Horas Pristínas

HORAS PRÍSTINAS

Uma taça de cicuta a Cronos

"(...) tempo, demônio absoluto, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo..." (Raduan Nassar)

Curvo-me ante essa força invisível... Comando milenar de infame sanha Crisálida: eclode morta da entranha Como um potente ácido corrosível!

Rútila e feralmente irreversível Traça na epiderme sua façanha E indiscriminadamente tacanha Traduz perante o espelho o indizível Sob a etérea forma sublimal Camufla sua intenção soberana Jaz-nos! Mas com embrionária calma Nesse aforreamento universal Fiz-me serva em contraponto à tirana Rendi-me ao privilégio de ser alma.

Velho gado novo

"Para onde caminha esse gado (...) marcado em brasa de muitas linhas, símbolos de donos. Muitos donos e pouca vida. " (Didi Leite)

Num mundo de convicções contrárias O olhar inverso é sempre ignorado Relegado à vã faceta ordinária Do olho que tudo vê remunerado O nobre chefe de arma sectária Pelo rebanho manso é venerado,

Amado pela ação humanitária Por alterar o foro inalterado Respaldado pela Órion dos tolos Deixa brilhar a obra providente Atado à semelhança de outros dolos Ao vício porfiar que ordena a mente E guia o gado novo à velha história À perversa oblação dos sem memória.

Decadência

“A decadência da sociedade é louvada pelos artistas assim como a decadência de um cadáver é louvada pelos vermes.” (G. K. Chesterton) Decomposição social à vista Ou um novo estilo de elaborar fama? Somos arte viva, uma voz exclama Ninguém vai nos roubar essa conquista! A arte se tornou ação extremista Como um vulcão sua lava derrama Tornando a livre expressão podre lama Sem sequer tirar criança da lista Calar é concordar que o mal se espalhe É aplaudir de pé medonho arrojo Essa falta de bom senso dá nojo Ao impor a ferro e fogo seu talhe Respeito é pedra primeira, destarte Antevem à erudição da própria arte

Desejo

“Um mistério que trago dentro de mim/ Ajuda-me minha alma a descobrir.../ Por que foi que somente nessa tarde/ Nos olhamos assim tão docemente/ Num grande olhar de amor e de saudade?” (Florbela Espanca) Quero essa tua boca em minha boca Tuas mãos com paixão... suavidade Percorrendo meu corpo com saudade E ao mesmo tempo ágil em fúria louca Quero... tua voz libertina e rouca Sussurrando-me em tom de insanidade Tuas mais sujas imoralidades Em instantes em que a eternidade é pouca Quero... teu fulgor em mim se espalhando Como a Aurora afastando o gris da morte O teu coração no meu se aninhando Quero em ti viajar sem passaporte Luzir, em pleno dia em seu olhar Como estrela, que do amor ganhou a sorte!

Súplica

“Valsando como valsa uma criança (...) ela valsava só na madrugada. Se julgando amada ao som de bandolins”. (Oswaldo Montenegro) Quando eu perder de vez a humanidade Ser somente uma a mais que não faz falta Espero estar além, talvez mais alta Distante da ladainha de um frade Não quero reza, choro, nem saudade Velório ou elogio que me exalta Dispenso a luz funérea da ribalta E manifestações de caridade Mas, quando os meus restos forem entregue À friagem da terra de onde vim, Necessito de alguém que se encarregue Do último detalhe do meu fim É um único pedido não me negue: Me enterre ao belo som de um bandolim!

Verme Escroto

Ao tarado que ejacula nas mulheres no transporte coletivo, meu asco e indignação. Às mulheres que tiveram seu corpo maculado, sua privacidade violada e sua dignidade ultrajada; minha solidariedade. Tu, verme escroto! Reles descarado! Que exibe o estandarte masculino Tal como a fina flor do teu destino Merece ter teu membro decepado Tu, verme! Que em seu ardor abrasado Comporta-se com vil furor maligno Ao roçar na mulher teu falo indigno Merece pelo menos ser castrado Tu, verme! Miserável furibundo! Não vale o dinheiro que o Estado gasta Pra mantê-lo em cárcere, ser imundo! Perversão é a doença que te arrasta! Tens o asco da Mulher em todo o Mundo Morte a ti! Mas, por hora, cela basta!

Bicho Humano

“Quisera qualquer coisa provisória / Que a minha cerebral caverna entrasse, / E até ao fim, cortasse e recortasse/ A faculdade aziaga da memória.” (Augusto dos Anjos)

Minhas ínfimas pulsões cerebrais Nascem de conexões obscuras De ordenações neurais sem estruturas Provindas de mutações ancestrais Flagro-me em atitudes bestiais Sinistramente presas na loucura Com tenebroso olhar de besta impura Moldada à clausura atroz de animais Enxergo-me em rota astral invertida Num extravasamento suicida Trôpega e monstruosamente só Apraz-me juntar o térreo e o etéreo E abandonar-me à paz do cemitério À síntese inorgânica do pó

Hora Morta

“Leste os meus versos? Leste? E adivinhaste o encanto supremo que os ditou? / Acaso, quando os leste, imaginaste / Que era o teu esse olhar que os inspirou?” (Florbela Espanca)

Sentia-me só... sombria... sem lume Entre tantas, uma triste alma apenas Na janela o luar dos vagalumes A exalar suave olor de açucenas A noite transmitia paz divina Nessa hora dormia toda a cidade Envolta no rendilhar da neblina Tão branca quanto o véu da castidade Tudo dorme e eu permaneço acordada Gelada ao pé da vidraça embaçada Tresloucada em saudade a soluçar Longe teu corpo repousa no leito Quiçá com a mesma saudade no peito Sonhando meu corpo teu te abraçar

Odeio-te

“(...) Odeio quando não está por perto, E o fato de não me ligar, Mas eu odeio principalmente, Não conseguir te odiar, Nem um pouco, Nem mesmo por um segundo, Nem mesmo só por te odiar.” (Trecho do poema do filme: “10 Coisas que Eu Odeio em Você”) Odeio teu riso e a forma que falas! Serenamente numa paz infinda... Exalando amor dessa boca linda Odeio ainda mais a arte que calas... Odeio teus olhos cheios de encanto! Refletindo cor como a primavera Esse olhar felino onde o charme impera Odeio o jeito que me deixa em pranto... Odeio teu corpo e a forma ideal! Às vezes penso que nem és real Embora bem sei: nada tens de santo Odeio-te! Mas, devo admitir Me odeio mais por não saber mentir Que te amo tanto que nem sei o quanto

Noite Sinistra

“Número cento e três. Rua Direita. Eu tinha a sensação de quem se esfola, e inopinadamente o corpo atola, numa poça de carne liquefeita.” (Augusto dos Anjos)

Acordo em plena noite angustiada Ao macabro vulto indago: quem sou?

Brada ele: Olhe o espelho, desgraçada!

No espelho vejo nada! Onde estou?

No céu brilha uma fosca lua ainda Sob um soturno véu a soluçar A doce voz do vento antes tão linda Agora faz tremer... Arrepiar!

Cravejada em meu peito há dor intensa Uma falta sepulcral tão imensa A luz que chega ao olhar logo se esconde Em laivos de dor argo ao universo Ao ar, mar, à terra... luar disperso E aos prantos pergunto: Onde estou? Onde?

