Sobre mulheres, diferenças, Cinema e Literatura
Entre os textos do livro Liberdade Crônica, da cronista gaúcha Martha Medeiros, há o texto Luz, câmera e outro tipo de ação, onde ela discorre sobre seu desinteresse aos chamados “filmes de ação”, ou aqueles caracterizados pela presença de “tiroteios, velocidade, cenas multipicotadas, sustos, finais bombásticos, superproduções”, estando entre os seus “filmes de ação” preferidos “aqueles que, aparentemente, não têm ação nenhuma”.
E referenda:
“Um bom exemplo é Antes do pôr do sol, que dá continuidade ao Antes do amanhecer (...), um blá-blá-blá ininterrupto entre um casal que caminha por Paris e discute a vida e a relação. Filme cabeça ou filme chato, rotule você. Mas não diga que não é um filme de ação”.
Depois de justificar sua classificação de “filmes de ação” àqueles que, “aparentemente, não tem ação nenhuma”, sempre fazendo referências a filmes que, sem terem sido produzidos a expressarem os saltos da imaginação e sem grandes recursos técnicos, abordam os problemas íntimos das pessoas – particularmente das mulheres e suas cotidianas dificuldades de relacionamentos – ela conclui sua crônica escrevendo:
“O cinema pode colocar pessoas desafiando a gravidade, cortando os pescoços uns dos outros, fazendo o tempo andar para trás, e eu não me emocionarei nem ficarei perplexa, mas me dê um pouco de realidade e isso me arrebata” – o que diz que, a despeito de pensarem um tanto preconceituosamente que as mulheres são “mais românticas” do que os homens, o pragmatismo é a principal perspectiva pela qual nos observam e aos movimentos do mundo que as cerca, desconsiderando que muito do que creem ser “a realidade” nada mais é que o reflexo das fantasias que, desenvolvendo conhecimentos artísticos e científicos, os homens imaginaram e realizaram, também, para conforto e usufruto das mulheres – a despeito de serem vistos prioritariamente como os destruidores da Vida.
Além disso, Martha Medeiros desconsidera o valor do grande esforço de criatividade e participação de múltiplos talentos desprendidos à realização dos filmes de fantasia, onde o mérito essencial da arte cinematográfica é mais justamente explorado. Pois, a despeito do valor dos documentários, mais realistas do que qualquer obra de ficção, e das produções existencialistas que considera “filmes de ação” – e todo filme é um “filme de ação”, pois o Cinema é essencialmente arte dinâmica – o Cinema é vocacional e principalmente destinado a nos fazer vislumbrar o que não existe, prezando por fazer referências simbólicas e suas possíveis verossimilhanças a um melhor entendimento sobre a misteriosa força da Vida que, mais fantástica do que qualquer produção artística, pôs tudo a existir no vazio.
Em meio a tantas necessárias reflexões, faz tempo que se discute sobre como identificar a igualdade nas diferenças; mais: se há mesmo considerável nível de igualdade identificável em toda imensa diversidade de manifestações da Vida na Terra – já que, notadamente, a despeito de reivindicações de igualdade, a Vida tem se manifestado por aqui, segundo contagens védicas, de 8.400.000 formas diferentes; embora não seja difícil perceber que, submetidos a certas condições, estamos igualmente sujeitos as dependências de subsistência de todas as vidas nesse planeta, sendo nossos “irmãos” mesmo os animais irracionais e as plantas; senão nossas irmãs “de sangue” – uma vez que pelas “veias” dos vegetais não corre sangue – pela irmandade vital que nos diz serem todos os seres vivos filhos da “mãe Natureza” ou, como quer espiritualistas, de um mesmo deus, estando todos nós sujeitos a mesma morte; talvez esse o parâmetro essencial que nos nivela a todos como “iguais”; mesmo se um nivelamento que só tenha sentido quando estivermos embaixo da terra, iguais a uma infinidade de outros que já não mais existem.
Enquanto estamos vivos, entretanto, o que nos determina estes, aqueles ou aquelas são nossas diferenças, cujas causas variam desde nossa estrutura biológica à formação cultural que recebemos ao longo da vida. E a despeito do que possam argumentar os que garantem serem estabelecidos diferentes comportamentos condicionados pela formação cultural que recebemos, até o tato dos cegos pode lhes dizer se diante deles está um homem, uma mulher, uma criança, um velho, uma velha ou qualquer outra forma de vida orgânica ou inorgânica que toquem.
Claro que, para leituras sobre nossas condições individuais e coletivas – se há mesmo uma “vida individual” possível além do exercício de nossa intimidade no banheiro – e nossas interpretações sobre o que devemos ou não cultuar valioso a perpetrar e disseminar, muito conta o que apreendemos em nossas relações em casa, na escola, na igreja e nas ruas.
Mas, a despeito de que a sugestão possa parecer “um retrocesso jus-naturalista”, será preciso considerar as influências das muitas nuances que também determinam nossas particulares fisiologias. Pois, numa analogia, será fácil perceber que, transpassando vidros de diferentes cores, a mesma luz incolor do Sol será projetada de formas diferentes, com a cor correspondente ao vidro que transpassar.
Dessa forma me parece evidente que alguém que sofre influências da testosterona sinta, pense e deseje realizar ou possuir coisas e pessoas diferentes das que vivem sob influências do hormônio estrogênio, misturado as diferentes influências existentes entre alguém que foi criado em família defensora dos valores cultuados pelo grupo ortodoxo católico Tradição, Família e Propriedade (TFP) e outro proveniente de uma família de hippies, acostumado ao culto da liberdade de expressão estendida à liberdade das múltiplas atuações afetivo-sexuais – não descartando as possibilidades de que, por razões ainda misteriosas, um membro de uma família ultraconservadora se transforme radicalmente num hippie, assim como um hippie, formado por longa tradição familiar, resolva de repente tornar-se um membro da Opus Dei.
Ainda considerando as diferenças, será fácil notar que não há nada que possa fazer essencialmente mal ou bem A criança (ou a todas as crianças), tendo em vista que existe um número significativamente variado de crianças, cada uma delas requerendo cuidados específicos, de acordo com seu gênero (fisiológico) e idiossincrasias.
Assim também, entre a longa lista do que evidencia a desigualdade entre as pessoas, não se pode considerar o que interessa comumente Ao homem (ou a todos os homens) ou A mulher (ou a todas as mulheres). Pois apesar das especificidades relacionadas aos gêneros a que pertencem, igualmente impulsionados por diferentes necessidades individuais, requerem mais que presenteá-los com um terno ou com vestido cor de rosa para suas satisfações – sendo no campo das artes, mais particularmente no âmbito da Literatura, onde poderemos melhor identificar o interesse comum, senão de todas as mulheres, pelo menos das que buscam as letras como instrumentos de expressão de seus anseios.
Porque a crônica de Martha Medeiros, dizendo a diferença do que interessa e motiva os homens às suas invenções, é bom exemplo do que interessa comumente ao “segundo sexo” – embora, entre tantos homens desinteressados sobre outras conquistas masculinas que não sejam a invenção da cerveja e do Futebol, considerável número de mulheres, ao contrário de Martha entre muitas outras leitoras e escritoras, motivadas por seus interesses individuais e idiossincrasias, prefiram muito mais dedicar demoradas olhadas nas vitrines e longos passeios nas lojas dos shoppings – ainda que nada comprem – do que atentar para o que está impresso na página de um livro ou por sobre o que for que passe numa tela de Cinema.