Questão racial e etnicidade de Lilia Moritz
Questão racial e etnicidade
“No Brasil produziu-se a forma mais perversa de racismo que existe no mundo”. A afirmativa dita e repetida muitas vezes por lideranças do movimento negro chega a ser espantosa para a sociedade brasileira, que desde o final do século passado acostumou-se a se representar por meio da imagem de um paraíso racial.
Ao lermos o texto de Lilia Moritz Schwartcz percebemos que entender a “questão racial” significou enfrentar o tema da identidade; pensar em particularidades locais. De acordo com a autora não há como analisar a produção que se debruçou sobre a “questão racial no Brasil” sem perguntar sobre a especificidade dessa temática em meio a esse contexto marcado desde a sua formação, como uma sociedade multiétnica e de raças “cruzadas”.Criado por elites brancas e, trabalhosamente inscrito e enraizado no imaginário social, inclusive com a colaboração de notáveis cientistas sociais, o mito da democracia racial que se supõe existir no Brasil foi, provavelmente, um dos mais poderosos mecanismos de dominação ideológica já produzidos no mundo. Apesar de toda crítica que a ele foi feita, até então permanece bastante atual. Por meio dele ressalta-se o caráter miscigenador da sociedade brasileira: um povo mestiço, misturado, tolerante, aberto aos contatos inter-raciais.
Contudo, para esclarecer melhor como a crença na suposta democracia racial vai sendo produzida no seio da sociedade brasileira, temos que remeter ao contexto em que se deu a abolição. É importante ressalvar que a idéia de abolir o regime escravocrata não surgiu no Brasil, é uma idéia que veio de fora e como tudo o que nos é externo, ganhou força, à medida em que seduziu aqueles que ambicionavam o progresso do país. Os seduzidos pela idéia formaram o movimento abolicionista, no final do século XVIII o abolicionismo ganhou força chamando a atenção do mundo para os horrores da escravidão do povo negro, desenvolvendo uma idéia mais “humana” dos negros, como se até então eles não fossem humanos ou pelo menos não percebessem esse fato. Em compensação, os defensores do trabalho escravo justificaram o tratamento dos escravizados com argumentos racistas, eles sustentaram a idéia que pelo fato do negro ser inferior em essência, a condição de escravo lhe era natural.
Deste modo há uma relação direta entre o avanço dos movimentos abolicionistas e o desenvolvimento das teorias racistas, pois o aproveitamento do raciocínio científico para a compreensão da raça e do surgimento das tipologias raciais ocorreu a partir de 1790, e ganhou força, tornando-se defesa “racional” para a escravidão e deu força à idéia de que os povos negros eram naturalmente adequados à servidão e ao trabalho. Nesse período foram difundidas as bases da doutrina que mais tarde alegou ter status “científico” enumerando os argumentos que afirmam explicitamente que as características biológicas das pessoas determinavam as características psicológicas e culturais, ou seja, atribuiu-se uma relação determinista entre um grupo e suas supostas características.
Nesse contexto, o critério “cor” passou a ser muito útil, pois houve a necessidade do estabelecimento de barreiras mais precisas que evitassem a “humanização” dos escravos africanos. A pele branca foi imbuída de novos significados como um meio de controle. À crença da superioridade dos brancos foi dado status de ciência, e o domínio europeu da maior parte do mundo reforçou isso. Inventou-se o conceito de “brancura” que significava superioridade e privilégio, qualquer cor de pele que não possuísse a qualidade da brancura seria desvalorizada e os seus possuidores transformados nos “outros”.
Somente com o movimento abolicionista é que o negro é integrado às preocupações nacionais, até porque o sistema escravocrata não permitia a entrada do progresso, sendo uma barreira ao avanço econômico, político e cultural do país.É então sob a ótica racista amparada pela “ciência” que vão sendo tecidas as culturas brasileiras. A miscigenação aparece como única saída para resolver o grande “dilema” que se impõe: como aspirar ao progresso e ao desenvolvimento, se a maioria da população está condenada ao atraso, conforme as teorias científicas racistas? A ordem, portanto, era injetar o “sangue branco” e cada vez mais branquear a população, os abolicionistas pertencentes à elite urbana começam a pensar no “branqueamento” do Brasil, pois acreditavam na supremacia do “sangue branco”.
A questão da mestiçagem apareceu destacada como elemento revelador de uma conformação nacional original de acordo com Lilia Moritz ;uma representação que se colou a um discurso acerca da identidade.Historicamente tratava-se desde os primeiros anos de independência de criar uma nova identidade, diferente da antiga metrópole. Um estado sem ser nação, no país a temática do que fez do “Brazil, Brasil”, a pergunta sobre identidade sempre se revelou estratégica e, portanto acionada nos momentos mais angulares.