Feliz Aniversário

“A porta dos meus quinze anos não tem mais segredo / E velha, tão velha ficou nossa fotografia” (Oswaldo Montenegro)

Só depois de passados muitos anos Finalmente amanhecemos pra vida Soltamos a meninice esquecida Que oscila entre esperança e desenganos Com o olhar agora pouco envelhecido A dor já não nos causa tantos danos Hábeis abandonamos velhos planos Sem que nos tornemos enfraquecidos Com o tempo traçamos nova postura Vemos que até com riso há quem padeça Que a levez dá lugar à fibra dura E os versos são pra dizer: não esqueça! Que essa amiga repleta de ternura Quer ver-te envelhecer sem que envelheça

Entre o luxo e o pó

“Em vão! Contra o poder criador dos sonhos/ O fim das coisas mostra-se medonho/ Como o desaguadouro atro de um rio...” (Augusto dos Anjos) Céu na Terra... Ostentação surreal! Escadarias com mármore paros Candelabros áureos e cristais raros Vitrais com requinte descomunal No suntuoso templo magistral Fiéis faltos ao Pai pedem amparo Com olhos perdidos no brilhante aro Logo atrás da imagem de um cardeal Lutoso os sinos dobram em agonia Flébeis beatas vestem cor do dia E a arenga instaura o ritual da dor Carpideiras choram em frente a um caixão A dor visceral ascende oração E um pútrido odor entre olor de flor

Ciclo Infindo

"Rasgo dos mundos o velário espesso; E em tudo igual a Goethe, reconheço. O império da substância universal!" (Augusto dos Anjos)

Sou só filamentos de luz etérea Retidos na imensidão do universo Nesse metafisicismo adverso Desmembrados do halo da matéria A energia motriz que em mim reluz Também me arrasta no sentido inverso Com movimento circular disperso Remetendo-me ao caos que me traduz Impercebivelmente vago a esmo Qual tento potencial de si mesmo No entanto, preso a uma ordem infinda E a luz: intra-atômica funcional Alimenta meu campo vibracional No pós-morte há de estar comigo ainda

Canto dos Amaldiçoados

"... De repente, ouvindo um grande estrondo, na podridão daquele embrulho hediondo, reconheço assombrado o meu destino". (Augusto dos Anjos)

Este é o canto dos amaldiçoados Dos que vieram ao mundo pra sofrer E carregam no peito sem querer O maldito brasão dos torturados Este canto é pra ti, cruel carrasco!

Que se farta com a dor do teu açoite Com o sangue, que veloz flui dia e noite Num sangramento rúbeo de dar asco Este canto é de mágoa e sofrimento!

Angústia - névoa intensa de tormento - Sombrio canto!... Nem todos sabem ler!

Os que sabem têm olhos rasos d'água Na boca o amargo fel da insana mágoa E no peito a agonia do meu ser.

Pierrôt e Colombina

"Um pierrô apaixonado/Que vivia só cantando/Por causa de uma colombina/Acabou chorando." (Noel Rosa)

Tudo parece vazio e incompleto Dentro do quarto chora Colombina Solidão?... Seria essa sua sina? Viver sem Pierrôt e seu afeto? Mas quando os foliões estão em festa Ao som dos bandolins de carnavais Colombina se esquece dos seus ais Encontrar seu amor é o que lhe resta Festo, está Pierrôt à sua espera Rápidos se juntam à multidão Entre confetes, luz e purpurina Pros dois, o amor é livre - é essa Pantera - Que não aceita rédea e servidão Viver preso em preceitos de doutrina

Tantra

"Andava a procurar-me - pobre louca -! E achei o meu olhar no teu olhar, e a minha boca sobre a tua boca!" (Florbela Espanca) Há de ver-me de alma nua imantada Perante o sacro altar do corpo teu Nos teus, meus olhos negros como breu Numa noite de lua prateada Há de sentir qual bruma rendilhada, Meus enluarados fios em cascata, Cair sobre teu corpo como prata E na boca um céu de estrela orvalhada Há de ver-me como um sonho - presente - Canto de rouxinol paixão ardente A que em ti esse ditoso amor luziu Em prece, com os úmidos olhos tantra Soletrará meu nome como mantra Bendizendo esse amor que nos uniu

Lua Sanguínea

“É tudo em vão! Atrás da luz dourada, / Negras, pompeiam (triste maldição!) / Asas de corvo pelo coração.../ Crepúsculo fatal vindo do Nada!” (Augusto dos Anjos)

No céu tenebrosamente profundo Fulgura uma sinistra lua cheia Vertendo olor de enxofre em todo o mundo Com ela meu olhar abissal vagueia Seres lucífugos uivam pra lua Cultuando a sanguínea forma arcaica Que lutuosa escorre pela rua Serpeando as vielas mais prosaicas E o rito se repete toda noite Perpetua a maldição como açoite Reafirma o cruel tabu do medo Ao longe se reza o credo em segredo Enquanto taciturna a natureza Dorme sob essa lúgubre beleza

Fogo sob neve

"... e a todo momento, sem te beijar, eu estava te beijando; com as mãos, com os olhos, com o pensamento numa ansiedade louca." (Pablo Neruda)

É mais!... mais que fulgor, é intensa luz! O ardor voraz que em meu peito inflamado Abrasa sob neve disfarçado Como dor dos que aceitam sua cruz! No olhar esse amor sorri-te escondido Na boca, desejos inconfessados Se ocultam discretamente encantados... Voejam nesse sentir incontido Ardente amor, queima a alma lentamente Como fogo, arde tenaz em porfia Mesmo oculto é visceral e imprudente E assim prossigo refém da agonia De um amor circunscrito à tirania E ao mesmo tempo doce e tão clemente

A pele que habito

"Rasga essa máscara ótima de seda/ E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos.../ É noite, e, à noite, a escândalos e incestos/ É natural que o instinto humano aceda! (Augusto dos Anjos)

A vida é um desfile de carnaval Alegria banal do folião Que vê na máscara de papelão O cúmplice perfeito, seu aval Pra esconder seus inúmeros defeitos Exibem qualidades que não tem Forjam caráter, encenam o bem Simulam representações de efeito Desfilam sob o brilho do holofote Sem se dar conta que a "face" é boicote Derrete com o calor da multidão Numa quarta qualquer o realismo Alguns superam esse dualismo Outros avançam sendo o que não são.

Revelação

“Sou eu que, ateando da alma o ocíduo lume, / Apreendo, em cisma abismadora absorto, / A potencialidade do que é morto / E a eficácia prolífica do estrume!” (Augusto dos Anjos) O homem, ao libertar-se da cegueira Do vício que carrega o ser errante Renasce para a vida nesse instante Pra luz da eternidade derradeira A vida, até então obnubilante Do início até seu fim clareia inteira Como a alva flor de lótus na poeira Com haste firme a luzir qual diamante Resquício da visão subterrânea Desaparece de forma espontânea E com ela o execrável ser precito O olhar ressurgirá da vida morta No instante em que esse homem avista a porta Que abre todas as outras pro infinito

(Co)existência

"Deuses do além / Duendes do ar / Anjos do bem / Vão te mostrar uma luz maior / Capaz de convencer / Que um mundo bem melhor / Existe em você" (Guilherme Isnard) O que ficou pra trás...anos passados Tantos momentos de dor e perigo Encaro de frente o velho inimigo Há tempos perdido enfim reencontrado Olho-o de soslaio, meio de lado Com olhos de hoje e olhar muito antigo Reflexo de mim um tanto avoado Longe ou distante, mas sempre comigo O monstro medonho mostrou-se humano Soube tocar o meu ser comover Sem muito esforço mostrou meu engano Viver é semente: luz metafísica Há de uma morrer para outra nascer No espelho do tempo a vida se explica

Inescrutável Ciclo

"Morte (...) Diante de ti, nas catedrais mais ricas, / Rolam sem eficácia os amuletos, / Oh, senhora dos nossos esqueletos / E das caveiras diárias que fabricas!" (Augusto dos Anjos) A terra na qual piso é tão instável Como oculto túmulo da matéria Ou uma urna embrionária, funérea Porvir de uma existência miserável E o homem regojiza enquanto aguarda O lento apodrecer misterioso Na insana expectativa do gozo Da carne convulsiva atordoada Chafurda com essa ilusão sobre o pó No ápice do prazer se enxerga só Eminente visitante do inferno No átimo recorda o traço de um rosto Com o olhar afetuoso nele posto Fechando o inescrutável ciclo eterno

Dos olhos teus

"O poente tem alma: sente e ama! / E, por que o sol é cor dos olhos d'Ele'/ Eu fico olhando o sol, a soluçar..." (Florbela Espanca) Todos os meus dias nascem incertos Desde que o resplendor dos olhos teus Bruscamente desviou-se dos meus... Ponho-me rubra brasa em peito aberto Partiu... deixou as trevas da má sorte Levou o sol - fonte mister de alegria - Meu norte! Rumo! Prumo - estrela guia -! Acendendo a negra chama da morte! Deus! Conceda-me caminhos de luz! Pra que eu possa carregar minha cruz Sem me perder de vez em densas trevas! Devolva a claridade dos meus dias! O sol que sobrepuja as névoas frias E afasta a escuridão!... Pra longe a leva!

