a questão do privilegio e de suas consequências quanto a ocupação das posições sociais. Trata-se do sociólogo francês Pierre Bourdieu que, em sua teoria social, abordada nas aulas da disciplina em questão, apresenta dois conceitos relevantes para compreensão de nossa ordem social. São eles os conceitos de “capital” e “campo”.

Considera-se capital o conjunto de atributos adquiridos e acumulados ao longo da vida, podendo ser atuante em diversos segmentos, portanto, distinto em seus atributos. Temos o capital financeiro, cultural, político, científico, acadêmico dentre tantas outras tipificações. As categorias de percepção do capital, entre os indivíduos portadores desse mesmo capital, possibilitam sua interação no processo de decodificação dos códigos sociais envolvidos em cada tipificação dele, propiciando a interação dos círculos dominantes. Á luz dessa teoria, pode-se mapear quais capitais detidos por cada elite e, quais as práticas de distinção por elas adotadas para manterem e reforçarem suas posições.

Já o campo, segundo Bourdieu, é uma área especifica, simbólica, onde ocorre a disputa de dado capital, constituindo um espaço de ação. O campo, não corresponde a espaço social, que por sua vez, constitui-se de uma unidade física e que abrange determinados campos. Para melhor ilustrar esse conceito, podemos citar o exemplo do campo intelectual, onde uma das unidades físicas poderia ser as universidades.

Nesse sentido, cada indivíduo, portador de dada quantidade de capital, ocupa uma posição dentro de cada campo, sendo ele um espaço desigual onde tenta-se ocupar posições de poder e da fala legítima, por meio de lutas e corrida atrás desse capital, ainda que indivíduos em posições mais elevadas dentro do campo, por conta dos privilégios concretizados pela maior aquisição de capital, tenham vantagem sobre os demais. Bourdieu aponta a escola como um dos principais instrumentos de manutenção das diferenças.

Como reflexo da diferenciação da obtenção de capital, tem-se essa sociedade quase que polarizada entre os detentores e não detentores de capital. Ocorre que muitos indivíduos pertencentes a nossa sociedade, naturalizam tal aquisição de capital, legitimando as diferenças através do que conhecemos pelo termo “meritocracia”, onde o mérito e a competência são evidenciados em detrimento do reconhecimento dos privilégios que proporcionaram posição elevada dentro do campo, o caso das elites, portadoras de recursos para o oferecimento de capitais aos seus herdeiros.

Nesse viés, tanto a elite quanto grande parcela da classe média são contrárias às políticas sociais reparadoras, que visam diminuir as diferenças, originadas historicamente como já foi mencionado.

A formação histórica das elites brasileiras sobretudo social, econômica e política, originou essa classe de poucos membros, cujos preceitos defendem o Estado mínimo que integra os ideais neoliberais e, consequentemente, se opõem às políticas públicas de cunho social, bem como, ao pagamento de impostos, direcionados para execução de serviços públicos.

Através da meritocrácia consegue-se justificar as posições sociais, sua manutenção e, por fim, a ínfima mobilidade social aqui presente. Para as elites convém essa vertente ideológica uma vez que, se beneficiam com seus desdobramentos, porém, o que percebemos é que a classe média, socialmente e economicamente mais próxima da classe baixa, também compartilham de tais ideais neoliberais, onde a economia é a maior reguladora e não o Estado, mesmo que necessitando e até utilizando serviços e benefícios públicos.

A elite é um grupo pequeno, de poucos membros, e para conseguir se manter e se legitimar, exerce o controle da numerosa classe média através do convencimento, para execução, apoio e disseminação de seus ideais, dotados de interesses próprios de manutenção e dominação social. Para isso tem-se considerável respaldo na grande mídia que, compactuando com grandes empresas acabam difundindo ideias neoliberais. O que temos é a distorção da realidade através da mídia, seja por meio de impressos ou televisivos, onde há pouca ou nenhuma divergência de opinião já que, nesse contexto, temos o mercado como regulador da mídia pois, como pode- se perceber, a elite econômica detém grande parcela do fluxo de informações, sobretudo, aquelas destinadas a massa.

Assim sendo, temos uma estatização social com pouca mobilidade. Para melhor ilustrar esse quadro podemos nos perguntar quais as chances de um indivíduo que não faz parte das elites, acessar esse grupo? Por exemplo, para um pai sem estudos qual a possibilidade de seu filho acessar a elite intelectual, o que demandaria investimentos em educação, estudos de línguas, viagens, dentre outros? Ou, qual a possibilidade de um indivíduo com baixos recursos financeiros fazer parte da elite econômica? Pois, da mesma maneira que a posição das elites se mantém e se reproduz, a posição das demais camadas sociais segue a mesma lógica de manutenção e reprodução, são raras exceções. Além disso, grupos elitistas se cruzam, fortalecendo-se ainda mais. Um indivíduo da elite econômica pode passar a fazer parte também da elite intelectual por meio da aquisição de capitais relacionados a esse campo, o que reforçaria ainda mais sua elevada posição social.

Portanto, é importante que os indivíduos compreendam a sistemática de manutenção de poderes delegados às elites, á aquisição de capitais por ela recebida e acumulada de forma geracional e histórica. Da mesma forma, é necessário que a classe média tome conhecimento da sua real posição social também geracional e historicamente construída, para que compreenda a necessidade e obrigação constitucional de políticas públicas de cunho social, procurando sanar, ainda que em partes, as diferenças presentes em nossa sociedade, sobretudo na população negra.

Conforme já mencionado, a população negra, consideravelmente numerosa, teve negligenciado qualquer política de inserção social ou econômica após a abolição da escravatura, vivendo sob estigma e preconceito, sendo o reflexo disso sentido ainda nos dias de hoje. Políticas reparadoras como cotas para dados segmentos, são em grande escala, rejeitadas socialmente, da mesma forma, são rejeitadas políticas habitacionais, “pois poderia quebrar o mercado"; políticas educacionais, “pois poderia baixar o nível do ensino nas universidades"; políticas sociais e econômicas, “pois o povo não quer trabalhar"; enfim, ideias defendidas pelas elites, de Estado neoliberal, difundidas em maior parte pela grande mídia que, compactua com o mercado concretizado nas grandes empresas, reproduzido sumariamente pela classe média que, muitas vezes não compreende a manipulação que sofrem por parte das elites e acabam se achando parte dela, mesmo estando bem longe de acessar esse grupo tão seleto.

Cristina Barcelos Rodrigues Pinto
Enviado por Cristina Barcelos Rodrigues Pinto em 13/02/2020
Código do texto: T6864887
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