Desde o inicio da colonização no país, sua “originalidade” foi cantada pelos inúmeros viajantes e depois naturalistas que estiveram no local, país da “grande flora”, mas também de tantas raças ressalta Moritz. Não só a existência de grupos indígenas despertava a curiosidade dos viajantes, como também chamava a atenção o sistema escravocrata que permeava a sociedade como um todo, estavam aqui concentrados muitos grupos que interessavam a antropologia mundial: sociedades indígenas, concentrações de negros e mestiços.
Esse tipo de reflexão levou de maneira freqüente a assumirmos uma posição em relação a nacionalidade.Apesar das diferentes tradições é possível dizer que a produção brasileira sobre o tema primou por definir-se em função de seu objeto, concretamente definido como índios, negros ou brancos entendidos nesse momento como grupos minoritários e imigrantes (oliveira,1988).
O ideal de “branqueamento” foi sendo estimulado, o que comprovou ser o Brasil uma sociedade multirracial e que, ao contrário dos Estados Unidos, não possuía barreira de cor institucionalizada.A tese do “branqueamento” baseava-se na suposta superioridade branca, às vezes substituída pelo eufemismo de “raças mais adiantadas” em oposição às “raças menos adiantadas” e ainda pelo fato de deixar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. O que não é dito claramente também, é que não se deve falar da questão racial por não ser considerada relevante, na medida em que deixaria de existir pelo desaparecimento do próprio negro, que gradualmente seria absorvido pela raça branca. Miscigena-se, portanto, para “embranquecer” jamais para “empretecer”. Com esses princípios, com essas crenças, convive a sociedade brasileira em parte até hoje.
A superficial arrumação da sociedade brasileira como sendo o “paraíso racial” não significa que não tenha ocorrido resistência por parte da população negra ao modelo de dominação. A formação dos quilombos e a participação dos negros em todas as insurreições ocorridas no país no século XIX demonstram essa resistência, o que não quer dizer que as populações indígenas não tentaram resistir, porém não obtendo tanto êxito, além do fato de os mesmos já serem exterminados antes mesmo de os escravos africanos terem sido trazidos para o Brasil.
Podemos assegurar que a história do povo registra-se numa narração que inclui migrações e travessias, nas quais a vivência do sagrado de um modo particular constituiu-se num índice de resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social. Os africanos arrancados à força de seu continente e transplantados para a América foram destituídos de tudo, inclusive de sua humanidade, transformados em mercadorias, “coisificados” um processo a qual alguns denominam de desafricanização e desumanização. Neles imprimiu-se os códigos do europeu, que deles se apossou, na condição de senhor. No entanto, esses africanos que cruzaram os oceanos não vieram sós; com eles vieram suas divindades e seus diversos modos de visão do mundo, sua alteridade lingüística, artística, étnica, religiosa, suas diferentes formas de organização social e simbolização do real, os indígenas tentam manter suas tradições, até hoje, porém encontram-se em número muito menor, devido a imposição da cultura comportamental do branco, a fragilidade natural dos mesmos, a ocupação de reservas e destruição das mesmas, tudo isso influenciou para o “quase” desaparecimento do índio nativo e o conseqüente desaparecimento de sua cultura.
A natureza do saber, sobretudo antropológico, ficou historicamente subordinada a natureza de seus objetos reais, com todos os equívocos que esse tipo de posição possa acarretar, segundo Moritz impõe-se duas vertentes que ordenavam toda uma agenda de trabalho: a etnologia indígena e a antropologia da sociedade nacional; populações negras pela rubrica da “questão racial”. A reduzida intelectualidade brasileira nutriu-se das produções e olhares externos, e introduziu uma inflexão ao vincula-la aos destinos da nação.Sendo assim raça era um conceito fundamental, na medida em que permitia naturalizar as diferenças e explicar por meio da biologia a própria hierarquia social. De acordo com Moritz, os autores Rodrigues, Romero e Lacerda acabaram influenciando o debate, hoje talvez ainda mais particularmente marcado por duas interpretações até certo ponto opostas, porém que retomam desafios semelhantes: como perceber e descrever uma certa originalidade na conformação e convivência racial no Brasil, sem essêncializa-la e sem descuidar e desconhecer as profundas desigualdades existentes no país.
