Clementina: Velha negra e mulher – Resenha
Começar algo novo aos 63 anos é um verdadeiro rompimento com os padrões socialmente estabelecidos, e foi nesta fase da vida que Clementina tornou a música, sempre presente em sua vida, sua atividade principal, brilhando em palcos, encantando o público, reafirmando suas raízes e identidade.
Myriam Lins de Barros explica que no depoimento de Clementina há uma distinção clara entre os âmbitos de sua vida, mesmo não sendo explícita, arte e trabalho faziam parte de mundos separados, no entanto, como afirma Myriam, mesmo sem se dar conta esses dois universos, na vida de Clementina estão marcados por ambiguidades e sutilezas.
Nas lembranças dessa brava mulher, a música está presente desde a mais tenra idade, seja ouvindo sua mãe cantar enquanto trabalhava, seja a viola do pai, mais tarde quando clementina passou a acompanhar o agrupamento de João Cartolinha como pastorinha, ou entoando cânticos e canções enquanto trabalhava.
A música não era para ela um “ganha pão”, era um prazer, uma brisa leve e refrescante em meio ao cotidiano fatigante e penoso. Trabalhou como doméstica, tinha o hábito de cantarolar enquanto realizava suas atividades, mas sua patroa não a incentiva e criticava essa prática. O hábito de cantar enquanto se praticava afazeres domésticos, dificultosos, árduos, era muito comum em uma época não muito distante, ajudava a aliviar os fardos e seguir trabalhando.
A música a acompanha, como bem destaca Myriam, nas festas religiosas, católicas, de Nossa senhora da Penha e da Glória, os terreiros de candomblé de Maria Neném em Oswaldo Cruz, no samba, no quintal dos amigos.
Equivoca-se quem supõe que o talento é uma vantagem da mocidade, nem da mocidade, nem da velhice, ninguém tem talento por ser jovem ou é sábio por ser velho, idade não deveria conferir superioridade a ninguém. Clementina, mulher, negra, velha é uma verdadeira ruptura de estereótipos e estigmas.
Em sua família, Clementina conviveu com um passado que não pertence apenas a memória daquela família, mas de uma comunidade muito maior, negros, negras escravizados, combinam, unificam e aglutinam a memória de seus antepassados e as transformações sociais dadas pelas novas condições de vida, fazendo desta combinação a identidade de um grupo, não apenas a música estabeleceu esta identidade, porque ela não está sozinha: a expressão corporal a acompanha; a vida religiosa lhes oferece o significado, a importância fundamental de sociabilidade permite a transmissão de um saber particular e distinto, como afirma Myriam.
De acordo com Myriam de Barros, a música como ligamento das redes sociais de Clementina, nos pastoris de João cartolinha, no coro das missas, no samba dos morros, as amizades abalizadas pela música, sua amiga e comadre Maria Neném, que lhe pediu para cantar os pontos do terreiro, o fato de Clementina se dizer católica, mas confessar existirem muitas coisas bonitas na macumba, só evidenciam a indefinição dos limites dos rituais religiosos combinada, ao mesmo tempo, com um extremo cuidado em delinear os perfis das religiões. Fazem parte da vivência de clementina: mãe rezadeira, socializada no catolicismo, amigos e companheiros macumbeiros.
A música e o cantar para clementina são a marca de identidade de uma comunidade, de um grupo, segundo Barros. Nele a música faz sentido, nele a música soa natural. O esforço e o cansaço ficariam entregues ao mundo do trabalho, que estabelece a dissociação do homem com o produto de seu próprio trabalho.
A partir da vida de clementina, para Myriam, vamos vendo que trabalho e arte parecem mostrar a convivência de duas ordens distintas da ideia de natural, um se relaciona com as qualidades individuais, dom ou talento, o outro fala de uma ordem social, de uma identidade que se constrói ao longo da vida em sociedade, a luta de classes, exploradores e explorados, a dialética da exclusão.
Citando Beauvoir, é na arte que o homem se ultrapassa definitivamente, Clementina traz consigo toda a trajetória de uma vida, toda a memória de um passado marcado pela música. Essas três categorias, mulher, negra e velha sintetizam o traço fundamental do perfil da artista: aquela depositária de um conhecimento que precisa ser transmitido para as gerações vindouras.
Como nos disse Fernando Pessoa, crenças, exércitos, impérios, atitudes - tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte se vê, porque dura, afirmação essa que deixa evidente a sutileza impregnada em Clementina, sempre subalternizada, sempre vítima de preconceitos, sempre desencorajada, nunca se atentou para o poder de sua voz, sem que nem ela mesma se desse conta de como a música fazia parte dela e como ela era sem perceber, pura música.
Como afirma Myriam Barros, a velhice estigmatizada acaba, muitas vezes, se transformando em uma luta travada contra seus próprios sinais estigmatizadores. Esses sinais são criações alheias ao modo de pensar dos velhos, mas fazem parte de uma elaboração social com as quais os velhos também colaboram. A velhice é vista como a guardiã da tradição do grupo.
Clementina, ao meu ver, corrobora a máxima de que a arte é o lugar da liberdade perfeita e que quem possui a capacidade de ver a beleza, nunca envelhece. Podemos enganar a vida por muito tempo, mas ela acaba sempre por fazer de nós aquilo para que somos feitos.