“Arrependo-me de a Meter num Romance” – Vitorino Nemésio
Arrependo-me de a Meter num Romance
O poema tem mais pressa que o romance,
Asa de fogo para te levar:
Assim, pois, se houver lama que te lance
Ao corpo quente algum, hei-de chorar.
Deus fez o poeta por que não descanse
No golfo do destino e amores no mar:
Vem um, de onda, cobri-la — e ela que dance!
Vem outro — e faz menção de me enfeitar.
Os outros a conspurcam, mas é minha!
Chicoteá-la vou com a própria espinha,
Estreitam-me de amor seus braços mornos,
Transformo seus gemidos em meus uivos
E torno anéis dos seus cabelos ruivos
Na raspa canelada dos meus cornos.
Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga"
A poética vitoriana, percebida na estrutura do soneto “Arrependo-me de a Meter num Romance”, aborda como filão temático a magnitude do fazer poético, concebida de forma totalizante, um ato de entrega entre o poeta e a poesia
O título do poema, por si, já traz um ar de enigma. O eu lírico lamenta um ato cometido contra determinado ser, cuja identificação torna-se oculta, camuflada pelo demonstrativo “a”. Sabe-se que esse ser sofrera uma imposição do sujeito poético: fora encerrado (metido) com brutalidade num romance. Numa primeira visão, pode-se perceber que o título trata de uma desilusão num relacionamento amoroso e que o ser em questão seria uma mulher, obrigada a comprometer-se com o sujeito poético. O fracasso dessa relação reside justamente no fato desse sujeito conscientizar-se de que o romance imposto à mulher amada não condizia com a necessidade da mesma: ela queria algo rápido, porém intenso; já o eu lírico buscava um vínculo mais duradouro e suave.
O verso inicial (“O poema tem mais pressa que o romance”) funciona como justificativa para a constatação do eu lírico no título no soneto. A partir desse verso, tem-se a real identidade do ser, anteriormente velada. Trata-se da poesia. O fazer poético tem mais urgência que o fazer prosaico, visto que a construção de um poema requer total fluidez da inspiração, uma entrega absoluta do poeta ao sentimento que se quer revelado. Assim também captou Herberto Helder, ao escrever Sobre um Poema: “Um poema cresce inseguramente/ na confusão da carne”. O poema “cresce inseguramente” porque o poeta jamais poderá ter a certeza que o ímpeto que o levou a escrever, impulso “na confusão da carne“, que ainda se encontra no reino abstrato da alma e no pulsar imediato dos sentidos, ainda impreciso e misterioso, virá a se realizar como um corpo total e íntegro. Por isso, o cosmo poético é diferente do romance e não pode ser incluído nesse universo.
A poesia possui “asas de fogo”, numa referência à Fênix, pássaro mitológico cuja principal característica é a capacidade de regeneração. Sendo as cinzas, das quais a Fênix ressurge, uma visão interpretativa dada a qualquer texto poético, o renascimento da ave alegoriza a potencialidade que a arte poética têm de suportar várias interpretações. Assim, renascer das cinzas funciona como uma renovação do poético, em cada nova interpretação que o leitor consegue conceber. Contudo, o eu lírico evidencia uma ressalva que poderá afetá-lo. Ele há de chorar, caso lancem lama sobre o corpo quente. A lama representa o despojamento da poesia de sua essência; é camuflá-la, encobri-la de algo que não lhe é próprio, desconfigurá-la. O corpo quente é a vida da poesia, aludindo à ave de fogo, em cujas veias pulsa intensamente a essência vital poética. Se houver alguma tentativa de moldar a poesia, enquadrá-la em paradigmas que não condizem que a dinâmica do fazer poético, o eu lírico chorará, não haverá contentamento. A lama, com sua propriedade gélida, enterrará o corpo quente da poesia, numa visão imagética de sepultamento.