Inimigo Oculto

"Diabólica dinâmica daninha/ Oprimia meu cérebro indefeso/ Com a força onerosíssima de um peso/ Que eu não sabia mesmo de onde vinha." (Augusto dos Anjos) Cresce no meu peito algo apavorante Rouba-me o ar e a ansiedade é tanta Que da sepultura o medo levanta Como se fosse ele um monstro gigante Luto com ardor e nem sei com quem O inimigo é vil cobre a sua cara Inverte, esconde, outras vezes, mascara De mim, sabe tudo, está sempre além Quanto mais fujo, mais me afundo nele Não sei se sou o mal ou se o mal é ele A incerteza oscila entre o não e o sim E assim perdida ando sem rumo ou norte Sou aquela estranha que aguarda a sorte Quem sabe a morte: inevitável fim

Letargia

"É a saudade dos erros satisfeitos, / Que, não cabendo mais dentro dos peitos, / Se escapa pela boca dos cativos!" (Augusto dos Anjos) Temo que tua ausência tão constante Apague a chama docemente acesa Transforme espontaneidade em defesa E apequene o que na essência é gigante Temo que esse langor peculiar Leve a candura, em suas asas, presa Afaste a devoção terna e coesa Permita ao desamor a aliciar Temo que o medo abissal, inimigo Confirme austero e tenaz meu receio E, como obsessor, ande comigo Temo que o meu coração em tormento Torne-se impiedosamente cheio Da inércia que te serve de alimento

Horas na mira do tempo

"... rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo... o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo..." (Raduan Nassar) Atualmente o tempo está a encolher Espreita o lazer e sem argumento Usurpa sem parcimônia o momento Que resguarda o prazer de qualquer ser Tempo: traz em si missão de tolher Eliminar paz em prol do tormento A saúde em troca de um corpo lento Cegos cremos: impossível escolher! E os anos velozmente vão passando Com a sensação que o tempo acelerou Nos ombros lassos sobrecarga e dor Tempos que não há tempo, o amor vem quando? Talvez pelo sneep?... Ah, já expirou!... O tempo passou... e levou o amor!

Dinâmica (Des)umana

"Creio, como o filósofo mais crente,/ Na generalidade decrescente/ Com que a substância cósmica evolui..." (Augusto dos Anjos) Neste letal sepulcro da existência Tamanha é a dor que o coração se parte Expõe ventrículos sem nenhuma arte Reduz-nos à estética da imanência Mutila a alma: bestial violência! Por todos os sentidos se reparte Desagrega moléculas destarte Dardeja átomos com onipotência A energia vital o algoz pressente E o feixe neural traduz com destreza: Endorfina pouca enlouquece a mente! Não distingue o riso da atroz tristeza Não difere bicho, planta nem gente Mói e engole... sou só mais uma presa.

Andanças

"Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar. (Fernando Pessoa) Há amor em meu secreto pensamento Delicadezas tantas nas lembranças Sonhos sobre as pegadas das andanças Risos sem qualquer sombra de tormento Cheira a âmbar meu sutil contentamento Magia a arder na chama da esperança Nas mãos que acariciam minhas tranças Fios onde presos estão meus momentos Puro esse querer cheio de lisura Tolice é crer que tudo foi engano Negando a bela face da ventura Nada me causaria maior dano Que errar nos becos cegos da loucura Render-me a mordaz voz do desengano

Sonho Vago

"Que sou eu neste mundo? A deserdada, / A que prendeu nas mãos todo o luar, / A vida inteira, o sonho, o mar/ E que ao abri-las, não encontrou nada!" (Florbela Espanca) Eu quero um mundo puro igual Biela Ao norte e ao sul da linha do Equador Ver menos sentimento predador E um reluzente céu de estrelas belas Rosa ao invés de grades nas janelas Margaridas brancas, mais alma em flor Aves no céu, mais asas de condor Amor como lei, vida sem mazelas Vela solta ao vento singrando a vida Força nos remos na íngrime subida Mão em punho como farol, não lança E ao findar meu múnus subitamente Entregar-me a Deus pai serena(mente) E partir feliz como uma criança

Sete

"Pai em tuas mãos entrego meu espírito". Última frase proferida por Jesus na cruz (sete palavras) Sete: energia vital do universo Marca da perfeição, disse Pitágoras Desde os tempos imemoriais de Àgora Seu poder é mantido incontroverso É visto como um algarismo mágico Número místico por excelência Na letradura sacra é referência Na filosofia é ponto nevrálgico Sete tem a luz da etimologia Determinou o matemático grego Ilustre Pai da numerologia Espelha a passagem desconhecida Para o mundo oculto (além do apego) É junção - vida e morte refletida -

Rei sem Trono

"Como um mártir de estranho sacrifício, / Tinha os lábios crestados pela ardência/ Da luz letal do grande sol do vício". (Augusto dos Anjos) Em tua alma há uma chama execrada Sob cinzas crepita enfurecida A ardência da cólera deferida Pela augusta revanche mascarada Os dentes rangem, ruge e só aumenta A gigantesca pira da vingança Ancorada no imo como a dança De ondas que gemem em noites de tormenta Espuma a marulhar, afunda velas Empurra pescador contra rochedo Deixando órfã as velhas caravelas Eu creio que essa guerra sempiterna Faz-te amargo, cruel, um ser azedo Vil senhor dessa vã vingança eterna!

Fale com Ele

"Eu ando pelo mundo prestando atenção/ Em cores que eu não sei o nome / Cores de Almodóvar / Cores de Frida Kahlo." (Adriana Calcanhoto) Um dos mais premiados diretores Mesmo não tendo estudado cinema Fato que nunca lhe causou problema Por pertencer ao clã dos vencedores É o mais caro e ilustre de seu país Desde gran Buñuel e o Carlos Saura Para ele, Penélope e Carmem Maura São talentos - seu fetiche de atriz! Seus filmes são obra-prima... regalo! Vida nua, crua, sem intervalo! Ígnea! Com nuances de Frida Kahlo! Sua paixão é a arte e não o carcanhol É do brilhante Almodóvar que falo O famoso cineasta espanhol!

