Carnaval e Superação – Literatura e memória – Resenha
O presente trabalho trata-se de uma resenha do texto de Idemburgo Frazão, Carnaval e superação : literatura e memória, no qual o referido autor indica que a partir da interpretação do conto O moleque, de Lima Barreto, será realizada uma análise cujo objetivo é demonstrar como elementos e passagens relativas ao carnaval podem ser utilizadas como estratégias de superação de problemas inerentes ao relacionamento humano, tais problemas, segundo Frazão, captados pela memória individual, em sua relação intrínseca com a memória coletiva, influenciam a própria constituição identitária dos atores sociais.
Não havia lido ainda o conto O moleque de Lima Barreto, ao iniciar a leitura do texto de Frazão imediatamente pus-me a lê-lo, fascinei-me. Sua literatura pode e deve, ao meu ver, ser considerada militante, pelo pouco que conheço de sua obra acredito que para Barreto, o acontecimento artístico, a obra literária é um fenômeno social, que expressa as dores e as delícias do cotidiano.
Não possuo conhecimento literário suficiente e muito menos estou “habilitada” a tecer qualquer crítica acerca de sua obra, mesmo porque meu objetivo aqui é a elaboração de resenha acerca do texto de Idemburgo Frazão, entretanto me senti “tentada” a expor aqui minhas ponderações sobre Lima Barreto, que para mim rompeu com um modelo socialmente estabelecido e pretendia inovar com uma literatura com valor estético unido a uma preocupação social, pretendia trazer à baila questões humanas, necessidades, dúvidas e aflições ligadas às questões sociais em voga no seu tempo.
Logo no início de seu texto, Frazão destaca o fato do carnaval ser um tema rico em nuanças propiciadoras de reflexões diversas, justo por isso, acredito, o autor coaduna carnaval, memória e o primoroso conto de Lima Barreto O moleque. Frazão afirma que o artigo partirá do entendimento de que o carnaval é um rico veio de estudos e reflexões, especialmente no que diz respeito à relação da literatura com a memória social.
Cabe aqui mencionar Halbwachs, a questão central na obra de Halbwachs, consiste na afirmativa de que a memória individual existe sempre e a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo específico. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós mesmos, são, na verdade, inspiradas pelo grupo.
De acordo com Idemburgo Frazão, o referido conto de Lima Barreto é um dos textos ficcionais em que o autor consegue transmitir o que há de mais simples nas manifestações culturais brasileiras, para Frazão lições de grande profundidade em termos de estudo das relações humanas e da busca de superação de problemas graves ligados ao poder, preconceito e às dificuldades dos grupos de atores sociais menos favorecidos economicamente.
De acordo com Frazão, O Moleque é um texto híbrido em que, antes de entrar no enredo, o narrador o ambienta com riqueza de detalhes e reflexões sobre o subúrbio, o que pude conferir, logo no início da leitura o narrador cita o geógrafo Reclus e fala da importância da conservação dos nomes tupis dos lugares de uma terra. Depois de discorrer sobre o fato dos nomes indígenas terem sido substituídos pelo que segundo Barreto seriam nomes banais, de burgueses, ele passa a falar de Inhaúma, e a partir de então segue imerso no ambiente da aldeia de Inhaúma, e aí Barreto fala do barraco onde mora Dona Felismina e as moradias de seus vizinhos e inicia uma comparação entre os diversos tipos de moradias e fala sobre os hábitos dos seus moradores.
Como afirma Frazão, a narrativa ficcional está embutida em uma crônica da cidade do Rio de Janeiro, proporcionando a percepção da importância da cultura popular na formação do imaginário coletivo, de acordo com Frazão, o conto vai buscar a partir da intimidade do sofrimento de uma criança, desvendar um problema grave que tem suscitado vários distúrbios psicológicos, como a baixa autoestima, e podemos citar aqui também insegurança, auto depreciação dentre outros.
Lima Barreto nos apresenta D. Felismina, negra, viúva, trabalhadora, respeitada por todos, logo em seguida apresenta ao leitor seu filho José, personagem central da história, aí inicia-se a ação da narrativa. O narrador fala sobre as atividades do menino, comprar sabão na venda, ida a casa dos fregueses nas quais costumava entregar a roupas que sua mãe lavava, tão jovem e cheio de responsabilidades, evidenciando a dependência que Dona Felismina tinha por ele. Barreto descreve os atores sociais que frequentam as vendas, fala do amor de José pelo cinema e do Coronel que oferece ajuda a Dona Felismina para que ele possa ir à escola.
De acordo com Frazão, o coronel Castro, tenta desvendar o mistério do sofrimento estampado no rosto do menino e propõe um negócio ao menino, em troca da resposta o menino ganharia uma fantasia de diabinho para brincar o carnaval. Frazão afirma que o velho coronel com seu presente, dotara o desesperado menino de certo poder inesperado, poder este advindo da fantasia de carnaval.
Idembrugo Frazão destaca que o carnaval propicia inversões de papéis sociais e está presente no imaginário ocidental desde a antiguidade clássica, passando por diversas metamorfoses e transformações. Frazão alega que pelo viés da memória coletiva, a cultura, impregnada na mente dos atores sociais, seja a qual estrato social pertencerem, vem sendo percebida enquanto campo rico em que transitam desde as necessidades educacionais básicas aos traumas mais íntimos dos seres humanos, como é o caso do conto O Moleque.