“Essa tal originalidade” foi sempre pensada tendo como parâmetro de comparação os EUA, um país de dimensões continentais, como o nosso, e que contou com uma experiência semelhante ao menos na região sul (Carolina do Sul, Maryland etc), no sentido de utilizar amplamente a mão de obra escrava africana, cultivar a monocultura exportadora de algodão dentre outras semelhanças em seu sistema começando também pela exterminação do indígena nativo.
Nos anos de 1930 estava em curso um movimento que negava, não só o argumento racial como o pessimismo advindo das teorias Darwinistas que detratavam a miscigenação, neste momento era evidente a atuação e produção intelectual do movimento sanitarista que em finais dos anos de 1910 e inícios da década de 1920 deslocava o argumento da raça para a higiene e para a educação. A cultura mestiça despontava nas teorias da época e na representação oficial da nação, ao lado do debate sobre o nacional popular, nesse contexto uma série de intelectuais ligados ao poder público passaram a pensar em políticas culturais que viriam de encontro a “uma autêntica identidade brasileira”, com esse objetivo foram criadas ou reformadas instituições culturais que visavam “resgatar” o folclore, a arte e a história nacionais e projetos oficiais foram implementados no sentido de reconhecer na mestiçagem a verdadeira nacionalidade.
Em 1933 Gilberto Freyre ao publicar “Casa grande e senzala” fez da mestiçagem uma questão nacional e distintiva, com uma certa concepção culturalista e uma determinada releitura positiva do mito das três raças formadoras da nação; manteve em sua obra os conceitos de superioridade e de inferioridade, porém, não deixou de descrever a violência durante o período escravista, em sua interpretação, o cruzamento de raças é um fato que singulariza a nação, nesse processo que fez com que a miscigenação parecesse sinônimo de tolerância e hábitos sexuais da intimidade se transformassem em modelos de sociabilidade.
A obra de Freyre foi elevada rapidamente ao papel de “gênese da nacionalidade” paralelamente a um processo de desafricanização de vários elementos culturais, simbolicamente clareados.Um exemplo disto, segundo Moritz está na escolha de nossa senhora da Conceição Aparecida para padroeira do Brasil sob o “slogan” “mestiça como os brasileiros”.Nesse momento de nacionalização, uma série de símbolos vão virando mestiços, assim como uma animada convivência cultural miscigenada torna-se modelo de igualdade racial, partindo assim de uma tese culturalista, que desqualificava o argumento biológico, mas também pouco falava das determinantes econômicas, Freyre encontrou no Brasil um resumo da personalidade portuguesa, que na colônia, frutificava ao lado de outras culturas sem no entanto deixar de hierarquizar os grupos e suas diferentes contribuições, carregando e afirmando o mito da “democracia racial”.
Nos anos de 1950 e 1960, a evidente desigualdade das relações que se estabeleceram entre brancos negros mobilizaram uma série de pesquisas, e segundo os autores destas pesquisas, a alentada democracia racial ”disfarçava” uma evidente descriminação, uma divisão que não era racial ou cultural, mas, sobretudo econômica. A segunda guerra mundial já havia revelado os usos inesperados do conceito ontológico e determinista de raça, e a UNESCO pretendia tomar a dianteira no sentido de retomar ”um debate mais humanista” e contraposto ao enfoque biologizante, três grandes atividades foram promovidas pela instituição, a convocação de uma reunião de antropólogos (físicos e culturais), bem como sociólogos com o intento de elaborar um manifesto a respeito do conceito de raça. O documento condenava o conteúdo racista da ideologia de estado nazista e disfarçava divisões dentro do grupo.
“A primeira declaração sobre raça” apresentava em destaque a seguinte afirmação: ”raça é menos um fator biológico, do que um mito social, e como mito, causou graves perdas de vidas humanas e muito sofrimento em anos recentes”. O consenso momentâneo só pode ser entendido levando-se em conta o contexto do pós-guerra, ressalta Moritz, sendo que a critica alcançava ainda a persistência do racismo nos EUA e na África do sul, bem como os novos problemas gerados pela descolonização na África e na Ásia. A UNESCO publicou uma série de estudos sobre raça e relações raciais, com o objetivo de dar publicidade a questão, a terceira decisão da mesma, referia-se a realização de uma pesquisa sobre relações raciais no Brasil, onde uma série de análises giravam em torno do tema da convivência de raças diversas na formação do país.Confiante nas análises de Freyre e Pierson, de acordo com Moritz, a instituição (UNESCO) alimentava o propósito de usar o caso brasileiro como material de propaganda e com esse objetivo inaugurou o programa de pesquisas sobre relações raciais aqui. Tipo de abordagem que concebia o país como “um laboratório de civilização” (Arthur Ramos) ou “uma democracia étnica” ((Freyre) ou mesmo “uma sociedade multirracial de classes” (Pierson). A hipótese sustentada era que o Brasil significava um caso neutro na manifestação de preconceito racial e que seu modelo poderia servir de inspiração para outras nações cujas relações eram menos democráticas.