Ergástulo Invisível

"Em contraposição à paz funérea/ Doía profundamente no meu crânio/ Esse funcionamento simultâneo/ De todos os conflitos da matéria". (Augusto dos Anjos) O mundo então tornou-se um sanatório Repleto de dementes e maníacos Visão cega! Catatonismo orgíaco! Transcendência de autismo compulsório A ignomínia tatil da hibridez Dormita no ectoplasma ilusório Oscilando entre o inferno e o purgatório Sem chance factual de lucidez Eu, tresloucada cárcere indefesa Divago nesse hospício monstruoso Atada a algema oculta a que estou presa Após meu corpo vil cair por terra Cadavérico inerte e lutuoso Sepulto enfim, a atroz dor que alma encerra

Nuvens de Nácar

"És o sangue do gênio, o puro néctar/ Que a alma de poeta diviniza, / O condão que abre o mundo das magias". (Álvares de Azevedo) Há alude de pitorescos segredos Na afeição contemplativa das curvas Enigma diluído em luas turvas Na lírica de um sonhar em degredo Há um desejo latente a enlanguecer Uma inocência velada voraz Nas nuvens de nácar que você traz Como fogaréu sob neve a arder Há um onírico querer semipleno Lídima avidez febril nos olhares A crepitar como brasidos pares No imo de um suspiro vago sereno Há na cadência singela da voz Uma espécie de louvor entre nós

Ninho Vazio

"Aprendo que a vida é feita de constantes mortes cotidianas, lambuzadas de sabor doce e amargo. Cada fim venta um começo. Cada ponto final abre espaço para uma nova frase". (Rubem Alves) Meu delicado e doce bem-te-vi! Emplumou as frágeis asas tão cedo!... Ousado, alçou o primeiro voo sem medo Seria inevitável - Antevi! Meio torto, atrapalhado e inocente Dominou o céu e passou a voar Em qualquer direção, sem destoar Do revoar de aves experientes Agora, aqui no alto da pitombeira Resta somente eu e um ninho vazio E essa estranha paz sem eira nem beira Em incertas noites de horrenda procela Encolho as úmidas asas - pousio! E ainda te sinto latente entre elas

Um Copo de Cólera

"Como quem traz ao dorso muitas cargas/ Eu sofria, ao colher simples gardênia,/ A multiplicidade heterogênea/ De sensações diversamente amargas". (Augusto dos Anjos)

Ódio! Morbo endêmico imperioso Afiados dentes!: letal esfinge! Como uma antropofagia que infringe Ao outro a dor; o horror contagioso Ódio! Sentimento adâmico sórdido Plasmado na boca sanguinolenta Gananciosa vingança que aumenta O sangue derramado em horto mórbido Aguarda que o rancor em coalescência Fermente nos delírios obscuros Se estenda por osmose ao mundo inteiro Quando abatido for pela demência A tua volta terá um mundo escuro E o ódio como o próprio carcereiro

Narcisismo

"Quem ama vê além da aparência física, e é isso que ama: a essência". (Antoine de Saint-Exupéry) Cultuas o corpo, a beleza ostenta No entanto é oco, sem vida, sem luz... Na íris enxergo rara andaluz Em ordem oposta ao que representa A vida em silêncio te exclui, renega... Enquanto tu palavras destras diz Teus atos em seguida contradiz Tua hipocrisia é indolência cega! Veja, a matéria é totalmente imunda! Pseudo prazer... luz já moribunda! Pequeno grão de areia frente o "éter"! Vil espólio: hediondez no inventário! Milhões de vermes do documentário Que infestas no "maná" do teu catéter!

Reminiscências

"Longe de ti são ermos os caminhos, / Longe de ti não há luar nem rosas, / Longe de ti há noites silenciosas, / Há dias sem calor, beirais sem ninho.” (Florbela Espanca) Lembrança é um fluido amargo, mas vital Uma fina névoa de nostalgia Tecida no alvo rendilhar do dia Com cândido verso ainda fetal Não me recordo mais a cor da linha Que ficou presa na fenda do tempo Nas ternas delicadezas que atempo Minha reminiscência azul sublinha E nesse encanto de nuances tantas Dispo a cor da saudade extasiada No silêncio de um grito na garganta Vi nesse frágil instante um rubro inferno Longínquo som de viola afinada A tua voz serena e um canto terno

Canícula

"Entre as formas decrépitas do povo, / Já batiam por cima dos estragos/ A sensação e os movimentos vagos/ Da célula inicial de um novo cosmo.” (Augusto dos Anjos) O dia amanheceu sem vento... quente! Sementes... e toda a vida agoniza Um mormaço macabro esteriliza Mares, riachos, fontes e afluentes Meus roseirais azuis despertam nus Com o recato coberto de formigas Poeira e ervas daninhas inimigas E uma infausta escura nuvem de anus No ar, paira o podre olor da desgraça Sobre o sol, vê-se só um borrão negro É invisível, mas notória a ameaça Que invade nosso planeta indefeso Como coima de um sol lendário egro Sob o olhar de humanos incoesos

Acalanto

"Se essa rua / Se essa rua fosse minha / Eu mandava / Eu mandava ladrilhar / Com pedrinhas / Com pedrinhas de brilhante / Para o meu / Para o meu amor passar". (Villa Lobos) Óh canção que imaculada acalanta! Ancora no meu peito suas notas! E acorda sutilezas tão remotas! Solfejo que aqui dentro ainda encanta!... Cândido sentir - canto embevecido -! Etéreo encanto quieto em terra santa! Nostalgia que o tempo não suplanta Com o luto conturbado e enternecido!... Trespassei tantas luas na vigília Contigo rindo insone nos meus braços... Som pueril em contraste com a mobília Com você eu aprendi que o céu se alcança Que o tempo não desfaz os nossos laços Que é sagrada a nossa eterna aliança!

Noctâmbula

"Voga a lua na etérea imensidão/ Ela eterna noctâmbula do Amor, / Eu, noctâmbulo da dor e da saudade". (Augusto dos Anjos) Nesta noite obscura e melancólica Somente estrelas mortas ornam o céu A lua nívea só, vagueia ao léu Entardeci com ela tão bucólica Nesta noite o langor de alguns ruídos Pairam sob uma aragem de vingança, Vingança de almas já sem esperança Colocando em alerta meus sentidos Nesta noite sou só vulto aleijado Levando pela noite minha dor E olhar de desespero marejado E assim, quedo com o breu em mil martírios Impelida por seus dotes de ator Na vil consagração dos meus delírios

Exéquias

"Carrego em minhas células sombrias/ Antagonismos irreconciliáveis/ E as mais opostas idiossincrasias". (Augusto dos Anjos) A Aurora se desfez na indiferença Morreu-me aqui no peito teu clarão Onde o silêncio implorava atenção No irreal turbilhão de extinta crença Fulge entre sombras tristes teus espelhos: Estilhaços vibram em sons quebrados Refletindo os vitrais desencantados: Funeral do luar com olhos vermelhos Morre o que repousava na inocência! Dói no anseio afogado e na carência! Sob flores e clarões de algum vício... Chega Tânato eufórico pro enterro No caixão não há morto! Foi um erro? Vê-se vermes! É o fim ou um novo início?

Adônis

"Pálida, à luz da lâmpada sombria, / Sobre o leito de flores reclinada, / Como a lua pela noite embalsamada, / Entre as nuvens do amor ela dormia". (Álvares de Azevedo) Chegaste enfim, Adônis pra ensinar O significado com efeito Do amor e conjugá-lo com direito No tempo além do próprio limiar Eu o via muito longe das auroras Afastado até mesmo do porvir Querer morto - punhal do meu sentir - ! Embriaguez na qual perdi a hora! Presa por tanto tempo em escafandros Envelheci meu sonho em seus meandros Enfim, o sepultei em covas rasas Mas, tu meu Adônis com olhar terno Me tiraste do autismo desse inferno Devolvendo minha vida e um par de asas

Meus Versos Teus

"Rasga esses versos que te fiz, amor! / Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento / Que volte ao nada, o nada dum momento!" (Florbela Espanca) Como eu queria, amor, a tua mão Nesse instante de clamor e ânsia louca!... Apertando as mãos minhas com voz rouca Pressionando-as de encontro ao coração Como eu queria agora os dedos teus Aflitos em por fim a tanta espera No compasso em que teu corpo e alma impera E incita com prazer desejos meus Como eu queria os teus olhos de amante!... Boêmios, vagabundo e tão brilhantes Atraindo a lascívia que me invade Como eu queria!... Só por um instante! Dizer-te com voz suave e excitante São para ti os meus versos de saudade!

