Qual a utilidade do conceito de gramática internalizada em âmbito escolar?

O professor atuante na área das linguagens deve garantir que o seu trabalho seja baseado em concepções que resultem em práticas produtivas na abordagem de fatos linguísticos, ajudando o aluno a entender a linguagem em suas múltiplas dimensões e não apenas no que tange à sua função comunicativa.

As práticas não podem ser limitadas ao tratamento da linguagem como um mero instrumento de comunicação, mas como uma capacidade humana que, antes de nos ajudar a comunicar, entra em jogo na forma como percebemos o mundo e construímos nossas ideias.

Se as concepções de linguagem não podem ficar restritas ao elemento da comunicação, o conceito de língua também não deve ficar limitado à ideia de que se trata de um código com fins exclusivamente comunicativos. Tendo em vista que a faculdade da linguagem é a matriz sobre a qual se assentam as línguas naturais, qualquer concepção relevante deve levar em conta a ideia de que uma língua é um acervo compartilhado pelos membros de uma comunidade e formado por signos e regras (fonológicas, morfológicas, sintáticas, lexicais, semântico-discursivas) que definem as possibilidades de combinação e uso desses signos.

Nas disciplinas escolares voltadas ao ensino de língua materna, essas considerações sobre a língua têm um efeito claro, particularmente quanto à dimensão sociocultural: ao entrar na escola, o aluno traz uma língua particular, um acervo de signos e regras naturalmente adquirido, compartilhado com outros membros de sua comunidade. Esse acervo natural, que não coincide em sua totalidade com o acervo que ele conhecerá no contato com os livros didáticos, pode ser explorado pelo professor como ponto de partida em inúmeras atividades voltadas aos letramentos. Nesse sentido, cabe ao professor explorar o conhecimento natural do aluno acerca da variedade linguística que caracteriza a fala de sua comunidade e, a partir daí, ajudá-lo a desenvolver competências e habilidades que são necessárias, por exemplo, ao pleno domínio da norma-padrão.

Quanto à gramática, as concepções de língua e linguagem podem, de uma certa forma, ser associadas às acepções que se atribuem a essa palavra. Se tomada como área de estudo, a gramática pode ser conceituada, grosso modo, como um campo de saber que se ocupa da descrição e/ou análise de certas regras no conhecimento e uso da língua. A depender da postura dos que atuam nesse campo, a abordagem dessas regras pode assumir um caráter descritivo ou normativo/prescritivo.

No âmbito escolar, o termo gramática tem sido comumente empregado para dar nome à disciplina (de caráter predominantemente normativo) que se ocupa desde os fatos morfológicos e sintáticos, tradicionalmente considerados o cerne da matéria, aos fonológicos, lexicais e semântico-discursivos.

Isto posto, qual deve ser a concepção de gramática a ser explorada no âmbito da disciplina escolar de Língua Portuguesa? A concepção de gramática explorada em sala de aula deve levar em conta que o aluno tem um conhecimento natural das propriedades fonológicas, morfológicas e sintáticas da sua língua. Nesse sentido, podemos falar em gramática internalizada, entendida como um conjunto de regras naturalmente adquirido pelos falantes, que define a fonologia, a morfologia e a sintaxe da sua língua. Mais do que um ponto de referência para as reflexões do professor, essa concepção deve ser colocada a serviço de práticas que contribuam para o sucesso do aluno no trabalho com a linguagem, em particular nas atividades de produção e recepção textual.

Como disciplina, a gramática não pode ser vista apenas como o lugar reservado ao ensino de preceitos acerca do que é certo ou errado, bom ou ruim, correto ou incorreto. Também não pode ser o espaço destinado ao mero ensino de nomenclaturas estéreis, totalmente dissociadas de práticas que ajudem o aluno a refletir produtivamente sobre a sua língua.

Cabe à escola conduzir o aluno na descoberta de como a sua gramática internalizada se organiza, ajudando-o a reconhecer e analisar as regras da língua que ele adquiriu. A função do professor de Português não é, nesse sentido, ensinar uma língua ao aluno, mas capacitá-lo com habilidades que lhe permitam, em diferentes atividades, o uso consciente e criativo dos inúmeros recursos de expressão oferecidos pelas variedades da língua portuguesa, entre as quais necessariamente deverão se incluir aquelas de maior prestígio social, reunidas no que se convencionou chamar de norma culta.

A escolha dos dados linguísticos a serem trabalhados nas aulas de gramática deve ser feita com base em critérios que priorizem o reconhecimento dos fatos gramaticais como estratégias desencadeadoras de efeitos de sentido.

O desafio das aulas de análise linguística na disciplina de Língua Portuguesa hoje é transformá-las em práticas vinculadas ao trabalho com diferentes gêneros textuais/discursivos, para tanto o professor deve recorrer a estratégias de abordagem gramatical que valorizem o conhecimento natural dos alunos a respeito da língua, investindo tanto em atividades que ajudem seus alunos na utilização da norma-padrão quanto em práticas de análise que os levem a perceber os fatos gramaticais relativos às mais diferentes normas, pois é fundamental que os alunos conheçam a norma-padrão e a vejam como uma peça essencial ao domínio das variedades linguísticas de maior prestígio social e cultural, todavia o professor não deve apresentar essas variedades como as únicas possibilidades de realização da língua.

Gramática internalizada leva em conta o conhecimento internalizado pelos falantes sobre a sua língua materna. Esse conhecimento, composto de regras fonológicas, morfológicas e sintáticas, é naturalmente adquirido no processo de aquisição da linguagem, sem a necessidade de intermediação da escola ou de qualquer outro meio de ensino formal.

