MÚSICA URBANA BRASILEIRA: O CANTO DA ESQUERDA (parte 1)

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

Disciplina: Canção e Poesia

Professora: DR ª Sylvia Helena Cyntrão

Aluno: Renato Passos de Barros

MÚSICA URBANA BRASILEIRA: O CANTO DA ESQUERDA

Setembro/2013

O QUE PRETENDE O TEXTO-RESPOSTA?

O repertório poético da música urbana brasileira produzido, principalmente, nos anos setenta quando trata de temas sócio-políticos (as chamadas canções de protesto) apresenta sempre um discurso de tendência esquerdista pró-operário. Nesse sentido, a carreira artística de Chico Buarque foi marcada por um embate entre suas canções de protesto e o Regime Militar/Censura. Portanto, esta Tese pretende analisar duas de suas canções que abordam quatro subtemas: relação capital-trabalho; precarização da classe operária e preconceito social nos textos “Construção / Deus lhe pague” em intertextualidade com “Operário em Construção” de Vinícius de Morais e “Cidadão” de Lúcio Barbosa; além do poema “Apesar de você”, relacionando-o à Ditadura Militar.

De todo o acervo poético-musical da música urbana popular brasileira que tratam de questões políticas, o objeto de estudo desta Análise será um recorte mínimo e metonímico (quatro poemas) que terá como mote o tema: o operário e a ditadura militar no Brasil pós 64. Dezenas de outras canções completaram e ainda completam esse acervo, desde os anos 60, passando pelos anos 70 e 80 até os dias de hoje. Mas vale ressaltar que essa poética não é fruto de um movimento de ruptura coordenado com publicação de manifestos ou objetivos pré-estabelecidos (como os modernistas de 22, o Tropicalismo, a Jovem Guarda, os concretistas, a Bossa Nova). A maioria dos cancioneiros dos anos 70, 80 e 90 produziram músicas de engajamento político sem serem filiados a nenhum movimento literário ou musical.

O estudo centrado nesses três textos de Chico Buarque irá promover diálogos temáticos com os textos-satélites: Operário em Construção e Cidadão, corroborando com a noção de que a geração dos anos 70 se posicionou ideologicamente à esquerda quando abordaram assuntos político-sociais em suas poesias e canções. Do corpus citado acima, esta Tese pretende também apresentar uma análise textual fundamentada nos aspectos gramaticais do próprio texto (extratos fônico, morfológico e visual (se houver relevância), mas, principalmente, sintático e semântico) e nos textos periféricos que gravitam em torno dele no ato da leitura: contexto histórico, social e político dos autores e obras e seus discursos referenciais; imagens poéticas cristalizadas (transtextuais), comentários sobre o processo de criação (se houver), e também organizada em cima do tripé proposto por Umberto Eco: intentio autoris, intentio operis e intentio lectoris, porque todos eles são tangenciados pelo texto central (a obra), num percurso quase infinito de intertextualidades, resultando num texto-resposta do leitor/autor (a análise final da obra literária em questão: a fortuna crítica), cujo objetivo é evidenciar a plurissignificação da obra, apontar o estranhamento, desvelar o que foi velado em sua linguagem poética, ampliar o horizonte de expectativas dos demais leitores tanto do texto central quanto do texto-resposta, valorizando, ainda mais, a obra literária.

Portanto, a obra sem leitura não é nada. Mas vale ressaltar, que, no ato de produção do autor, esta obra já está sendo lida (não só apreciada, mas também avaliada) pelo autor-leitor, só que essa leitura não é tão abrangente quanto à leitura do leitor-modelo, cuja intentio autoris, nela está contida. Desde os formalistas russos, corroborando com a Estética da Recepção, percebe-se que o que amplia o horizonte de expectativa do leitor não é a obra em si e sim a leitura dessa obra.