Ophídia

"Vives de crenças mortas e te nutres, empenhada na sanha dos abutres, num desespero rábido, assassino..." (Augusto dos Anjos) Sua funesta fome aumenta com a desgraça Semelhante a um monstruoso feto anti-humano Gestado na entranha do deserto saariano Vergonha às futuras gerações de nossa raça És mensageira-mor do infortúnio mau augúrio Tens na língua bifurcada de ophídia medonha A peçonha maligna de todas as peçonhas Como um legado negro recebido do espúrio Vive em estado incessante de alerta, bastarda! Rastejando entre as tenebrosas sombras, aguarda A fatídica ordem do teu mestre - o diabo - Juras vingança e, no fastígio da incoerência, Giras em torno de si mesma: total demência! Desesperada, tenta morder o próprio rabo!

O Corvo

Asa de corvos carniceiros, asa/ De mau agouro que, nos doze meses,/ Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes/ O telhado de nossa própria casa..." (Augusto dos Anjos)

Um corvo negro me trouxe maus agouros Essa ave fúnebre – prenúncio da morte E das vorazes agruras da má sorte - Pousou minha cabeça e tingiu meus louros Seu piado inibitório me golpeia Revoa minh´alma anunciando o luto Corro, me disfarço e ainda assim escuto O chamado da morte ao meu medo alheia Petrificada morrem-me os movimentos Trêmula balbucio o meu último arpejo Ao sentir da morte o fatídico beijo Já do outro lado, sinto gélidos ventos Açoitando sem dó o meu mórbido espírito Junto aos proscritos que me recebem em rito

Dolência

"Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa/ É nada ser perfeito. É deslumbrar a noite tormentosa até cegar, / E tudo ser em vão! Deus que tristeza! ..." (Florbela Espanca) Tresloucado é esse amor que ainda insiste Após tantas desistências do amado Em alimentar a pobre alma triste Com fogo-fátuo em peito desarmado Mordaz esse querer que lhe resiste Que teima em beber fel que não agrada Na eterna desventura assim persiste Como mel fosse a vida amargurada Será amor o que arde, queima, fere? Que ampara tal cegueira e a dor prefere, Ferir-se a deixar essa vida a esmo? Fiel a seu destino a cada instante Segue só como louco delirante Fingindo que o amor é isso mesmo

Vulcano

"É difícil marcar o lugar onde para o homem, e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto - onde a paixão se torna ferocidade." (Álvares de Azevedo) Em copo d'agua ele faz tempestade Transborda em ondas de indomável fúria Tempestuoso jura ser injúria Mata sem remorso a amabilidade Torna-se Vulcano: elevada chama Fervente voragem expelindo ira Tudo que se move está em sua mira Assustadoramente cresce, inflama! Minha doce alma ele enfeia, enegrece Ao tornar-se morte dolo-gris e peste! Nuvem assombrosa sobre o azul celeste Quando amanhece o calor arrefece A razão fala alto: dele te ausente! Mas meu coração é resiliente

Elegia à minha raça

"Com um pouco de saliva cotidiana, mostro meu nojo à Natureza Humana..." (Augusto dos Anjos) Absorta assisto a desintegração Da engrenagem viva da minha raça: Fenomenologia da desgraça! Células mortas em oxidação! A morbidez endêmica vulgar Contamina o futuro por osmose Dissolve os humanos com overdose Dessa animalidade secular Será auto mutilação dos neurônios Ou apodrecimento dos valores Sob ação hedionda dos demônios? E há os acefálicos que se orgulham Em ser palhaço no circo de horrores Larva no retrocesso em que mergulham.

Contratempo

Inspiração - "Essa estranha e doida borboleta que eu sinto sempre a voltejar em mim!..." (Florbela Espanca) Levemente escorreu pela memória E caiu na densa fenda do tempo Refúgio do que fora a contratempo Sem saber o porquê da meritória Entre as folhas do outono do meu ser Ressurge a inspiração cheia de ti Em versos violetas pressenti: O poema já estava a renascer Voou alto e pousou no meu papel Sereno como uma noite estrelada Claro, cadenciado e tão fiel Suave como a lua que vagueia Renasce minha rima consternada Como fosse o próprio amor que a alma anseia

(In)perfeição original

"É tão absurdo dizer que um homem não pode amar a mesma mulher toda vida, quanto dizer que um violinista precisa de diversos violinos para tocar a mesma música". (Honoré de Balzac) Trair o parceiro ainda é tabu Na grande maioria das culturas Será próprio da humana criatura Ou apenas de algum que deu chabu? A tentação vem desde os tempos de Eva Quando a serpente ofertou-lhe a maçã Personificação do ardil satã E seu sedutor pecado primeva Com o pecado original nasce a crença De imperfeição elementar do humano Como inata condição de nascença Embora a luxúria ande sempre à volta Ser fiel é caráter, não engano Liberdade de amar, mas sem escolta.

Interjeições bovinas

"Um telefone é muito pouco/ Pra quem ama como louco/ E mora no Plano Piloto/ Se a menina que o cara ama/ Tá pra lá do Gama, mata de desgosto (...)" (Léo Jaime) O diálogo fora assassinado Por interjeições bovinas constantes Pelo olhar frequentemente distante Dos olhos meus teus outrora encantados O enlevo tomou trem pra Marrakesh Silêncio não alcançou os decibéis Pra competir com os solos fiéis Da estridente guitarra do Slash The end! O seu tempo já está esgotado! Já era! Amanhã a gente se fala! Cabisbaixo coração meu se cala Tum! Tum! Telefone mudo do outro lado Mensagem mecânica, timbre frio Sangro! E pra não chorar então rio

Anatomia fúnebre

"Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos." (Frase escrita na entrada da 'Igreja dos Ossos' em Évora - Portugal. ) A rosada alva carne delicada Mantém-se graciosamente ereta Graças a essa magistral ossada Que assegura-lhe postura correta Essa estrutura viva é responsável Pela bela silhueta de um corpo Pelo sensual movimento afável Da diáfise oca - bailarinas tropo - Para conhecer-te olhe além da pele Erga a frágil casca ver-te-á no ato Fugaz esqueleto, arcabouço reles Esse conjunto de ossos vãos marfim É tudo que nos restará de fato Com o sono eterno e o veredito fim!

Animalidade racional

"Era como se na alma da cidade/ Profundamente lúbrica e revolta/ Mostrando as carnes, uma besta solta/ Soltasse o berro da animalidade." (Augusto dos Anjos) Nessa pífia e vã existência astral Trago a repulsiva acrimônia endêmica Como a viva herança ubíqua sistêmica Do ambíguo metaficismo ancestral Como a leprosa hospedeira da peste Mantenho longe o humano sanguessuga E o escárnio potencial em fuga Com o fedor da pústula sob as vestes Assim vivo essa atração suicida Nutrindo-me com a ira sanguinária De uma alma patológica esquecida Mas seguirei nessa sanha binária A recorrência infausta sem saída Até a volta à minha urna mortuária.

Nau à deriva

"E Há tempos o encanto está ausente/ E há ferrugem nos sorrisos/ E só o acaso estende os braços/ A quem procura abrigo e proteção/ Meu amor (...)" (Renato Russo) Perante o meu olhar, a sepultura Do encanto que em meu peito dolorido Adoeceu, morreu de amor ferido, Condenando a alma minha a tal tortura Devagar... como o sol foi se apagando Tornando a minha vida negra agora Espectro a vagar no mundo afora Qual batel no oceano naufragando Quando a saudade vã meus olhos molha Desfolha imaculados sonhos pulcros Que jazem sob a laje de um sepulcro E à luz da cruel razão a alma olha Suspensos entre escombros e quimeras Restos mortis: magia de outras eras

Samsara

"Tudo é mutável, tudo aparece e desaparece; só pode haver a bem-aventurada paz quando se puder escapar da agonia da vida e da morte." (Buda) Vivo entre as sombras gris e a luz do dia A telúrica matéria e o espírito Milenar samsara cíclico em sânscrito Na transcendente fé que me irradia!... Busco a serenidade em primazia O cobiçado nirvana dos seres Antítese de terrenos prazeres Deleites fugazes e fantasias Entre o regozijo e a dor me equilibro E na elipse plasmática do gozo Perpetuo esse karma vicioso! Oscilo ao som das cordas nas quais vibro! Diáfanos acordes moribundos! Qual melodia espectral de outro mundo...

