Resenha da carta do Chefe Seattle
Carta do Chefe Seattle, Extraído de The Irish Press, sexta-feira, 4 de junho de 1976, disponível no site: http://www.culturabrasil.org/seattle1.htm.
A Carta do Chefe Seattle, concatenada de forma simples em pouco mais de duas páginas, sintetiza uma temática que muitos livros ainda não tiveram como esgotar. O texto evoca uma riqueza de compreensão do habitat dos humanos e ganha seu valor em virtude de advir de um indígena, norteado por uma visão cosmológica adversa daquela do destinatário da missiva: o presidente dos EUA, Franklin Pierce, quando este, em 1854, propôs comprar as terras de sua tribo, concedendo-lhe uma outra “reserva”.
A carta desnuda uma evidência que salta aos olhos do leitor: a compreensão da finalidade da terra e o seu significado para os humanos da parte dos envolvidos no assunto: o presidente americano e um chefe de uma tribo indígena. O primeiro ávido de uma visão mercantilista da natureza, o outro com uma compreensão de intimidade existencial com a mesma.
De início vale salientar a atualidade da temática, sobretudo quando se debate nas várias esferas de poder do mundo a urgente necessidade de uma racionalização no trato dos recursos naturais que já dão mostras de extenuação e precariedade.
O texto é importante na sua relevância por abordar duas comovissões que nos ajuda a discernir e refletir sobre a importância dos novos paradigmas que emergem como postulados urgentes no enfrentamento da questão ambiental.
O pensamento do presidente americano em 1854, entendido pelo Chefe Seattle na sua carta, nos permite uma chave de leitura da gênese de um conjunto de idéias praxistas que enxergam a terra (o planeta) não como legado à pessoa humana, mas como um postulado indispensável de comercio e aproveitamento. Terra é sinônimo de moeda, de riqueza advinda da efetiva transformação do trabalho. Naquele postulado do “Grande Chefe” já era possível vislumbrar o pensamento de uma nova ordem econômica decorrente do estouro da era industrial inglesa que já fazia eco na ex colônia.
“Somos parte da Terra e ela é parte de nós”. Esta afirmação do Chefe Seattle já diz muito sobre uma compreensão originária da natureza, do habitat da humanidade. Se somos parte da Terra, destruí-la ou mercantizá-la é atentar-se contra a própria pessoa humana. A Terra, na compreensão ameríndia, é quase uma deusa: “Pois esta terra é sagrada para nós” .
A referida Carta é dotada de grande relevância para os dias de hoje, quando o mercantilismo capitalista vem dando mostras de ganância e soberba, sem medir as possíveis conseqüências para o nosso habitat que vem se tornando pequeno para atender às enormes demandas comerciais, alicerçadas na crescente industrialização de sobeja tecnologia.
Já compramos água e muitas coisas que a Mãe Terra sempre deu-nos de presente, mas estamos vislumbrando a triste aurora em que teremos de comprar o próprio ar que respiramos. O “Grande Chefe”, o capitalismo consumista, está sempre comprando a terra e tudo que nela há de reservas importantes. Ademais, o “Grande Chefe” é o que menos compaixão da terra tem, pois se tornou o grande poluidor do meio ambiente. “O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo há dias esperando a morte”, ele é insensível ao mau cheiro(idem). Arranhas céus, chaminés, fios e mais fios, antenas e mais antenas, poluição e tantas outras coisas compõem o cenário da cidade moderna. “Não existe lugar tranqüilo nas cidades do homem branco. Não há onde se possa escutar o abrir das folhas na primavera, ou o ruído das asas de um inseto” (Carta de Seattle).
A carta lembra-nos um aspecto muito importante que a sociedade industrial e capitalista despreza: a memória. A memória que nos permite a identidade e a riqueza antropológica da existência praticamente não existe mais no mundo do homem branco ocidental. “Vocês devem ensinar a seus filhos que o chão sob seus pés é as cinzas de nossos avós”(idem) . Pressa estabelecida pela dinheiro, o consumo exacerbado, o hedonismo e a superficialidade já permite mais os ritos. Os velórios são frios, os nascimentos de pouca notoriedade.
A carta nos faz pensar que estamos rejeitando o próprio útero que nos gera e acolhe: a terra. Parece que estamos em guerra contra ela. A sanha para vendê-la e suga-la ao extremo para sustento da ganância e do acúmulo do capital, parece ter quebrado todo o afeto do homem branco por ela. “Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não entendo” (idem).
Esperamos por uma nova consciência, ainda que pareça distante. O pior é que ela poderá vir depois da hora. “Tudo o que acontece à Terra – acontece aos filhos da Terra.
O homem não teceu a teia da vida – ele é meramente um fio dela. O que quer que ele faça à teia, ele faz a si mesmo”(idem). O que parece-nos é que a teia está começando da se enroscar na sociedade branca moderna ou pós moderna: furacões, tornados, enchentes, doenças, fome, alteração climática assustadora, etc.
Parece-nos preocupante uma nova aurora de um novo amanhecer que poderá ser o que contem a carta: “Onde está o bosque? Acabou. Onde está a águia? Acabou”. Por ironia do destino, será que teremos que nos sucumbir: “O fim dos vivos e o começo da sobrevivência.”
A falta de acolhida e respeito à diversidade das idéias nos empobrece. Se o “Grande Chefe” entendesse que não é o dono da verdade e olhasse para a carta do “Pequeno Chefe de Seattle”, poderia aprender com ela e dar o testemunho de humildade e romper com seu orgulho que escamoteia a “Mãe Terra”. No campo ecumênico esta lição precisa ser acolhida, sob pena das religiões não dizer nada para a atual civilização e ter que ocupar a sala da irrelevância histórica e existencial.