Ê Brasil Nascente
“Farelos e cabelos às vezes conseguem ser insignificantes”.
Ontem eu estive presente num show da banda internacional Evanescence, que esteve pela primeira vez aqui no Brasil, no Palestra Itália, no Pq. Antártica.
A banda parece ter trazido consigo um clima peculiar. O dia foi meio fresco, com muitas nuvens no céu e choveu pra caçamba, coisas que fogem um pouco do clima que esteve fazendo durante a semana...
Ao chegar à fila do show me deparei com um público por mim já conhecido, “o povo do rock”, os caras que tem o visual dark de metaleiros, “punks” ou de “góticos”, embora nesse show, por ser uma banda tão popular, já fosse possível identificar no público representantes das tribos dos emos e dos caras que curtem o estilo musical hardcore. Cometi alguns atos antiéticos, como ter furado pelo menos uns oitocentos metros de fila com amigos meus que chegaram lá na madrugada de anteontem, ou de ter me infiltrado pelo menos quinze metros a frente do lugar da pista onde, pela ordem de chegada, deveria estar... Essas coisas me incomodam um pouco, mas como diria a vocalista da banda, “You know, I’m not the only one”, na música The Only One.
O show, de modo geral, ocorreu de modo tranqüilo, de tempos em tempos passavam corpos esquálidos de pessoas desmaiadas por cima de você ou do seu lado, pessoas que quase quebravam as costelas por estarem na grade (lugar mais próximo ao palco), minha amiga levou uma cotovelada no ombro que doía só de ver, e a mesma foi atropelada na canela por um vendedor ambulante estúpido de bebidas quando saímos do estádio.
Quando estávamos na fila, momentos antes de abrirem os portões, uma mulher, mãe de um fã, subornou um guardinha pra filha poder furar aproximadamente um quilômetro de fila, assim, na cara dura. A fila começou a vaiar e a soltar alguns palavrões em protesto, com alguma razão, viu? Tinha doente ali que estava acampando desde terça-feira (o show foi sábado à noite). Tá, aí a mulher nem pra ter um pouco de vergonha na cara, se recatar e ir embora, como se tivesse razão no que estava fazendo, protestou de volta soltando outros palavrões e expondo seu dedo médio gordinho para toda a fila. O povo ficou irado, a ponto de atacarem uma garrafa de dois litros perto dela (claro, querendo acertar o meio de sua testa, mas fracassando) a cidadã fez uma cara de pasmada e sacudiu as gordurinhas uns vinte pulinhos atrás de um policial. Voltou fazendo escândalo olhando feio pra toda fila em busca do indivíduo que atacou a bendita garrafa. No grupo de amigos que eu acompanhava, estava um cara chamado Marcelo, provavelmente o único que vestia uma camisa azul xadrez no meio de tantas pretas. A mulher parou uns dez metros longe da base de lançamento da garrafa, apertou os olhinhos e expôs seu papo numa cara feia antes de esganiçar um “Foi ele!”. O policial, por uma estranhíssima coincidência, era o mesmo que havia sido subornado pela mulher, disse “Sai daí, moleque” enquanto erguia a peça de metal que separava a calçada da rua. Perguntou: “Foi você que atirou a garrafa nessa senhora?”, ele bem disse que não. A mulher fez uma careta “Foi ele sim!”. Aí pulou pra cima da barreira de metal a minha amiga que levaria uma cotovelada mais tarde e outros dois amigos antes de mim para justificar que não havia sido ele. Marcelo teria ido ao final da fila (cerca de mil metros atrás), caso não interviéssemos na falsa acusação.
Essa situação foi uma em que se notou algo de cidadania naqueles milhares de indivíduos que se dividiam em posers, indiferentes, fãs e fanáticos da banda.