Lua de mel em Plutão

"Sem pedir licença, muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar." (Toquinho) O desejo desabrocha sutil Ao toque lascivo das suas mãos A invasão ao belo corpo pagão E as paixões despertam ao tato ardil Queimam sobre a pétala-pele nua Sensações que a censura não aprova Mas no olhar resplandece a supernova: Meu corpo no seu corpo meu flutua! Nesse enlevo venero a tua imagem E te ofereço o amor: meu maior ganho No olor desse prazer em que me banho!... Ah, homem!... Esse meu querer selvagem!... É vertigem refletida em vitrais Mel e fel - meus anseios passionais!

Tempo – Demônio Absoluto

"O tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo (...)" (Raduan Nassar - in Lavoura Arcaica) Másculo como a imagem de um guerreiro Belo olhar desprovido de censura Traços latinos, clara formosura Lépido, galante, porém matreiro Jamais constrói ninho em um só terreno Foi sempre mais propenso ao "ter" que ao "ser" A contatos só por sexo e prazer Diz que amor é prisão: letal veneno! Obstinado devoto a mil beldades! Galanteios, paixão só de momento Soberbo... diz que altar é só pra frades! No espelho, leva um tapa da verdade Foi-se o tempo e, com ele, seu talento! Deixando-o só encerrado na saudade...

Versos Ébrios

“Pra suportar os rigores da vida, é necessário que estejamos sempre embriagados, seja de vinho, arte ou de amor.” (Anônimo) Sou verso gestado no seio da ausência Em instantes de soluços enternecidos De lânguidos olhares entristecidos Cingidos na névoa fria da carência Sou verso alado embriagado em desgosto Errando por sombras nuas de luar Ante o arpejo do sol a suspirar Pela lua que está sempre em seu oposto Sou verso triste vagando pela noite Na boêmia madrugada em ânsia louca Com raro lume estelar no céu da boca Santuário do ocaso – soberbo afoite - Sou verso dionisíaco!... açoite Ao tornar-me vão, vago, súplica oca!

Vértice Lunar

"Quando a luz dos olhos meus / E a luz dos olhos teus /Resolvem se encontrar / Ai, que bom que isso é, meu Deus / Que frio que me dá / O encontro desse olhar..." (Vinicius de Moraes) Fito a cálida noite esplendorosa! O dia se apagou, virou finado No céu o aro da lua prateado Espalha sua bendita luz formosa Lentamente as estrelas melindrosas Adornam o sutil reino encantado Alumbram meu olhar apaixonado Põe no ocaso do olhar olor de rosas Oh, Deus! Que saudade a lua me traz! Lembra-me os olhos dele a noite breu Como um espelho d'água onde vejo os meus Só ele sabe a falta que me faz Pudera eu estar agora em seu peito: Abrigo do nosso áureo amor perfeito

Desesperança

"O Homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera." (Augusto dos Anjos) Durante toda a vida eu esperei Por algo que me trouxesse a mudança De repente a cruel desesperança Libertou-me e do peso me livrei Entreguei-me a maré dos excluídos Sem opor-me ao que o destino enviasse Ou a forma que a mim isso chegasse Meu mundo havia sido destruído A ilusão se foi, mas eu fiquei intacta No entanto, sentia a vida abstrata Magoada passei a louvar só o mal A viver como uma fera selvagem Que em seu imo ganhou ampla coragem E volta à forma ancestral de animal

Sua Deusa de Marfim

"Amamos até o momento de sermos amado. Amar sem sermos amado, é tolice". (Victor Hugo) Quando reminiscências em mim impera E o pretérito começo a recordar, Tenho a nítida sensação de olvidar Como se tudo estivesse em outra era Em tempos que não havia primavera, Apenas o doloroso inverno austero A me castigar sem dó: algoz severo! Deixando em minh'alma infindáveis crateras... Porém, ao longe, vislumbro seu olhar... Sereno olhar... como um anjo a me cuidar... Agora sou sua deusa de marfim! E, se os meios não justificam os fins, Pra que viver sentimento amortalhado? Se em teus olhos vejo o amor repaginado?

Notívaga

"Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. Eu, somente eu, com minha dor enorme, os olhos ensanguento na vigília." (Augusto dos Anjos) Meus olhos taciturnos - abrigo ideal - Pra dor dilacerante que na noite escura Reduz à poeira essa ínfima criatura Torturando-me com requinte surreal As minhas noites contém o fel da agonia Ao arrastarem pelas horas o seu mal Numa infindável ladainha funeral Na sanha cega de esconder a luz do dia Dissipa-se o luar e, em mim, acorda o breu Em tons funestos, imbuídos de martírio Sinistramente com sintomas de delírio Noites a fio, fico esperando que Morpheu Dê o perpétuo descanso a esse corpo inerme E eu, livor mortis, seja entregue à ação dos vermes

Inquietação

"Amo-te como se ama certas coisas obscuras, secretamente, entre a sombra e a alma". (Pablo Neruda) Aquele encanto, Amor!.... o nosso encanto! Onde o colocou, Amor, já não o vejo? O olhar, que me arrepia tanto... tanto... E acende a louca chama do desejo? Onde guardaste, Amor, teu lindo olhar? Olhos oliva: áureo farol da estrada! E o eclipse?... vértice do luar, Não o vejo mais lá da minha sacada! E a alma nossa? Aonde estará a nossa alma? Já não as vejo mais enamoradas, Andando pelas ruas de mãos dadas! Diz, Amor! Desse jeito que me acalma! Que me queres, que me ama muito mais! Que, de mim... não te esquecerás jamais!

Sem inspiração

Que a inspiração chegue, não depende de mim. A única coisa que posso fazer é que ela me encontre trabalhando. (Pablo Picasso) Diante da folha nua, branca esteta, Arrisco falar com a inspiração muda. Brigo com a invenção cega-surda E a tinta que flui na ponta da caneta. Teimo! Na concentração, faço rapel Enquanto tênues pensamentos em bando Revoam minha cabeça caçoando Sem fazer pouso na alvura do papel. Atenta, olho ao meu redor, não vejo vida. Vejo só folhas antigas, esquecidas E esse jocoso silêncio a me zombar Suspiro fundo, mudo de posição, Declaro guerra à inspiração...em vão. Termino então este soneto entrombar.

Codinome

"Eu protegi teu nome por amor / Em um codinome, Beija-flor”. (Cazuza) Sob a dor do meu coração em ruína, Como milagre velado, surge enfim, Suavemente, co’ alvura de marfim, A tão sonhada e esperada flor divina. Pendeu... de forma graciosa a haste fina. No peito... silenciosa abriu-se calma, Acalentando docemente minha alma Que, soturna, mal dizia sua sina. Olho pro céu e agradeço, em oração, Essa levez que se fez meu coração. E cicatriza a ferida!... (Dor que some)! Oh, flor bendita!... Bendita flor em mim! Nasceste pura!... Nívea: alvíssima assim! E assim, eu a protegi num codinome.

