DISCURSO CONSTITUINTE - MAINGUENEAU
O artigo intitulado como “Analisando Discursos Constituintes” de Dominique Maingueneau, publicado na Revista GELNE, Vol. 2, Nº2 (2000) se inicia com as concepções do autor sobre a Análise do Discurso para, na sequência, promover sua proposta que é a análise de discursos constituintes.
Já no primeiro tópico de seu artigo “Lingüística do discurso e análise do discurso”, o autor mostra de forma provocativa que muitos analistas do discurso se satisfazem com uma definição “minimalista” de análise do discurso e afirma que a noção de “discurso” tem sido mais problematizada do que a análise de discurso. Em seguida, justifica a simplificação, alegando que antes os estudiosos da AD se preocupavam bastante em sobrepor abordagens teóricas, mas que na atualidade há uma legitimidade dos estudos do discurso e que, por isso, é necessário refletir sobre as fronteiras do discurso.
Dessa forma, Maingueneau contraria os defensores de que não há necessidade de demarcar fronteiras e afirma categoricamente que é muito difícil trabalhar sem nenhuma referência. Ele defende também que, ao invés de se questionar se “podem” restringir os estudos da AD, a pergunta é se “devem” e alerta para o risco de uma descoberta: o terreno da AD não é firme.
Mesmo nessa instabilidade, o pesquisador francês reconhece que a AD está em crescimento graças aos adventos tecnológicos do mundo hodierno, redundando numa circunstância agravante a qual destaca: a análise do discurso é praticada por dois tipos de pessoas. O primeiro tipo é constituído por aqueles que se interessam pelas propriedades do discurso, isto é, voltado para conceitos e métodos. O segundo é formado por indivíduos que utilizam a AD para lidar com questões históricas, sociológicas e pretendem atingir resultados imediatos. Fazem da AD um instrumento de interpretação de corpus sociais.
É incontestável, na perspectiva de Mainguenau, que qualquer estudo de texto possa ser chamado de análise de discurso, todavia isso gera definições ou muito tolerantes ou restritivas. Para as definições tolerantes, todos os estudos que reivindicam pertencer a AD devem assim ser considerados. Já as definições restritivas “são dadas por estudiosos que não se deram conta da diversidade de trabalhos nessa área”, afirma o pesquisador.
Para o autor, então, se quisermos dominar a amplitude de possibilidades da análise do discurso, “seremos obrigados a propor definições muito vagas” e critica veementemente definições consideradas vagas, como, por exemplo, estudo baseado em fatos da comunicação real.
A partir desse posicionamento, o pesquisador declara que o melhor a ser feito é não relacionar DISCURSO e ANÁLISE DO DISCURSO, pois para ele, o discurso é empírico e a AD estuda esse objeto, porém é plausível questionar se esse discurso deve ser analisado por uma única disciplina. Propõe, então, uma distinção entre “linguística do discurso” e “análise do discurso”. Caberia à linguística do discurso tudo que envolve o discurso, como a retórica, análise de conversação, análise do discurso. Dessa forma a AD seria só uma disciplina dentro da “Linguística do Discurso”. Consequentemente o objeto da AD não é a organização textual nem a situação comunicativa, mas as articulações através de um gênero do discurso.
Vale ressaltar que a AD não possui corpus próprio, pois pode analisar os mesmos corpus de outras disciplinas e não se apresenta de forma homogênea devido, principalmente, à heterogeneidade das tradições científicas (na Inglaterra e França); à diversidade de referências disciplinares: à diversidade de escolas e tendências e corpus. Para Maingueneau, a AD não é homogênea também devido a aspectos da atividade discursiva considerada aplicação prática da análise e devido à identidade acadêmica dos analistas.