Nesse sentido, o texto-resposta (a análise do leitor modelo) não pode ser uma mera impressão contemplativa de quem fica extasiado em manter contato com uma linguagem pouco usual que gera o estranhamento. Após a comunicação estabelecida: autor/leitor – obra literária – leitor/autor; devem estar contidos no texto-resposta o contexto histórico (no qual se situa o objeto de estudo), a intertextualidade temática (o estudo comparativo dos textos poéticos – intertextos) e os pressupostos teóricos que “tentam” conceituar esquerda e direita na política, nunca baseado no jogo eleitoreiro de partidos políticos esvaziados de ideologias, mas sim, numa noção programática do que a esquerda e a direita (a direita, de uma forma mais velada) sempre defenderam, internacionalmente, como tópicos reivindicatórios, sob o prisma das lutas de classes. Nesse sentido, as noções de esquerda e direita estarão, de uma forma pragmática, relacionadas aos conceitos de Capital (quem contrata mão-de-obra - direita) e Trabalho (quem vende mão-de-obra - esquerda). Daí este leitor/autor ser denominado também de Leitor Modelo (Umberto Eco) ou Analista Literário (Cyntrão, 2004).

Mas todo esse processo não ocorre por etapas, ele é simultâneo, pois “o textual, em qualquer arte, é a um só tempo o contextual, o intertextual e o que está além dele – a sua possibilidade de ressonância – o transtextual” (Cyntrão, 2004). Nessa linha de raciocínio, não há discurso inédito ou “puro”. Todo texto é composto por outros textos que se entrecortam, propiciando ressignificações. “A história da arte conta-se por múltiplas vozes superpostas que refletem ideologicamente as visões e a sensibilidade especial do artista” (Cyntrão, 2004).

Os pressupostos teóricos, para fundamentar/legitimar esta tese, perpassam pelos postulados da Fenomenologia, da Estética da Recepção, mas, principalmente, pelo arcabouço teórico/ideológico do marxismo, tendo em vista que o repertório poético mencionado discursa, claramente, a favor das bandeiras de lutas defendidas pela esquerda e pelo socialismo. Portanto, a música urbana popular brasileira quando canta política é um canto da esquerda, um lugar reservado “à esquerda do Parlamento” porque tal discurso não angariou espaço somente na imprensa escrita, nos movimentos sociais de massa (sindicatos, associações, grêmios estudantis, partidos políticos, liga camponesa, grupos religiosos – Pastoral da terra – grupos guerrilheiros, etc.), mas também na música e na literatura, cujos protagonistas, ironicamente, e, na maioria esmagadora dos casos, são oriundos da classe média e da média alta, mas que acreditavam que a resolução dos problemas sociais do Brasil, obrigatoriamente, passava pela abertura democrática e por um projeto político cuja classe trabalhadora seria sujeito ativo de sua própria independência e transformação social.

O TEXTO-RESPOSTA SEGUNDO A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E A FENOMENOLOGIA

dissecando o tripé proposto por Humberto Eco: intentio autoris, intentio operis e intentio lectoris

A literatura pode ser considerada, grosso modo, como uma espécie de comunicação entre autor e leitor por intermédio de uma obra, já a análise que o receptor faz dessa obra é a resposta dada, não para o autor (exclusivamente), mas para outros leitores e para ele mesmo.

Seria o texto final uma espécie de texto-resposta: o ensaio, um artigo, uma Tese sobre determinada obra literária, ou seja, sua fortuna crítica. Na verdade, essa relação se configura mais como texto/leitor do que autor/texto/leitor, porque o processo de criação (a técnica) e todos os aspectos que motivam a criação da obra é a intenção do autor na obra e ela é parte da interpretação do texto e jamais deve se confundida com a interpretação do texto.

Portanto, a obra, mesmo que ainda não tenha sido apresentada a um receptor ela é o resultado final das experiências pessoais (o olhar subjetivo) de seu autor/leitor. Porém, quem se comunica com o leitor é a obra porque ela ganha significações transtextuais na medida em que é apreciada por seus receptores a ponto de se tornar semioticamente independente da intenção do autor. Nesse sentido, a comunicação é estabelecida apenas entre obra/leitor. Para esta Análise, o foco das interpretações estará centrado na intenção da obra.

