Hurricane, de Bob Dylan
Hurricane, de Bob Dylan
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Em 24 de outubro de 1975 Bob Dylan gravou em Nova Iorque uma das mais imponentes canções de protesto de todos os tempos: Hurricane. Seguia uma linha que o tornou famoso no início dos anos 60, com canções como “Blowin in the wind” e “The times they are a changing”, da qual havia se afastado. A canção é longa para os padrões de execução em rádios, são quase nove minutos. Dylan influenciou compositores e cantores como Lou Reed, Bruce Springsteen, Neil Young. Levou o Nobel de literatura em 2016, por ter criado novos modos de expressão poética no quadro da tradição da música norte-americana.
Dylan denuncia um erro judicial. Conta a história de Rubin Carter, lutador de box, apelido de “Hurricane” (Furacão). Negro, Carter foi mais uma vítima de violento preconceito, nos Estados Unidos da década de 1960. Foi preso em 1966, acusado de matar três pessoas em um bar, em Nova Jérsey: o dono do bar, um freguês e uma garçonete. Esta última morreu um mês depois. As testemunhas juraram ter visto dois negros, que fugiram num carro com placa de outro estado (Nova Iorque).
Os policiais chegaram até Rubin Carter, que de fato tinha um carro cuja descrição confirmava as testemunhas. Era um Dodge Polara. Na casa de Carter encontraram também uma pistola calibre 38, idêntica à arma que teria sido usada no crime. As testemunhas estavam confusas e não tinham certeza se Carter era de fato o assassino. Carter foi condenado à pena de prisão perpétua por um júri composto apenas por homens brancos.
O boxeador insistiu na inocência. Na prisão escreveu sua biografia. Pediu um novo julgamento. Seu advogado contatou Dylan, que se convenceu da inocência de Carter. Dylan o visitou na prisão. Compôs uma canção na defesa do condenado. Os advogados da gravadora de Dylan preocuparam-se com eventuais ações judiciais. Responderam por calúnia.
Dylan começa a música lembrando tiros de pistola que se ouvem pela noite em um bar. Uma garçonete (Patty Valentine) vê o atendente do bar e vê também poças de sangue. Começa aí a tragédia de Carter, que Dylan afirma ter sido culpado por algo que nunca fez e que, colocado em uma cela de prisão, não poderia ser o campeão do mundo. Chamaram a polícia, que com luzes vermelhas que piscavam chegaram no lugar do crime. Era uma noite quente em Nova Iorque.
Dylan canta que Carter estava com amigos em outra parte da cidade. Não tinha a mínima ideia do que iria ocorrer. Abordado por um policial, lembrou que era negro, e que negros não podiam aparecer na rua. Prossegue Dylan com as testemunhas que dizem ter visto dois negros que fugiram em um carro branco com placas de carros de outro estado. Patty Valentine apenas concordou.
Um sobrevivente foi levado para o hospital. Embora mal pudesse ver, o sobrevivente foi forçado pelos policiais a reconhecer Carter como o assassino. Quatro meses depois, prossegue Dylan, os guetos estavam em chamas. Os policiais continuavam intimidando e fabricando testemunhas. Afinal, Carter poderia matar um homem com apenas um soco. Carter foi levado para a prisão.
Dylan canta que tentaram transformar o lutador em um rato. No julgamento, prossegue Dylan, as cartas estavam marcadas. As testemunhas de Carter foram desqualificadas, identificadas como bêbados e favelados. Para os jurados, brancos, Carter era um vagabundo. Para os negros, um louco. O promotor insistiu na acusação. O júri branco concordou.
Dylan fecha a canção dizendo-se envergonhado por viver em uma terra na qual a justiça era apenas um jogo. Os verdadeiros criminosos bebiam martinis e viam o nascer do sol. Enquanto isso, Carter estava sentado como um Buda em uma cela de três metros quadrados. Para Dylan, transformaram em um inferno a vida de um inocente. A canção conta com os solos de violino de Scarlet Rivera. Dylan conclui com um solo de gaita em dó.
Num segundo julgamento a condenação de Carter foi confirmada. Em 1988 a Suprema Corte reverteu a decisão, anulando o julgamento. Hurricane é uma canção simbólica, tocada ao vivo por Dylan pela primeira vez num concerto em Plymouth, em 1975. No início de sua pregação em favor de Carter, Dylan foi mal compreendido. É privilégio dos profetas serem mal compreendidos. A mim, quando penso em Carter, me consola saber que os males da história são sempre maiores que os nossos dramas pessoais. E quando penso em Dylan, confirmo um crítico, para quem, onde a moderação é um erro, a indiferença é um crime.