Importante passagem do conto é quando Zeca é indagado por sua mãe acerca fantasia de diabinho, o menino responde que foi o seu Castro que lhe deu, e que não a pediu, e a mãe pergunta “para quê” ele quer a fantasia, o menino responde que aceitou porque precisava, mas essa necessidade não é referente ao divertimento, o menino argumentando com Dona Felismina, relembra que falou para ela há meses que quando passava em gente ao portão do Capitão Albuquerque para ir à casa de Dona Ludovina os meninos o vaiavam, a mãe ainda não vê motivo para aceitar, mas o menino afirma que no dia seguinte passaria pelo mesmo local vestido com a fantasia e meteria medo nos meninos que o vaiaram.
Frazão cita Halbwachs, no que concerne ao fato de que o autor mostra como a memória individual é contaminada pela memória coletiva e como a criança trata a memória já enfrentando problemas que são expostos aos adultos. Uma vez que o próprio autor da análise do conto se faz valer das ponderações de Halbwachs, sinto-me à vontade para fazê-lo também, Maurice Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir da “vivência” em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado ajustadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com o autor é uma imagem engarrafada em outras imagens.
Frazão compara Zeca ao menino Blondel, ambos diante de objetos novos e inquietantes precisando tomar uma atitude. Idemburgo também nos elucida sobre algumas questões, Zeca não podia estudar, carregava a responsabilidade de um adulto, tecendo as ações do passado com fios do presente, pois suas ações, no futuro serão extraídas das franjas do esquecimento. Ser analfabeto, negro e pobre eram suas marcas, Lima Barreto, para Frazão, traçou seu conto com matéria extraída do cotidiano, de certa forma adicionando também aspectos semelhantes aos da própria experiência vivencial, neste momento Frazão cita o diário íntimo de Barreto.
Idemburgo Frazão faz uma constatação que ao meu ver é primordial, ele afirma que o protagonista Zeca, “foi tecido com os fios semelhantes àqueles que constituem a tapeçaria da vida de Lima Barreto”, mas ressalta que não é o objetivo no texto afirmar que o conto trata-se de um conto à clé, onde a chave para sua compreensão estaria na vida de Barreto, e lembra que o próprio autor criticava os estudiosos que se baseavam na biografia pra julgar sua obra.
Segundo Frazão, é importante ratificar a capacidade de extrair da memória individual, elementos que, por estarem inseridos na memória coletiva, aproximam o leitor do traço da obra, reforçando os aspectos da verossimilhança do texto ficcional, isso faz, segundo ele, de Lima Barreto, um escritor que transforma sua obra artística em um tecido repleto de significações, sem alijar a relação da arte com a vida.
Frazão conclui seu texto afirmando que se em todas as manifestações culturais estão contidos elementos enraizados na chamada sabedoria popular, e o carnaval se apresenta enquanto vasto campo de pesquisa transdisciplinares. Se a origem religiosa do carnaval, muitas vezes é esquecida, sua capacidade de aglutinar pessoas em torno de momentos de busca da alegria, não deixa de reforçar origem.
É a reunião para o divertimento que impulsiona os folguedos carnavalescos, mas, em sua evolução, as inversões possibilitadas pelo carnaval deixam um sulco profundo na memória coletiva. De acordo com Bakhtin, o Carnaval envolve uma festa pública ou desfile combinando alguns elementos circenses, máscaras e uma festa de rua pública. As pessoas usam trajes durante muitas dessas celebrações, permitindo-lhes perder a sua individualidade cotidiana e experimentar um sentido elevado de unidade social. Lembrei-me de Oscar Wilde, que afirmou que o homem é menos ele mesmo quando fala de sua pessoa. Mas deixe que se esconda por trás de uma máscara, e então ele contará a verdade, essa é uma das possibilidades do carnaval, ser por alguns momentos o que ou quem desejaria ser, exteriorizar os seus desejos mais profundos.
As diversas modalidades carnavalescas surgidas podem, em vários momentos, mascarar o quanto a riqueza cultural carnavalesca marca os cidadãos brasileiros, principalmente cariocas, de acordo com Frazão. Deturpações, exageros ocorrem em diversas manifestações culturais, essa ocorrência não é inerente apenas às festas carnavalescas.
Frazão afirma que em várias crônicas, Lima Barreto critica o carnaval. Isso se dá, segundo ele, não em relação à manifestação cultural em si, ou mesmo às festas carnavalescas, mas sim, à maneira como as mesmas muitas vezes são realizadas, no caso do carnaval brasileiro, esse tem suas especificidades. E o autor encerra mencionando o fato de a partir da argumentação surgida na interpretação de O moleque, o carnaval enquanto tema possibilita que se vá muito além dos meros aspectos lúdicos que estão em sua base, certa vez ouvi alguém dizer que “passado o carnaval todos colocam suas máscaras”, de fato, como afirma Frazão o carnaval é um tema rico de nuanças, vestígios, encerro aqui com uma citação de Clarice Lispector, “naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.” Ou ainda ser eu mesma e não ser outra, uma das possibilidades da chamada festa da carne.