Porque a obra de literatura acabada é composta de língua e linguagem, significantes e significados, ditos que propiciam inauditos; é composta também por um universo de possibilidades provenientes de um restrito campo de experiências (a do autor). Neste caso, a obra literária não é um meio de comunicação, mas um agente comunicador. Por esse prisma, obra literária e leitor estabelecem uma espécie de diálogo, na qual a comunicação não pode ser totalmente completada. Ou seja, somente parte desta comunicação deve ser decodificada, o dito será entendido, mas o inaudito será subtendido.

A fenomenologia de Edmund Husserl explica melhor: “a linguagem de uma obra pouco mais é do que uma expressão de seus significados internos. Para se alcançar estes significados, é fundamental a interpretação (a hermenêutica); a qual será fornecida pela estruturação de um sentido particular (a obra) para conquistar o significado universal (o mundo)”. Mas para que tudo isso ocorra, é necessário o leitor: sujeito histórico que traz toda uma bagagem de vida que acolhe positiva ou negativamente uma criação artística, de acordo com o seu horizonte de experiências. O leitor participa da interação com a obra quando aquele se insere na decodificação do inaudito, justaposto nos momentos de tensão de uma obra localizados em lacunas, ou melhor, em “pontos de indeterminação que serão preenchidos no ato da leitura” (Roman Ingarden). No entanto, pode ocorrer o contrário, o esvaziamento do potencial poético da obra dado ao estado estético do leitor.

Para Felix Vodicka, “a obra é um signo estético dirigido ao leitor, o que exige a reconstituição histórica da sensibilidade do público para entender-se como ela se caracteriza.” Portanto, “ler é saber que o sentido pode ser outro” (Eni Orlandi). Só que as interpretações variam de sociedade para sociedade, de geração para geração, de acordo com a norma estética vigente. Ocorre que uma obra não pode ser considerada apenas como conseqüência de um determinado contexto e por ele justificado qualquer ausência de valores históricos. O fato de uma obra ser escrita em um século e o horizonte de experiências do leitor estar plugado nas mudanças de um outro século não invalida uma análise crítica contemporânea de um texto literário histórico. Aliás, como definir se um texto literário é clássico ou contemporâneo?

A poesia, de um modo geral, é a propulsora do discurso que busca abrigo no implícito, mas, logicamente, a potencialização desse discurso depende do universo de experiências (literárias ou não) adquirido na prática social que o leitor carrega consigo no momento da leitura. Há, portanto, neste processo, a intertextualidade do conhecimento prévio (a experiência) e do conhecimento inédito (a poesia). Com mais intensidade que os outros gêneros, a poesia não explicita em seu discurso, ela vela, para que o leitor revele, e tenha, no ato da revelação o seu horizonte de expectativas ampliado. Principalmente, quando as suas significações são reveladas. Daí ocorre o estranhamento. Sentimento não experimentado na leitura de um texto referencial. Há, contudo, um natural choque de valores entre leitor e escritor. Há também, entre eles, um hiato marcado, geralmente, pela complexidade da linguagem poética.

O choque desses valores e costumes é proposital, proposital também é o contraste de expectativas. Porque, para a teoria recepcional, a obra é o cruzamento de apreensões em vários contextos históricos. Quando texto e leitor se aproximam, a historicidade de ambos vem à tona. O grau de identificação ou distanciamento do leitor para a obra dependerá das convenções sociais e culturais vinculadas na relação.

Quando Humberto Eco sinaliza para a intenção do autor e do leitor na obra, ele defende que não há somente a produção literária intuitiva ou a leitura superficial apreciativa sem a objetividade analítica. Há também o encontro de duas culturas tangenciadas por um ponto de transformação de ambas: a obra.

Daí, o leitor que, por exemplo, busca, numa obra, o estranhamento, não irá se satisfazer com literaturas superficiais de linguagem simples e direta com temas abordados de forma pueril. Então, um sistema de valores e normas será construído pelo leitor. Se a obra não atende a esse sistema de valores do leitor, seu horizonte de expectativas permanece inalterado, numa posição de conforto. Tal literatura é denominada de obra confortadora. Ao contrário, será uma obra emancipatória aquela que atende esse sistema de valores do leitor e o amplia, epifanicamente, em inéditas perspectivas na interação pessoal do leitor: do mundo da leitura para a leitura do mundo.