Moritz menciona o fato que Florestan Fernandes abordou a temática racial a partir do ângulo da desigualdade, problematizou a noção de “tolerância racial”, contrapondo-a a um certo código de decoro que, na prática, funcionava como um fosso a separar os diferentes grupos sociais.Segundo a autora, Florestan notava ainda a existência de uma forma particular de racismo “um preconceito de afirmar preconceito”, a tendência do brasileiro seria continuar discriminando, apesar de considerar tal atitude ultrajante (para quem sofre) e degradante (para quem pratica).
A amplitude da investigação, além de ter fortalecido um debate já constituído de estudos raciais no país, levou também, a mudanças significativas na reflexão, implicou a superação da discussão mais naturalista e determinista, que vinculava características físicas e somáticas a perfis morais e psicológicos, ainda em voga nos anos de 1930, houve uma maior institucionalização das ciências sociais no Brasil, também influenciadas pelo tamanho da empreitada. Percebeu-se uma mudança no enfoque nas pesquisas etnográficas que até então se dedicavam, sobretudo as análises da influência africana sobre as populações negras locais. A representação da antropologia ficou associada a estudos “reacionários” em função de seu enfoque que privilegiava a harmonia e o equilíbrio como função e por causa da seleção dos objetos, então considerados pouco relevantes para debate nacional.
Esses estudos foram importantes na desmontagem teórica do mito da democracia racial, em meio a um contexto marcado pela radicalização política, o tema racial aparecia como uma questão maior, por meio da modernização e da democratização que a questão entre outras, se solucionaria no Brasil e não a partir do enfrentamento de suas especificidades. A partir dos anos de 1970 uma guinada evidente ocorreu no sentido de os estudos convergirem para o “desvendamento da descriminação” na história, na mídia, nas diferenças no acesso a educação e ao lazer, na distribuição desigual de renda, estavam as marcas do preconceito que fugia da alçada oficial, mas era evidente no cotidiano.Nos anos de 1980 e 1990 percebeu-se que o preconceito de cor, não estava mais acoplado a uma questão econômica e social, ao contrário, persistia como um dado divisor social nos lembra Moritz.
Podemos aqui, a partir da compreensão do texto de Moritz estabelecer uma relação com a concepção de Renato Ortiz sobre a identidade e cultura brasileira, pois ele relaciona alguns fatores primordiais as mesmas, como as teorias raciais já mencionadas, a mestiçagem nacional e a alienação, Ortiz buscou compreender como a questão cultural se estrutura atualmente no interior de uma sociedade que se organiza de forma completamente distinta do passado, como podemos observar no texto de Moritz, pois a medida que o capitalismo atinge novas formas de desenvolvimento, novos tipos de organização da cultura são implantados, concluímos então que a identidade nacional brasileira não é uma só, as suas dimensões políticas e culturais não tem caminhado juntas, nem remetem a uma mesmo espírito, ao contrário do que acreditava Gilberto Freyre, para quem a tolerância mutua que reina na área sociocultural das relações humanas devia traduzir-se com naturalidade por igual tolerância na área política, vemos que não é assim que as coisas funcionam, existe no Brasil uma forma política de conciliação, mas está longe de se definir por “tolerância” mutua repousa na agregação mais ou menos forçada do menos forte pelo o mais forte.
No campo da sociologia, a desconstrução da noção de raça e o paralelo investimento no conceito de classe, alinhava essa disciplina ao lado das reivindicações políticas da época assim como ajudava no estabelecimento de campos distintos de análise. Tornou-se recorrente a máxima que sociólogos, cientistas políticos e historiadores ”costumam ver mudanças, desequilíbrio e revolução a mão visível das forças históricas onde os antropólogos vêem apenas “estrutura e cultura”.A antropologia corresponderia a grosso modo a estrutura enquanto a sociologia a mudança.Um racismo assistemático foi diagnosticado por Florestan Fernandes, segundo Moritz, o conjunto das pesquisas apontava para novas faces da miscigenação brasileira, sobrevivia como legado histórico um sistema enraizado de hierarquização social que introduzia gradações de prestigio a partir de critérios como classe social, educação formal, origem familiar etc., chamado por Florestan de “metamorfose do escravo” , o processo brasileiro de exclusão social teria se desenvolvido de modo a empregar termos como “preto” ou “negro” em lugar da noção de classe subalterna.