Ao assumir esse conceito, o professor poderá desenvolver práticas que explorem de um modo mais produtivo a intuição do aluno a respeito da sua própria língua.

Para atingir esse objetivo, as reflexões sobre os fatos gramaticais precisam partir de uma perspectiva descritiva e não normativa. Isso não significa que o aprendizado da norma padrão (ou de qualquer outra norma relevante no estudo da língua) deva ser evitado, mas que a assimilação de regras estranhas à gramática internalizada dos alunos (como muitas das regras prescritas pela gramática normativa) deve ter como ponto de partida as variedades linguísticas em uso na comunidade em que a prática docente se realiza.

O trabalho com a gramática internalizada do aluno deve explorar uma metodologia descritiva frente aos fatos da língua.

O professor deve levar em conta que os fatos gramaticais característicos da variedade linguística naturalmente usada pelos seus alunos são tão legítimos e passíveis de sistematização quanto os fatos das variedades que seguem mais de perto o padrão prescrito pelas gramáticas normativas.

O trabalho com o conceito de gramática internalizada exige, como vimos, uma postura descritiva frente aos fatos da língua. Isso não significa, contudo, que o ensino da norma culta deva ser colocado em segundo plano. Levar o aluno a refletir sobre a sua gramática internalizada, conduzindo-o a perspectivas de análise mais produtivas em relação à sua variedade linguística, resultará certamente em um trabalho mais enriquecedor na abordagem da chamada "norma culta".

O professor de língua portuguesa deve refletir sobre qual a finalidade do emprego da nomenclatura gramatical brasileira no ensino de língua portuguesa como língua materna e sobre se o recurso a essa nomenclatura tem favorecido o sucesso do aluno; dentre outras reflexões.

É importante que o professor de língua portuguesa tenha em mente que a adoção de uma nomenclatura não deve ter como fim o seu próprio aprendizado, mas deve ser um instrumento a serviço de práticas específicas, facilitando a descrição e análise de um objeto em estudo.

A adoção de uma nomenclatura gramatical deve ter como um de seus objetivos ajudar o aluno a refletir sobre sua gramática internalizada para, a partir daí, analisar a língua em funcionamento e depreender, com mais autonomia, as regras que alicerçam seu uso.

Posto que o ensino de gramática na escola deva contribuir na formação de alunos que consigam refletir produtivamente sobre os recursos de expressão da sua língua e ajudá-los a desenvolver reflexões e práticas produtivas a partir de sua gramática internalizada, a NGB tem contribuído muito pouco para o sucesso desse objetivo.

Ao normatizar o modo com a gramática da língua é analisada, a nomenclatura tradicional resulta num efeito extremamente negativo em âmbito escolar: como serve de base à normatizações inconsistentes, a abordagem gramatical fundamentada na NGB impede que o aluno (e, por vezes, o professor) explore a sua gramática internalizada para descrever e analisar as propriedades da língua.

É importante a consciência de que, na abordagem de fatos gramaticais, a finalidade da nomenclatura não é o seu aprendizado: antes, ela deve ser um instrumento colocado a serviço de reflexões e práticas produtivas sobre a linguagem. É improdutivo identificar uma determinada palavra como advérbio sem, contudo, ter a percepção de que a classe dos advérbios reúne itens que compartilham propriedades com várias outras classes da língua.

O segundo passo é compreender a realidade linguística do aluno, que varia de uma comunidade para outra. Levar o aluno ao reconhecimento da norma-padrão requer, antes de mais nada, ajudá-lo a reconhecer as regras que compõem a sua gramática internalizada. Isso é um procedimento necessário para que, na consciência dessas regras, ele consiga ter autonomia na busca dos melhores recursos de expressão em situações comunicativas que exijam, por exemplo, o emprego de uma linguagem mais polida.

O professor não pode perder de vista que a norma-padrão não é uma língua ou mesmo uma variedade da língua, mas uma idealização que resulta histórica e culturalmente de uma série de preceitos e valores em torno de como se acredita que a língua deva ser usada. A norma-padrão não pode, por isso, ser o eixo norteador da disciplina que chamamos de Língua Portuguesa. Para que a abordagem gramatical tenha uma fundamentação objetiva, o ponto de partida dessa disciplina deve ser a língua real, o chamado vernáculo, resultado direto do conhecimento gramatical internalizado pelos falantes. É somente após tomar consciência desse conhecimento que o aluno deve ser orientado, com base em pressupostos teórica e empiricamente consistentes, ao domínio da norma-padrão.

Sem uma postura crítica do professor frente aos conceitos da Gramática Tradicional, a nomenclatura gramatical e o ensino da norma-padrão podem desembocar em práticas que, em lugar de ajudar o aluno a refletir produtivamente sobre a sua língua, obscurecem a identificação de propriedades que realmente interessam no estudo da gramática.

No trabalho com essas propriedades, o professor deve ter autonomia e competência para buscar e implementar as estratégias que lhe parecerem mais adequadas à realidade linguística dos seus alunos, sem perder de vista que: (i) a nomenclatura gramatical é um instrumento e não uma finalidade e (ii) o ensino da norma-padrão NÃO É O ÚNICO, mas APENAS UM dos vários objetivos relacionados à abordagem gramatical na disciplina de Língua Portuguesa.

BIBLIOGRAFIA

AVELAR, Juanito Ornelas de. Funcionamento da Língua: Gramática, Texto e Sentido; Tema: 2. Da gramática ao texto: elementos de análise; Tópico 1 e 2. Campinas, SP: UNICAMP/REDEFOR, 2012. Material digital para AVA do Curso de Especialização em Língua Portuguesa REDEFOR/UNICAMP.

Viviane Mirandaa
Enviado por Viviane Mirandaa em 03/12/2012
Código do texto: T4016945
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