Carmina Burana, de Carl Orff
Carmina Burana, de Carl Orff
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Goliardos eram os estudantes medievais que perambulavam pelas universidades europeias. Uma língua comum os unia, o latim. Ao tempo que as línguas neolatinas se desenvolviam, a exemplo do francês, do italiano, do espanhol e do português, o uso franco e comum da língua dos romanos permitia o ensino, as discussões e uma intensa troca de informações e experiências. O latim era uma língua franca, que se estabeleceu como a língua das ciências e das classificações científicas.
Os goliardos viviam com um certo nível de libertinagem, eram alegres, de algum modo irresponsáveis. Formam o arquétipo do estudante universitário do imaginário popular. De acordo com o historiador francês Jacques Le Goff os goliardos eram de origem urbana, camponesa ou até nobre.
Eram errantes. Foram personagens de uma época de desenvolvimento demográfico. São o produto da grande mobilidade social que marcou o século XIII, principalmente. A maioria dos goliardos era de estudantes pobres, viviam de pequenos expedientes, serviam como criados domésticos, viviam também da mendicância. Não tinham domicílio fixo.
A um grupo de desconhecidos goliardos, bem como a um grupo de desconhecidos monges, se atribui uma série de cantos e poesias sátiras que tratam do amor, da sensualidade, da sorte e de outros assuntos seculares. Não são poemas religiosos. Esse conjunto de poemas foi encontrado na Alemanha em um mosteiro da Baviera, em 1803. Foi pela primeira vez publicado em meados em 1857. São os cantos profanos que foram o Carmina Burana. Desafiam intérpretes.
Redigidos em latim e em dialetos medievais, lembram, na composição, e em alguns pontos, a fala de um personagem de Umberto Eco, Salvatore, que falava todas as línguas, e que não falava língua nenhuma. Há uma primorosa tradução desses textos para o português, de autoria de Miguel Carvalho Abrantes, um erudito português, especialista em temas greco-romanos. O recorte das várias línguas utilizadas é talvez um de seus grandes mistérios.
Alguns poemas do Carmina Burana (24 ao total) foram musicados por Carl Orff (1895-1982), em uma esplendorosa cantata, encenada pela primeira vez na ópera de Frankfurt, em 1937. A cantata é impressionante. Arrebatadora.
Carl Orff dedicou sua vida à música. Criou um método de ensino musical muito utilizado. Viveu a maior parte de sua vida em Munique. Carmina Burana foi uma obra musical muito popular na Alemanha nazista. Orff era muito ligado a Karl Huber, do movimento Rosa Branca, que se opunha a Hitler. Huber foi executado pelos nazistas. No processo de desnazificação que os aliados conduziram na Alemanha Orff apresentou-se como um membro da resistência ao nazismo. É um assunto intrigante, pouco explorado. De qualquer modo, Orff é um músico de primeiríssima linha. Sua música pode ter sido associada ao nazismo. Mas não há provas de que Orff tenha se simpatizado com a ditadura alemã.
A parte mais conhecida de Carmina Burana é o canto à Fortuna, que é o canto de abertura, reproduzido no fecho também. Fortuna é a referência à sorte, conceito também explorado por Maquiavel. No Capítulo XXV do Príncipe, Maquiavel acrescenta a sorte (fortuna) à virtude do príncipe. Assim, o poder dependeria de qualidades (virtude) mas de algum modo dependeria também de um contexto pré-determinado (a fortuna). Maquiavel equiparou a fortuna à mulher, um problema gravíssimo para os tradutores do florentino. Um enigma de tradução. No caso de Carmina Burana os enigmas persistem.
O canto à Fortuna, em Carmina Burana, como musicado por Orff, proclama a sorte como a lua, que é mutável. A sorte, assim, sempre aumenta, ou sempre diminui. As vezes oprime, e as vezes a vida salva. Brinca com a mente, é miséria, mas também é poder. É uma roda volúvel, e é má. A felicidade é sempre dissolúvel, velada, e a todos contagia. Na saúde, a sorte é virtude. Quando é contrária, nos escraviza. Tange uma corda vibrante, porque a sorte, seguem os poetas medievais, abate o forte. Nada podemos com a sorte, que nos manipula, porque dela dependemos. No sentido mais prático, o tema da fortunaé uma forma disfarçada de determinismo histórico.
Do modo como musicados por Carl Orff esses versos exercem um fascínio no ouvinte. De um lado, convidam à euforia e à celebração da vida e de suas alegrias. Ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo que os acordes e melodias avançam, lembra-nos que há também a melancolia, a tristeza e o desencanto.
Esses versos revelam as duas faces extremas da experiência humana: a alegria explosiva e a tristeza profunda. De fato, a vida é um conjunto de perspectivas, classificadas e inventariadas com nossas ilusões, de ótica, e de avaliação. O canto à Fortuna, no Carmina Burana, lembra-nos a tradição da filosofia estoica, cultivada pelos filósofos romanos, que acreditavam que só se pode dizer que é feliz, quem feliz foi até o momento da morte. Isto porque, a cada instante, a sorte pode nos trazer surpresas, boas ou más. É esse o conteúdo simbólico do primeiro e do último canto dessa belíssima cantata cênica.