Voltando a nos referir a Ortiz, lembramos que ele mostra como se estabeleceram mecanismos de reprodução quase que automática das desigualdades na sociedade brasileira. Apesar dos estragos que fez Ruy Barbosa em 1890 com a queima de documentos referentes à escravidão, muitos esforços tem sido desenvolvidos, no sentido de recuperar, por meio de fragmentos uma história que foi emudecida. A escravidão que existiu no Brasil faz parte do passado e do presente, já que se inscreve em nossos costumes, em nossas religiões mestiças e em nossos preconceitos. Como um “preconceito de ter preconceito”, na expressão do sociólogo Florestan Fernandes, temos o medo de falar de racismo e avistamos no outro o preconceito que está em nós.
É essa convivência entre dois pólos opostos - de um lado o mito da democracia racial, do outro, a representação de um país com larga experiência escravocrata - que dá ao Brasil uma forma peculiar e silenciosa de convivência racial. A ausência de conflitos raciais e a “boa convivência” entre senhores e escravos, além do mito da “democracia racial” reforçam um outro mito fundador da unidade nacional que é o “mito da cordialidade”.
Os “mitos” que foram tecidos ao longo da história e neles, a sociedade brasileira acredita piamente, constituem-se formas refinadas de dominação da população negra e têm correlação com o tratamento “benigno”, “cordial” e paternalista que se apresentava como solução adotada quando o comportamento social do escravo exprimia-se segundo as expectativas herdadas da tradição: obediência, humildade e fidelidade.
A crença nos “mitos” faz com que tenhamos uma leitura de naturalização de fenômenos que foram construídos histórico e socialmente. Pierre Bordieu quando examinou os mecanismos pelos quais a ideologia toma conta da vida cotidiana, desenvolveu o conceito de “habitus”, a internalização de um conjunto de disposições duráveis que geram práticas particulares. Os indivíduos agem na sociedade de acordo com tais sistemas internalizados, o “inconsciente cultural”, o que explica que determinadas ações são regulamentadas e harmonizadas, sem que precise ser o resultado de obediência consciente a regras.
Isso é o que acontece com o racismo brasileiro. Ele foi tão bem construído e encontra-se tão enraizado na cultura brasileira que podemos afirmar que somos racistas inconscientemente, ou que existe uma qualidade de acordo implícito em aceitar a pobreza e a miséria da população negra como algo natural. É certo que existem pessoas “não negras” pobres e que convivem com as pessoas negras nas periferias, nas comunidades carentes localizadas em grandes metrópoles brasileiras. Contudo, o “não negro” sabe de alguma forma que possui uma vantagem, pequena que seja, em relação ao negro que, por seu lado, sabe também que possui uma desvantagem em relação ao “não negro” e tudo isso é aceito de maneira implícita, sem que se precise de leis para regulamentar o “acordo” imposto à população negra que para ser aceita pela sociedade tem que antes se “conformar” às regras do jogo, pois fomos habituados a rejeitar a idéia de conflito.
E assim caminha a sociedade, de olhos vendados, com os sentidos completamente anestesiados em relação a uma grande parte de sua população, que em princípio foi condenada previamente ao fracasso, dá-se, aí, o fenômeno que o sociólogo Robert Merton, denominou de “profecia autocumpridora”.Contudo, tão anestesiados estamos que ainda somos capazes de achar que o fracasso da população negra se deve a ela própria, transformamos a vítima em causadora de sua própria infelicidade. Somos ainda capazes de nos assustar e censurar quando descobrimos que o negro não gosta de ser negro. É claro que o negro brasileiro não deve gostar de ser negro – e isso acontece porque é ruim ser negro - o que não é apenas retórica, pois ele, o negro brasileiro, experimenta, no cotidiano, o quanto é ruim ser negro numa sociedade que lhe é inteiramente inóspita, podemos acreditar que algo vem mudando, que a condição do Nero em nossa sociedade pode estar se tornando mais aceitável, também devido a luta dos movimentos negros, de algumas ONGs, de intelectuais etc, porém ainda muito deve ser conquistado ou melhor deve-se fazer valer os direitos inerentes ao qualquer cidadão; principalmente ao cidadão negro que vem sendo destituído de todos mesmo com o advento da abolição da escravatura.