A fenomenologia e a plurissignificação da obra aberta

A fenomenologia é uma forma de abordagem analítica usada em diversos ramos do conhecimento científico: Política, História, Economia, Direito, Filosofia, Literatura, etc na tentativa de dissecar determinado assunto. Segundo o pensador Quentin Lauer, “a fenomenologia não pode dar uma definição, de uma vez por todas, válida. Pode somente descrever um objeto (por uma descrição fenomenológica) de todos os ângulos e esperar que, através da riqueza da descrição, se possa apreender o essencial”. Não obstante, a fenomenologia na obra literária busca descrever a obra (o todo) pela descrição de suas camadas estruturais (as partes). Na perspectiva dos preceitos de linguistas e críticos literários que dissertaram sobre o assunto, esta Tese apresentará uma síntese do procedimento fenomenológico na interpretação dos textos literários.

Na primeira metade do século XX, a crítica literária sofreu uma guinada no que se refere ao trato do objeto literário. As abordagens literárias de prestígio, no século XIX, os historicismos biográfico e sociológico perderam força às novas mentalidades surgidas na Rússia (os formalistas russos), em Praga (Círculo linguístico de Praga), em Genebra (Conferência de Genebra). Postulados de críticos literários e linguistas se confluíam em vertentes semelhantes no sentido de considerar nos estudos do objeto em questão, exclusivamente, o próprio objeto, ou seja, a forma/conteúdo (os formalistas russos) e a estrutura (o estruturalismo) do objeto/obra literária. Já os críticos de literatura adeptos do psicologismo biográfico e do sociologismo buscavam analisar os textos literários, considerando, prioritariamente, os fatores externos à obra (peculiaridades da vida do autor, os costumes e hábitos sociais da época, o contexto político e sócio-econômico).

Entre os formalistas russos e o ponto de vista epistemológico do estruturalismo havia sutis, mas decisivas diferenças em suas abordagens. O formalismo dicotomizava forma (aspecto externo da obra - mais relevante) e conteúdo (aspecto interno - menos relevante -), pois “considerar a forma já é abstraí-la de um determinado conteúdo, em contra partida, o conceito de estrutura não comporta essa dissociação” (Maria Luíza Ramos). Daí os estruturalistas explicarem que a estrutura está no objeto, mas ambos não se confundem ou não deveriam se confundir. A estrutura é a parte velada do poema que deverá ser desvelada, abstraindo-o dos diversos elementos que o compõem. Já as semelhanças são funcionais: o fundamento de ambos é o objeto, ou seja, ambos buscam explicar o texto pelo texto, relativizando, priorizando, confundindo estruturas, formas e conteúdos. Nesse sentido, a abordagem fenomenológica se aproxima mais dos preceitos estruturalistas, na medida em que se configura como um levantamento de significações mediante a atividade constitutiva dos compartimentos textuais. Portanto, a Fenomenologia da obra literária... É o relatório. É a fotografia. O raio-x. É um instrumento de interpretação, mas não a interpretação.

Mas antes de qualquer discussão acerca da fenomenologia, é preciso considerar conceitos primordiais da linguística e da literatura. Se o linguista suíço Saussure explanava, com certo ineditismo, sobre os conceitos binários: “significante” - símbolo convencional arbitrário e “significado” - conceito unívoco, além dos aspectos denotativos e conceituais da linguagem como um fenômeno linguístico; o crítico literário espanhol Dámaso Alonso defende que “a literatura eleva a décima potência o mecanismo que abrange a linguagem comum: o signo poético comporta a pluralidade de significados em um só significante, provocando, não uma infinidade de sentidos, mas tanto quanto a análise comportar.”.