Desencanto

"E o luar que desmaia, macerado, lembra, pálido, tonto, esfarrapado, um Pierrot, todo branco, a soluçar"... (Florbela Espanca) Difícil crer que havia só traição Nesse a quem entreguei meu sentimento E os instantes além do pensamento Num misto de fascínio e comoção... Não consigo aceitar que era ilusão Que o homem que encantou-me com intento Jogou-me como folha seca ao vento Rindo dessa cruel desilusão Incrível que tenha sido armadilha Pra conduzir-me às raias da loucura E assim, tornar suja minha partilha Entretanto, ao amor rendo louvores A clausura do amor é a doçura E a morte triunfo: com ou sem flores

Anatomia Lúgubre

A cor do sangue é a cor que me impressiona, e a que mais neste mundo me persegue". (Augusto dos Anjos) A genética não explica meu nascimento Minha origem é sinistramente escatológica Trago sobre o corpo ocre insígnias teológicas Sinais clássicos da maldição, do sofrimento A solidão me devora, mutila-me a alma Com requinte sadista minha desgraça enfeita Em êxtase serve-se da carne putrefeita, Como sinistro urubu de mal agouro, espalma A biogênese refuta minha existência Satiriza a atra imagem disforme, decadente O disléxico pensar sem lógica, doente Soturna recolho-me na insignificância Condição mister de bicho infenso de nascença Constituído de dor, sofrimento, e descrença

Razão versus Emoção

Há vários motivos para não amar uma pessoa e só um para amá-la". (Drummond) Indiscreta razão, não me importune! Pare com seu lastimoso murmúrio! Não estou a cometer o perjúrio, Poupe-me de intrigas! Deixe-me imune!

O amor não guarda semente do mal Pelo contrário!... é beatitude. Permita-me senti-lo em quietude! Incômoda razão, sejas formal! Vês? Contra esse querer não há argumento! Pois viver sem ele é infindo tormento. Esqueça-me! Não tolha essa ternura! Desista! Jamais fugirei do amor, Mesmo que, às vezes, tão só seja a dor, Para ele ainda não existe cura!

Luxúria II

"Se você não consegue fazer com que as palavras trepem, não as masturbe." (Henry Miller) Teus "ais" me chegam qual suave melodia Excita a fêmea - teu banquete de delícias - Que, entre sussurros, jura amor sob carícias Quando o corpo meu o teu voeja em ousadia Põe-me no céu ao me açoitares com palmadas! Ao deslizar em meu glúteo ígneo o frescor Do beijo teu... na boca rósea, teu licor! Incitando a minha imaginação safada! Ah, homem! O teu prazer é meu maior prêmio! Teu falo teso traz-me êxtases surreais! És tu! És sempre tu o meu louco amor boêmio! E, no vai-e-vem dos teus quadris, eu enlouqueço! Apressas tu os movimentos animais!... Me ordenas: goza! Eu submissa obedeço!

Infinitesimal

"Aqui é a Terra, onde, ao noturno açoite, carpem na sombra pássaros ascetas, gemem poetas -- pássaros da noite"! (Augusto dos Anjos) A convicção da morte me equilibra Me despe da fantasia ilusória: Lei antropocêntrica giratória! Ao meu redor que todo o mundo vibra... Sem eufemismo... a existência é crua! Uma explosão de vicissitude acre! Chacina de sonhos!... Amplo massacre Com sangue inocente encharcando as ruas. Por outro lado é seiva vital, nutre! Claridade tênue que afasta abutres! Condição à decantação da essência, Sou filamento dessa imensa luz! Uma engrenagem do cosmo... andaluz! Metafísico grão por excelência.

Caricatura

"Era como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o seguinte. Só dois pontos à espera."(Clarice Lispector) A cada passo em sua direção Soava o rufar do tambor: Perigo! Surda caminhei rumo ao inimigo Cega pro aviso: macho alfa em ação! De repente esbarrei nele: perdão?! Ou ele esbarrou em mim? Pouco importa! Como um gentleman riu, abriu-me a porta Insonte abri um sorriso e o coração Caricaturou-me em soslaio, creio E expôs de maneira rude só o feio Ignorando em mim nefasto feito Ansioso em ressaltar meus defeitos Traçou-me na imperfeição do seu jeito No afã não viu a flor: amor-perfeito

Encanto

"No amor, basta uma noite para fazer de um homem um Deus." (Propércio) Desse amor, sei tão somente o que diz O olhar teu. Embora pareça pouco, Tornou-se tanto, tanto esse amor louco!... Que indago: pra merecê-lo que fiz? Que fiz eu pra que esse alvo amor constante Se tornasse fulgor nos dias meus Acalanto em reclusas noites breus Eternidade em um único instante? Quando suponho eu ser só quimera Me olhas tu com esse olhar divino Puro... serenamente cristalino E o inverno se espalha em primavera Quando tua minha boca florida Se juntam num brinde de amor à vida

Sublimação

"E a minha voz nascerá de novo, talvez noutro tempo sem dores, e nas alturas arderá de novo meu coração ardente e estrelado." (Pablo Neruda) Tinha sutil textura sensual Tuas mãos suaves sobre as mãos minhas Como fossem as minhas de rainha Em sublimação espiritual Teu riso tinha acorde musical Me arrepiava a pele sem tocar E me tocava o corpo só com o olhar Enlevo de prazer celestial Tinha em ti um brilho de diamante Foste tu a pôr em mim a alvorada Quando eu me senti resto, quase nada Quando em mim for primavera vibrante Florindo meus primeiros roseirais Serão eles pra ti, pra ninguém mais!

Borboleta Preta

"Poeiras de crepúsculos tristonhos, lembram-me o fumo leve dos meus sonhos, a névoa da saudade que deixaste!" (Florbela Espanca)

Somente aquele que um dia foi vítima Desse sentimento chamado amor Consegue escutar seu lamento, a dor No peito aflito a cadência legítima O gemido triste na brandura ínfima Que adentra as noites frias sem calor... As horas moribundas sem sabor... O choro da lua do sol tão íntima Todo o seu langor a noite me trouxe Nas asas de uma borboleta doce Na angústia dos meus pares descontentes Noites iguais em dias diferentes Esse é o destino de quem ousa amar!... Para além do próprio amor se encontrar

Versos ao meu amor

"... Ai não desprezes a minha adoração de escrava louca! Só te peço que deixes exalar, meu último suspiro em tua boca." (Florbela Espanca) Abri o peito e desvelei-te a emoção A transparência do amor que a ti dedico Com o fervor desse sentimento rico Pureza que me faz toda doação Fiz-te versos que guardam tom de oração E neles rimei sem fim com querubim Meu doce anjo relicário de marfim Descalça entreguei a ti meu coração Pega, Amor, em tuas mãos devagarinho Para que sintas o amor e meu carinho O dulçor dos alvos versos que o bendiz Em nosso peito este amor se fez calvário Pra o proteger o embrulhei neste sudário E eternizei nesses versos que te fiz.

Catalepsia

"Aqui é a Terra, em que a alma chora, e em que a saudade canta!" (Augusto dos Anjos) Em um campo fúnebre vive minha alma Nesse torpe lugar sinto ter estado Como se o corpo ainda tivesse atado Às raízes magras que me comem encalma Ando sobre ossos... livre e suave em salma São tíbias, fêmur, crânios, tufo rendado De cabelo perfeitamente blindado Tudo é frio, deserto... não vejo vivalma Grito! Ninguém ouve ou vê minha clivagem As farpas éreis fixas no coração Os frios membros frágeis sem reação Num átimo vejo a dolorosa imagem Um caixão lacrado e alguém angustiada Sinos a dobrar e eu sendo sepultada

Meu encontro com Augusto

Minha confiança no ser humano é inversamente proporcional ao transcorrer fúnebre dos dias." (Anônimo) Encontrei-o com olhos fixos na procela Como se buscasse acalanto pra tristeza, Olhou-me como quem não via, com frieza. Desapontada me aproximei com cautela. Num impulso, pra ele recitei "Versos Íntimos" Falei da influência e meu agradecimento, Da poesia que cala meu sofrimento, Do singular legado hediondo legítimo. Por trás de seus olhos vi luz: me encorajei! Co' admiração, suas frias mãos beijei Reverência que requeria a ocasião De repente, sobre o olhar sonolento, tordo Abre-se o clarão do dia; assustada acordo Com meu vizinho dedilhando o violão

Megera

"Nenhuma ignota união ou nenhum nexo/ À contingência orgânica do sexo/ A tua estacionária alma prendeu..." (Augusto dos Anjos) Enfim, calaste a voz da afeição enternecida! Mataste-a com o cepo do ciúme sem clemência Veneno que corrói relações de dependência E esteriliza o amor: combustível para a lida Regozija-te com conveniência polida Em projeções débeis de um futuro de carência, Presa a uma rotina histérica de demência, E essa vã superioridade arcaica falida!... Jamais deterás a força suprema nascida No amor que transcende o tempo pra tornar-se vida, Alheia a sua astronômica peçonha ronha. Não tardará e serás só resto fúnebre vão: Repasto de verme cemiterial, anão: Foto esquecida sobre uma lápide medonha!