Entrando na arena, passando pelo portal do estádio para se entrar na pista, entramos em uma outra dimensão, completamente livre de cidadania e humanidade, livre da coerência e razão. As pessoas (se é que posso chamá-las disso) se aglomeravam em torno da grade, e iam se entulhando sobre os coitados desnutridos que passaram dias na fila esperando o momento de tocar o corpo naquela dura barreira a três metros do palco. Isso foi às 16h50. O show começaria às 21h30. O que aconteceu foi que o estádio foi ficando cada vez mais cheio, e o ar cada vez mais escasso. Como disse, a coerência e a razão abandonaram completamente a cabeça da multidão, ninguém pensou em “Ah, vamos todos recuar para trás e sentemos, assim poderemos descansar dessas horas de fila, ficaremos confortáveis por pelo menos quatro horas, antes de começarem as bandas de aberturas, aí levantamos e assistimos ao show”. Pois é, mesmo que alguém tivesse pensado isso (eu até disse isso aos meus vizinhos grudentos e/ou fedidos), diante a barbárie que tomava conta da consciência das pessoas, seria o mesmo que pedir com gentileza a alfinetes que não nos espetassem quando entrassem em contato com nosso corpo. A água (copo de 250ml), custava seu preço daqui a décadas (R$5,00), e ainda vinha brindada com o agradabilíssimo aroma de cerveja barata. O resultado disso não poderia ter sido outro. Os indivíduos de estatura baixa sufocavam-se em tecidos negros úmidos e fétidos de suor, os de estatura mediana, como eu, sofríamos para enxergar algo por entre os ombros de brutamontes altivos. Durante o tempo que ficamos lá esperando, passavam os roadies, que eram os técnicos auxiliares das bandas, e ficavam lá afinando os instrumentos, ajustando equipamentos, etc. enquanto o povo urrava emocionalmente para todos eles, até para as faxineiras (brasileiro é um povo feliz).
Aí fomos forçados a ver bandas de abertura, uma brasileira contemporânea famosa, chamada Luxúria e outra argentina chamada Silicon Fly (ou algo assim). As bandas tinham algum talento e um estilo arquétipo cada uma (nada mais). Luxúria, assim como Evanescence são bandas que possuem mulheres como líderes, mas devo colocar: que mulheres diferentes. A moça vocalista da banda parecia ter ido com uma roupa que fizesse jus a ocasião, um belo vestido preto de rendas. Mas parece que ela não gostou muito daquele vestido... Conforme ia cantando, despia-se dele, ficando com o vestido propriamente dito, no tórax, abaixo dos seios, expondo seu sutiã azul marinho com bolinhas brancas, conflitante com o vestido tão dark... Isso foi algo que na minha cabeça mostrou-se meio paradoxal. Sabe, a moça, nos intervalos de suas músicas, fazia alguns discursos, dizendo que gostou muito da recepção do público brasileiro a uma banda brasileira abrindo o show da banda estrangeira, falando sobre o caráter do povo brasileiro, e depois fez até uma dedicatória de uma canção às mulheres. Mas com uma atitude dessas, juro que se perdeu a imagem de uma dedicatória honrando o “ser brasileiro” e principalmente o “ser mulher”, afinal existem outras formas de dizer “Não gosto do vestido que estou usando”.
Bem, aí veio a outra banda, com um cara lá cantando umas músicas com o clássico estilo “entre berros e vozes”, com uma sobrancelha maquiada a la circense, com uns dois centímetros de espessura. O coitado recebeu várias vaias do público aflito pela chegada da banda...
Enfim, esses aperitivos azedos entretiveram o público de forma até eficiente (foi durante esses momentos que eu avancei metros à frente). Bem, até aí, estava chovendo um pouco, mas não foi suficiente para refrescar-nos na pista, pois estávamos num inferno de calor latente. Podia estar uns 20°C lá fora, mas estávamos num aglomerado que gerava por calor humano uma temperatura de pelo menos 40°C, e foi isso o que condicionou a umidade constante de nossas roupas por suor.
Certo, até aí, não é preciso dizer o quanto de cotoveladas eu levei nas costas “acidentalmente”, nem como minha perna foi depilada por solas de All Stars quando acontecia o movimento lateral geral do público, cujo causou um ferimento grave na batata da perna de uma moça que estava ao meu lado por ter sido arranhada pela sola de um coturno de verdade.