Daí, as abordagens biografistas (que não têm nada a ver com a intentio autoris) tornarem-se obsoletas, pois caluniaram o conceito mais imediato da literatura: a plurissignificação. Ora se uma obra literária é entendida, exclusivamente, como uma biografia-ficcional, reunindo, simbolicamente, os episódios que marcaram a vida do autor, essa obra possui apenas uma leitura. E se a obra for anônima, não possui nenhuma leitura. Porém, a obra literária é construída, predominantemente, de linguagem poética (metafórica) que valoriza o dito, mas, principalmente, recria a linguagem e renova suas significações no inaudito; e num processo de intertextualidade com a experiência de vida e de leitura do receptor, a obra acumulará ramificações interpretativas particulares, consolidando a noção de que o texto literário é uma obra aberta a novos sentidos. Em acréscimo, a análise literária não pode, em hipótese alguma, ser confundida com processo de criação, mas sim enriquecida por ele.

À luz do caminho formalista/estruturalista, Roman Ingardem propõe um método fenomenológico investigativo à obra de literatura, sustentado por sistemas de estratos heterogêneos, inseparáveis e dependentes entre si, mas que se completam na descrição do objeto: o estrato fônico; morfossintático; semântico e óptico. Porém, a camada visual do poema, o estrato óptico, é menosprezada por Inguardem quando afirma ser o material tipográfico apenas um sinal registrador para o leitor, cuja função é, simplesmente, informá-lo sobre qual significante se trata, não formando, assim, um elemento da obra literária. Talvez, isso se deve ao fato de ser raro, em sua época, textos que explorassem o aspecto visual do texto, já que o Concretismo surgirá depois de seus postulados.

No entanto, tal análise jamais poderá engessar o texto literário, causa potencial de experiências, emissor de múltiplas conotações e despertador de sensibilidades, mas, ao mesmo tempo, objeto de análise das Ciências literárias de método objetivo e, portanto, não cabe mais resgatar o evasivo “impressionismo crítico” cujos adeptos encontram-se agrupados, por exemplo, no simbolismo francês: Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé acreditavam que a obra possuía uma reserva inesgotável de significações. Esse pensamento soa a charlatanismo, pois qualquer interpretação dada a uma obra deve ser ela sustentada por aspectos intrínsecos e extrínsecos à mesma.

O estrato fônico e a polêmica da preservação de seus recursos nas traduções

O estrato fônico é a camada da fenomenologia que contribui na identificação do ritmo, do metro e de recursos sonoros relevantes na mensagem final do texto poético. A esses fenômenos sonoros da literatura, Todorov é o mais metódico dos teóricos: ele divide os aspectos sonoros da poesia em três partes: (1) Onomatopeia – a expressão do signo reproduz o som que ele designa; (2) Ilustração sonora – a palavra evoca uma impressão auditiva do fenômeno descrito; (3) Simbolismo sonoro – distribuição fonemática: o condicionamento da matéria significada, quase imperceptível passa a ter interpretações subjetivas. Contudo, tais conceitos não satisfazem um problema relacionado com as peculiaridades que cada obra literária possui em suas línguas de origem.

Segundo Maria Luíza Ramos, citando Roman Ingarden, “o estudo do estrato fônico não se limita a uma generalizada aferição de onomatopeias, pois essas são recursos linguísticos.” Nesse sentido, Maria Luíza afirma: “as onomatopeias são a imagem acústica de clima poético que conduz à estesia”. Daí a docente, em consonância com a sua fonte, defender que o estrato fônico é algo mais complexo. “É a aplicação dos elementos sonoros da linguagem a um fato poético. O terreno pragmático de tal teoria é, de certa forma, um tanto árido.

Considerar, por exemplo, que sons mais fechados e nasalizados trazem uma ideia de sentimento recalcado e opressão é fragilizar a própria definição, na medida em que um poema pode ter, semanticamente, um tom depressivo com predominância de sons fechados, mas que, na tradução para um outro idioma, a coisa se inverte.”