Homo Sapiens Invertido

"Acostuma-te a lama que te espera!/ O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/ A mão que te afaga é a mesma que apedreja." (Augusto dos Anjos) O instinto de ferir é tua arma leviana Sagaz trama, esconso sai de cena comedido Porém, a ação declara o teu caráter fluído Como reflexo em tudo que a tua essência imana Você é a vergonha das vergonhas da espécie humana! Porque foste da escala evolutiva excluído! Rebaixado ao nível de Homo Sapiens invertido Com o reles cérebro na região peniana Tens, no olhar, a maldade de ser inferior!... Na pele, a insígnia de Anjo Negro desertor Obscuramente renegado em todo o mundo Repare! Veja, em meus olhos, a revolta, o asco! Eu jamais permitirei que sejas meu carrasco! Cuspo!... E, na tua cara, escarro, Homem Imundo!

Íntimo Desejo

"Toma um fósforo. Acende teu cigarro!/ O beijo, amigo, é a véspera do escarro,/ A mão que afaga é a mesma que apedreja." (Augusto dos Anjos) Pronto pra desfigurar meus traços anatômicos Ele ruge agudo em meu ouvido como fera Ansioso em devorar a rósea carne espera Para satisfazer seus caprichos gastronômicos Ao abrir a boca podre, exala odores crônicos, Expõe espurcos caninos finos de outra era. Sua sanguinolenta língua ególatra à vera Deixa a mostra uma colônia de vermes gnômicos Com excessivo nojo, o olho sem sombras alvíssaras... Enojada, sinto que vou vomitar as vísceras E toda maldade deixada em mim putrescível. No impulso agonizante da iminência da morte, Trêmula, enfio dois dedos na garganta e, com sorte, Vomito a perfídia imagem tua desprezível!

Nosso primeiro encontro

"A água, em conjugação com a terra nua,/ Vence o granito, deprimindo-o... o espanto/ Convulsiona os espíritos, e, entanto,/ Teu desenvolvimento continua!" (Augusto dos Anjos) Foi numa tarde de domingo sem lume Nosso encontro à beira de um mar ignoto Do leste soprava uma brisa de azoto Formando uma densa nuvem de betume Precipitou chuva negra de chorume Sujou a areia, entupiu bocas de esgoto Com o alúvio vai junto o meu corpo escroto No enredado do seu viscoso azedume No local um negror funesto se espalha A luz do sol só chega aqui de mortalha Em densa aragem repleta de plutônio Como em teus olhos que são cegos pra alvura Voraz olhos a tolher minha candura Me reduzindo a eleita do demônio

Funesto Acalanto

"Em vão! Contra o poder criador do Sonho/ O Fim das Coisas mostra-se medonho/ Como o desaguadouro atro de um rio..." (Augusto dos Anjos) Na inocência do riso nunca se espera... Mas, de repente, vem o estrondoso chute Na boca do estômago e a dor incute Esparrama opacos cacos de quimera Sangue jorra quente, rápido libera Adrenalina... mesmo que contra eu lute Atraído pelo olor ímpar, não nute O abutre perante o maná que venera Sobrevoa-me um torpe demônio negro Alardeando minha triste desgraça, Caçoando do infortúnio em arruaça A visão turva como um evento alegro!... Vê a ceifadeira o meu corpo no chão... Me estende como acalanto a fria mão

Tempestade Niilista

"É a subversão universal que ameaça / A Natureza, e, em noite aziaga e ignota, / Destrói a ebulição que a água alvorota. / E põe todos os astros na desgraça!" (Augusto dos Anjos) Uma procela niilista, assola meu "eu" tático Cai com violência em minha zona de conforto Enquanto o léxico lírico morre absorto Na ponta fina do punhal do hediondo enfático Repentino o firmamento torna-se lunático Prolífico ventre de um esotérico aborto Nele o crepúsculo convulsiona e morre no orto Dando lugar a um lacônico breu pragmático Uma atração mórbida por sangue, um desencanto Germina visceral nos meus sentidos, ascende Na espinha dorsal da minha existência e transcende Até que a morte me estende a mão como acalanto!...

Me afaga o corpo inerte como faminto cão E exibe o meu coração pulsando em sua mão

Ribalta Fúnebre

"No wagnerismo desses sons confusos, /Em que o Mal se engrandece e o Ódio se exalta, /Uiva, à luz de fantástica ribalta, /A ignomínia de todos os abusos!" (Augusto dos Anjos) Ainda abraçada às memórias lisonjeiras, Recebe o sinistro golpe no órgão vital. Borbulhante rubro jorra o sangue frontal Pelas frestas glaucas das horas derradeiras. Executa hemácias, plaquetas verdadeiras, Alcança o sôfrego cérebro visceral, Transpõe a barreira do corpo sepulcral, Veloz chega ao credo e às beatas carpideiras. Com furor, cuspo o coração ainda vivo... Restos de sonhos: claro espelho da derrota! Com golfadas da sanguínea seiva devota. Junto ao esgoto, meus restos mortais arquivo. Oferto o sangue ao meu algoz resignada: Taça erguida! Um brinde à minha alma consternada!

Cio da Besta

"A rua dos destinos desgraçados faz medo. O Vício estruge. Ouvem-se os brados da danação carnal... lúbrica, à lua, na sodomia das mais negras bodas. (Augusto dos Anjos) Por trás de um jazigo gris setentrião A besta ébria espreita sem que se farte Em ritual lascivo exibe sua arte Mórbida herança lúbrica putrião Sôfrega a bastarda flerta com um pagão Excita-se como fosse a própria Astarte E a vítima seu devasso baluarte - Júbilo carnal - legado vibrião Perversão serve-lhe de religião Cúmplice para seus fitos marginais Maná para seus deleites bacanais Machos se inflamam no afã da ocasião Gozam sem pudor numa dança obscena Fetiche vil de Criatura pequena

Miserável Ser

"Ser miserável dentre os miseráveis/ — Carrego em minhas células sombrias/Antagonismos irreconciliáveis /

E as mais opostas idiossincrasias! (Augusto dos Anjos) Entre os soluços absconsos da noite Vagueia triste alma solitária inerme Sombra terrífica, vivenda de verme Esconsa entre interjeições de ódio e açoite O corpo horrível se arrasta sem afoite À luz do antagônico luar enferme Expondo as chagas abertas sobre a derme E a ontogênese disléxica em coite Estulta, não admite a sua sina A inaptidão plasmática ancestral Sua suja herança caótica astral Com cavernames crepitações mofinas Até o marmóreo jazigo: tojo tétrico Refletindo nele o corpo cadavérico

Tributo a Augusto dos Anjos

"A própria força em que teu Ser se expande, para esconder-se nessa esfinge grande, deu-te (Óh mistério que não se traduz!)". (Augusto dos Anjos) Ele! Meu maior Mestre: Augusto dos Anjos! Ultrapassa as raias da âncora mesquinha Porque é efêmera e sombria a tênue linha Que separa a espécie humana dos arcanjos Essa dinâmica que as eras derrota E anula a formação química dos átomos Tem no tempo reinventado por tomos Federações autônomas de outras rotas Para que eu consiga adentrar o portal Dos renegados, escritores malditos - Ao meu olhar puro - Poetas Benditos! Sinto nele epifânica luz vital! Resvalando em meus abismos mais profundos Essa inspiração fúnebre de outros mundos.

Edna Frigato
Enviado por Edna Frigato em 26/02/2018
Código do texto: T6264814
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