Halbwachs e a questão da memória coletiva
A questão central na obra de Halbwachs, consiste na afirmativa de que a memória individual existe sempre e a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo específico. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós mesmos, são, na verdade, inspiradas pelo grupo. Halbwachs no que diz respeito à memória individual refere-se à existência de uma “intuição sensível”; haveria então na base de toda lembrança, o chamado a um estado de consciência puramente individual que para distingui-lo das percepções onde entram elementos do pensamento social – aceitaremos que se chame intuição sensível.
Tal sentimento de persuasão é o que garante, de certa forma, a coesão no grupo, esta unidade coletiva, concebida por ele como o espaço de conflitos e influencias entre uns e outros. A memoria individual construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo refere-se, portanto, a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Olhar este, que deve ser sempre analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios.
Maurice Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir desta “vivência” em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado ajustadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com o autor é uma imagem engarrafada em outras imagens.
A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, afirma Halbwachs, e, além disso, preparada para outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou bem alterada. As lembranças podem ser simuladas quando ao entrar em contato com as lembranças de outros sobre pontos comuns em nossas vidas, acabamos por expandir nossa percepção do passado, contando com informações dadas por outros integrantes do mesmo grupo ao qual pertencemos.
Por outro lado, afirma Halbwachs, não há memória que seja somente “imaginação pura e simples” ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, ou seja, todo esse processo de construção de memória passa por um referencial que é o sujeito. A memória individual não está isolada. Frequentemente toma como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apoia a memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica, pessoal.
Os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo.
A memória apoia-se sobre o passado vivido, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita. Em Halbwachs, a memória coletiva histórica é compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na história de um país.
A memória coletiva é pautada na continuidade e deve sempre ser vista no plural (memórias coletivas), ora justamente porque as memórias de um indivíduo ou de um país estão na base da formulação de uma identidade, que a continuidade é vista como característica marcante. A história, por outro lado, encontra-se pautada na síntese dos grandes acontecimentos da história de uma nação, o que para Halbwachs faz das memórias coletivas apenas detalhes.
O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhes, é que o detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida.
Para Halbwachs a função primordial da memória enquanto imagem partilhada do passado é a de promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base no seu passado coletivo, conferindo-lhe uma ilusão de imutabilidade, ao mesmo tempo em que cristaliza valores e as acepções predominantes do grupo ao qual as memórias se referem. O autor argumentou ainda que qualquer análise sobre a origem das recordações pessoais deve tomar em consideração a influência que nelas exercem as instituições sociais como o parentesco, a comunidade, a religião, a organização política e a classe social.
Halbwachs considerou que a memória coletiva é o locus de ancoragem da identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço. Para o autor a identidade coletiva precede a memória, determinando aquela o conteúdo desta, considerando que a identidade é estável e coerente. Halbwachs concordou que é o indivíduo que recorda, porém não deixa de sublinhar que o indivíduo que recorda fá-lo apenas enquanto membro de um determinado grupo social. Para o autor é na sociedade que as pessoas adquirem normalmente as suas memórias, é também na sociedade que recordam, reconhecem e localizam as suas memórias.
Essa conceptualização pressupõe uma sujeição das memórias individuais aos padrões coletivos, visto que em última análise, o que recordamos, enquanto indivíduos é sempre condicionado pelo fato de pertencermos a um grupo. Ao sujeitar a memória a este determinismo social, Halbwachs pode ter negligenciado as tensões dialéticas existentes entre a memória individual e a construção social do passado.
Halbwachs enfatizou excessivamente “a natureza coletiva da consciência social e concedeu relativo desprezo a questão do relacionamento entre a consciência individual e a das coletividades, que esses indivíduos efetivamente construíram”, concebeu o indivíduo como “uma espécie de autómato, passivamente obediente a uma vontade coletiva interiorizada.”
As contribuições de Halbwachs denotam, porém, em muitos aspectos uma grande atualidade. A premissa de que todos os grupos sociais desenvolvem uma memória do seu próprio passado coletivo e que essa memória é indissociável da manutenção de um sentimento de identidade, que permite identificar o grupo e distingui-lo dos demais é a ainda o ponto de partida de todos os estudos sobre essa matéria.
A conceituação que Halbwachs faz de memória coletiva leva-o a conceber quer a memória, quer a identidade que a determina, como sistemas estáticos e coerentes de acepções e valores que permitem manter e solidificar os laços afetivos existentes entre os membros de um grupo material e mentalmente identificado no espaço e no tempo. O grupo, conforme concebido por Halbwachs, é uma entidade autônoma e independente no seio do qual é mantida uma ligação exclusiva com um passado comum.
As memórias subsistem porque fazem parte de um conjunto de valorações e significados que são comuns a todos os membros do grupo, na medida em que as imagens privadas que cada um tem do passado são submetidas a padrões adequados mantidos coletivamente. Para Halbwachs, a memória é um movimento contínuo e retém aquilo que ainda está vivo na consciência do grupo, a história é uma ponte entre o passado e o presente, que tenta restabelecer a continuidade interrompida em algum ponto. Logo não há história no presente, pois só é possível recriar correntes de pensamento coletivo que tomam impulso no passado.
Outro aspecto distintivo , segundo Halbwachs, é que pode haver várias memórias coletivas, pertencentes a grupos distintos, mas só uma história da nação, da mesma forma que pode haver uma história universal, mas não uma memória universal. Segundo Halbwachs, grande parte de nossas lembranças repousam no social e no histórico: “ a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.” Concluindo, para Halbwachs as lembranças seriam incorporadas pela história à medida em que fossem deixando de existir ou à medida em que os grupos que as sustentavam deixassem de existir.
Referências
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