No entanto, Roman Jakobson explica que “não há fragilidade do conceito de estrato fônico, que possa servir como regra na sustentação da análise poética, porque os sons possuem cargas semânticas originais, ou seja, independentes dos sentidos de suas palavras nas determinadas construções sintáticas”. Para o papa da linguística contemporânea, “quando se testam, por exemplo, oposições fonemáticas como as de grave/agudo, perguntando-se qual fonema / i / ou /u/ é o mais sombrio, algumas pessoas podem responder que tal pergunta não tem sentido para elas, mas, dificilmente, alguém afirmaria que o /i/ é mais sombrio.” Jakobson vai mais além, para ele, na língua inglesa, por exemplo, “o /fl/ está freqüentemente associado à idéia de luz movediça (flame, flare, flash), o / i / breve encontra-se ligado à noção de pequenez (inch, imp, thin, slin, little).” Na língua portuguesa, as semivogais cujo som é mais fechado o /i/ e o /u/ sugerem uma noção de estar mais introspectiva, já as vogais de sons abertos /a/, /e/ e o /o/ estão relacionadas à expansividade, de modo que, para os teóricos, o vocábulo linda (que possui, predominantemente, sons mais fechados e nasalizados) estaria se referindo a uma moça de beleza mais tímida, mais recatada, mais discreta (se é que isso é possível) e a palavra bela (predominância de sons abertos) associada a um aspecto estético mais expansivo, espalhafatoso, espontâneo. É um disparate.

Até porque, em outro idioma, questiona Maria Luíza Ramos, “seria possível essa associação ou o artifício rítmico e onomatopeico são reservas exclusivas do idioma do qual se criou a obra literária?” Em função desses elementos fônicos, a tradução de um poema lírico é prejudicada por aspectos peculiares dos idiomas: o original e o traduzido. Para ilustrar com substância esse problema, ela cita Staiger que apresenta uma versão alemã de uma estrofe latina em que o processo onomatopaico é bem evidente: “Nulla unda/ Tam profunda/ Quam vis amoris/ Furibunda”. “A nasalização dos versos, o timbre repetido da vogal /u/ traz conotações de abismo. A tradução alemã apenas reproduz o movimento das ondas, sem evocar-lhe a profundidade e os aspectos soturnos sugeridos pela repetição do fonema velar /u/. Portanto, a imagem acústica se torna mais forte quanto menos evidente se faz o artifício rítmico” explica Ramos.

De volta ao extrato óptico, Maria Luíza Ramos relembra que além de Roman Ingardem, vários outros especialistas em literatura, principalmente, aqueles que o transcreve “Wellek e Warren, praticamente subscrevem a irrelevância do elemento visual, o que não deixa de ser incoerente com as considerações que fazem sobre a existência da obra literária como artefato. Félix Martínez Bonat, que também discorre sobre os estratos literários, silencia-se completamente quanto a esse aspecto físico da expressão poética.”

Apesar de Wellek considerar a realização gráfica como parte integrante da obra em determinados períodos da história da poesia, como no caso dos ideogramas pictóricos chineses, dos poemas gráficos da Antologia Palatina, dos artifícios dos metafísicos, nada foi registrado sobre a camada óptica ao lado da fônica, integrando a ontologia da obra literária.

De qualquer modo, a análise textual por estratos ou a utilização do estrato fônico e óptico, especificamente, não é algo obrigatório em todos os casos, mas somente quando a interpretação do texto o exigir, ou seja, quando houver um fato poético que necessite de uma reflexão interada com essa técnica. Não faz sentido a descrição fonética de uma epopeia para avaliar se há predominância de sons abertos ou fechados no intuito de concluir sobre características relacionadas à introspecção ou extrospecção. Da mesma forma, uma obra que não explora aspectos visuais em sua estrutura textual dispensa quaisquer explanações sobre a camada óptica da Fenomenologia. Já o estrato morfossintático está, intimamente, relacionado com a Semiótica e é fundamental para legitimar hipóteses interpretativas. O estudo das estruturas morfossintáticas aproxima o campo semântico do texto com o contexto e convida à intertextualidade os discursos de mesmo atrativo temático, corroborando ou contestando teses, mas sempre dilatando o potencial multidiscursivo do texto literário. Porque a Literatura como Crítica Literária é uma Ciência e deve ser tratada com objetividade, ela ocupa o mesmo patamar da Análise do Discurso, da Hermenêutica e nada tem a ver com o subjetivismo a qual foi submetida nos séculos XVIII e XIX (biografismo/historicismo).

RENATO PASSOS DE BARROS
Enviado por RENATO PASSOS DE BARROS em 16/07/2015
Reeditado em 02/08/2015
Código do texto: T5312796
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