A Análise do Discurso deve manter relação privilegiada com a linguística e permanecer no campo das ciências da linguagem, defende o autor. E, por ser disciplina recente, a AD possui alguns riscos que percorrem a especulação sobre subjetividade, ideologia; a descrição de um corpus sem nenhum ponto de vista organizado, engendrando, assim, outro equívoco possível que, na perspectiva de Maingueneau, é a hermenêutica descontrolada, segundo a qual qualquer fenômeno discursivo poderia ser analisado de acordo com uma interpretação preestabelecida.
A introdução dos discursos constituintes é feita no terceiro tópico do artigo, mas antes são apresentadas as “tendências francesas”, reportando ao próprio Maingueneau pela referência a teorias da enunciação e pela preferência pelos discursos “institucionalizados”, pela heterogeneidade discursiva, polifonia e dialogismo. O pesquisador revela ainda três modalidades de gêneros de discurso que são: Gêneros autorais, Gêneros de rotina e Gêneros conversacionais. Em seguida, apresenta o grande filão deste artigo, o discurso constituinte.
Discurso constituinte, para o pesquisador, pode ser identificado a partir da relevância de que, após várias pesquisas com diversos corpus, o discurso religiosos, o científico e o literário, por exemplo, podem facilmente migrar de um para o outro, portanto partilham algumas propriedades quanto às suas condições de funcionamento e de emergência. Assim, os discursos constituintes possuem zonas de falas em meio a outras falas.
Ao expor o discurso constituinte, o autor define categoria de estatuto tipológico. Os analistas do discurso utilizam essas tipologias baseados em três ordens: tipologias enunciativas, funcionais e situacionais. Todavia, é importante destacar que a noção de discurso constituinte não está inclusa em nenhuma das tipologias acima, mas perpassa cada uma delas.
Como a pretensão, vinculada ao estatuto do discurso constituinte é fundar e não de ser fundado, ele é concomitantemente auto e heteroconstituinte, supondo reciprocidade, pois esses discursos mobilizam o archéion (associado ao trabalho de fundação no e pelo discurso). A partir disso, Maingueneau justifica a escolha do adjetivo “constituinte” para caracterizar os agrupamentos de discurso, pois este vocábulo pode ser explirado em três valores semânticos, sendo constituição como ação de estabelecer legalmente; como modo de organização; como disposições legais.
A análise dos discursos constituintes descortina, conforme é destacado no artigo “Analisando discursos constituintes”, alguns conflitos inerentes ao posicionamento e às comunidades discursivas existentes a partir de uma enunciação, bem como a hierarquia, conforme o grau de proximidade com a fonte.
Assim, no interior da hierarquia de um discurso constituinte, deve-se distinguir entre os discursos primeiros (os puros) e os segundos, que limitariam a resumos, explicações; discursos fechados (jornal) e os abertos (artigos científicos). Um texto pode ser aberto ou fechado quando essa característica surge da forma como ele constrói sua cena de enunciação. Outra possível distinção no interior da hierarquia do discurso constituinte está entre os textos fundadores e os não fundadores.
Há constituição quando o dispositivo enunciativo funda sua possibilidade, fazendo o possível para parecer que extrai uma legitimidade de uma Fonte. Esse processo de desenvolve em três registros, conforme salienta o autor: O discurso apresenta sua cenografia, mobiliza um código de linguagem que lhe permite validar sua autoridade, e através de sua instância enunciadora, fixa assim o ethos (as ideias se apresentam através de uma maneira de ser (postura).
A relevância desse artigo de Dominique Maingueneau está na proposta de abrir o campo de pesquisa sobre os discursos constituintes, mesmo reconhecendo seu difícil manejo, pois consideram-se suas propriedades extremamente abstratas. Vale ressaltar também que é impossível extinguir a relação entre discursos constituintes e análise do discurso, visto que a AD se prende às esferas dos discursos constituintes, dada a sua filiação ao discurso científico, mas pretende também submeter o caráter constituinte a todo discurso, revelando uma questão paradoxal, todavia necessária. Essa pertinência se dá também no viés de legitimar a totalidade da produção discursiva a partir do instante que a análise do discurso contempla, por exemplo, o discurso filosófico ou literário.