Bom, por algum milagre, o show em si começou mais cedo. Cortinas listradas em preto e branco verticais se abriram. Bom, como eu já tenho alguma experiência em shows desse tipo, minhas mãos foram diretamente aos ouvidos devido aos urros que todos emitiriam, e mesmo assim quase fiquei surdo...
Amy Lynn Lee é uma moça de vinte e poucos anos, sagitariana, com uma infância infeliz, sofreu muito daquele tal de bulling, espécie de agressão moral, foi líder de um coral, organizadora de teatros e outras coisas em sua escola, sempre foi taxada de “nerd”, reprimida, mas sempre ela mesma. Dramática que só, adorava desmaiar e fingir-se de morta para a mãe desde seus oito aninhos. Uma artista nata. Bom, aos quatorze anos conheceu um rapaz chamado Bem, com quem fundou a banda que fui assistir ontem. Com um corpo bonito, trajado em um belo vestido de tule bordô com cetins pretos e o clássico coturnos em seus delicados pezinhos, surge ela no centro do palco, cantando a música Sweet Sacrifice (Doce Sacrifício), típica. Bom, se ela não estivesse realmente cantando, eu não teria percebido, pois em meio a tantas vozes desafinadas berrando as letras no típico embromation, era realmente impossível ouvir sua voz, e assim continuou o show pelas cinco músicas seguintes, depois disso deu pra ouvir a sua voz quando ela dava uns agudos e todos faziam uns falsetes baixinho... A mulher realmente é poderosa, conta com uma voz encantadora, uma técnica vocal impecável além de muito talento para a composição e interpretação de suas músicas, talvez não seja a toa que ela esteja tão conhecida no mundo todo... Bem, ela também se mostrou muito simpática quando falava com o público (era de se esperar, o ingresso não foi barato). O show foi passando, as vozes atrás de mim não paravam de cantar. Meus ombros serviram de apoio para mocinhas tão baixinhas que dava dó, elas ficam pulando pra pegar algumas partes do show. Minha cabeça durante um tempo lá, serviu de suporte para um tio (um dos) que estava registrando o show em sua máquina fotográfica que freqüentemente me deixava atordoado com aqueles flashes automáticos para paisagens escuras.
Geralmente fico muito animado em shows, mas as horas que fiquei de pé ali sem antes de começarem as bandas passaram terrivelmente devagar, a força que eu tinha que fazer para ao menos permanecer no lugar em que estava, e não deixar aqueles tapados passarem por mim (sim, sou egocêntrico. Passo pelos outros, mas os outros nunca passam por mim), foi como uma musculação condensada. Enfim, estava quase esgotado antes de começar o show do Evanescence.
O show passou, foram tocadas todas as músicas famosas, com alguma exceção. No decorrer do show foi possível ver dezenas de oferendas para a deusa Amy, voaram bichos de pelúcia, rosas, chocolates em forma de coração, cartazes, e durante a música Lithium, foi possível avistar uma garrafinha de água e alguns ÓVNIS sobrevoando-a enquanto mostrava seu talento no piano e cantava. Não creio que ela tenha visto esses ocorridos, se não com certeza não teria chegado tão perto do público tantas vezes como fez posteriormente.
A recepção calorosa do Brasil deixou-a satisfeita.
O show me mostrou como o gosto musical de uma pessoa fala do seu intrínseco emocional. Nós da juventude brasileira vivemos em harmonia com as letras melancólicas, egocêntricas e dramáticas compostas por Amy Lynn Lee (compositora, letrista, produtora, diretora e intérprete de 95% das músicas da banda), aliás, muitos inclusive idolatram essa expressão dela, o que demonstra o quão gostariam de estar no lugar desta, a repressão está mesmo em todos.
Bem, o show acabou e só o que foi deixado pra trás foi cerca de duas toneladas de lixo no estádio e outra tonelada nas ruas ao redor.
É, o Brasil tá na mesma.
Ted Weber