O ofício do poeta é estar em constante processo de criação, pois “Deus fez o poeta por que não descanse”. O fazer poético é divinizado, o poeta tratado aqui como um “deus” da poesia. O trabalho do poeta se equipara ao trabalho de Deus quando criou o mundo, descansando depois de sete dias, após o episódio genesíaco. Porém, o poeta não descansa. A missão que lhe é destinada é por demais árdua e elaborativa que o torna um ser compenetrado em sua arte poética, não lhe sendo permitido desviar-se “no golfo do destino” para outras veredas, deslumbrar-se com a própria capacidade criacionista que detém. Nem mesmo descansar “no mar (de) amores”, isto é, não se iludir com uma possível e posterior fama ou “glorificação” de seu trabalho, justamente pelo fato de que o fazer poético é sacralizado, desprovido de preocupações terrenas .
No âmbito artístico, um mar de onda vem e cobre a produção poética do artista “e ela que dance!”. Um segundo mar aparece “e faz menção de (…) enfeitar” o eu lírico. Essa onda, identificada como uma aglomeração de louvores, a fortuna crítica de determinada produção poética, tem o poder de reduzir a importância estética que esta possui, fazendo-a “dançar conforme a música”. Por outro lado, essa mesma onda enaltece a figura do poeta, atribuindo-lhe maior prestígio e relevância, quando quem deveria ser o principal objeto de apreciação é a própria poesia. A pessoa do poeta é um mero instrumento para a concretude de algo maior: o poema.
Ciente de que “os outros a conspurcam”, a tornem inferior ao poeta, excluída de sua real dimensão, o eu lírico se sente inconformado e, ao mesmo tempo, sente-se no direito de reivindicá-la em sua importância. Ela (a poesia) é dele! O elo que os une é indissociável; são carne da mesma carne, as metades que se juntam num só ser. O poeta é o único que possui o direito de “chicoteá-la (…) com a própria espinha”, e o faz não como os outros, por meio do discurso oralizado, mas com a única arma que dispõe: a palavra escrita. Somente escrevendo a poesia, ele pode castigá-la, “depreciá-la”, “imaculá-la”, isso feito com a espinha de sua inspiração. O sujeito lírico reconhece sua pequenez ao ser tomado “de amor” pelos “braços mornos” da poesia. Novamente, retoma-se o caráter do “corpo quente” atribuído à arte poética, a vivacidade que reside na tessitura do poema, que não lhe queima, mas o aquece. Pela relação poeta/poesia, o aspecto intelectual é deixado de lado, transcende para uma instância maior, alimentada por este envolvimento “amoroso” entre ambos. Contudo, um deve se sobressair diante do outro; e quem cede deve ser sempre o poeta: “Diminua eu para que tu cresças! (Evangelho de São João)”.
O eu lírico toma posse de todas as emoções que povoam a superfície e a profundeza da poesia. Num processo de materialização da poesia, percebe-se uma espécie de relacionamento entre o poeta com esse ser-mulher-poesia que ganha corpo. Ela o fala aos ouvidos com “gemidos”, cuja voz suave é tão inaudível que o poeta tem que transformá-los em seus “uivos” agudos, para poder gritar a todo o mundo o que está lhe perpassando a alma nesse instante. O eu lírico também torna os cabelos ruivos (o vermelho retomado como símbolo do ardente que habita a poesia) da poesia-mulher em “anéis”, dado o caráter cíclico que a arte poética apresenta, diferente da superfície lisa, linear que a prosa manifesta. Por fim, a poesia deixa “raspas caneladas” nos “cornos” do poeta. É como se, a cada poema produzido pelo poeta, fosse lhe retirado uma parte de si próprio, retira-se algo que existia em sua essência, deixando-lhe marcas profundas.
Em resumo, o discurso poético de Vitorino Nemésio no soneto Arrependo-me de a Meter num Romance revela a relação indissolúvel do poeta diante de seu labor artístico. O poeta tem que se envolver de corpo e alma quando mergulhado no processo do fazer poético. É um ato de entrega e restritamente vinculado ao momento de inspiração. Por isso, devido a sua unicidade, não se pode meter a poesia num romance, deslocando-a de seu universo para outro universo. Fazer poesia é muito mais do que enquadrá-la num molde prosaico. É o mergulho no insondável de próprio ser, é como pescar a pérola que se traz suspensa na alma. É aventurar-se na descoberta da própria essência.