SE HOUVESSE DEGRAUS NA TERRA, DE HERBERTO HELDER

Se houvesse degraus na terra...

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,

eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.

No céu podia tecer uma nuvem toda negra.

E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,

e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,

levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.

Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,

e a fímbria do mar, e o meio do mar,

e vermelhas se volveram as asas da águia

que desceu para beber,

e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.

Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.

Correram os rapazes à procura da espada,

e as raparigas correram à procura da mantilha,

e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Helder

A estrutura poética helderiana, dentre suas múltiplas facetas assumidas, envereda no poema "Se houvesse degraus na terra" a transcendência da matéria, tendo como pano de fundo a revisitação do mito adâmico.

O poema, cujo título é o primeiro verso, já nos antecipa o desejo de elevação, de sublimação do eu lírico, imageticamente construído pela subida dos degraus. A incerteza expressa pelos verbos no subjuntivo (“se houvesse”, “tivesse”, “nevasse”, “chovesse”, “acumulasse”) também é o indício da querência ou do anseio de permanecer no sagrado, isso porque o eu lírico percebe sua condição terrena, fadada ao aniquilamento. A possibilidade de existência de “degraus na terra” e “anéis no céu” é o que alimenta a certeza do sonho do eu poético em elevar-se e integrar-se ao celeste, nesse processo iluminante de espiritualização. A conexão com o sagrado o permitiria “tecer uma nuvem toda negra”, posto que ainda estando num plano superior, o ser humano não é sagrado; ele é negro, traz consigo a nódoa da mortalidade, da materialidade, por isso a ânsia de atingir o céu. Uma vez mantida a aliança com o céu (“e aos anéis me prenderia”), não haveria empecilhos ou impedimentos que pudessem rompê-la: a precipitação da neve, da chuva e a ofuscação da luz nas montanhas. Preso aos anéis celestes, o ouro se acumularia à porta do seu amor, isto é, o sentimento amoroso perderia suas vestes carnais e tornar-se-ia casto, platônico, só de alma, uma vez que o ouro é o símbolo da pureza. Enfim, a primeira estrofe do poema alude ao desejo de permanência no Paraíso celeste, o casal adâmico no Éden revisitado.

Já na estrofe seguinte, tem-se o segundo estágio do mito (re)construído: a queda adâmico ou a perda da inocência. De clara intensidade narrativa, a estrofe se processa num percurso gradativo, cuja ação principiadora (“Beijei uma boca vermelha”) desencadeia ações similares e sucessivas: boca tingida, lenço tingido, água tingida, mar tingido, asas da águia tingida, sol e lua tingidos. A cor vermelha simboliza o transbordamento vivaz da carne, o sangue da mortalidade; remete, ainda, à maçã (palavra bastante frequente na poesia de Helder), fruta comumente associada ao pecado, ao profano. A impressão que se tem é a de que uma vez manchado, tomado pelo vermelho, é inevitável fugir dele. É interessante observar a escolha dos elementos tingidos por essa cor (boca, lenço, água, mar, asas da águia, metade do sol e a lua inteira). Não por acaso, lenço, água, mar e asas da águia são elementos alvos, de brancura ou cristalinidade. Isso remete à pureza, à inocência que é corrompida, imaculada pela vivacidade do vermelho, do pecado. Tudo se inicia pela boca, que prova do sabor do pecado, ao beijar uma boca vermelha, por certo menção erótica do relacionamento amoroso. O beijo proibido, de traição à ordem divina, que também pode aludir ao beijo de traição de Judas, ao entregar Cristo aos fariseus. Por outro lado, há de se verificar que apenas metade do sol torna-se vermelha, enquanto que os demais elementos são tomados por completo pela vermelhidão (“a lua inteira”). Sol e lua, neste caso, são os símbolos do masculino e do feminino, respectivamente. E, com base na tradição bíblica, fora a mulher (Eva) a grande responsável pela “corrupção” do pecado que, influenciada pela serpente, induzira o homem (Adão) a provar do fruto proibido. Sendo assim, o homem (sol) teria menor parcela de culpa acerca de tal ato (por isso, só metade do sol permanece vermelha), enquanto que à mulher (lua), mentora da ousadia de provar do fruto do conhecimento, é atribuída a maior responsabilidade (ela é inteiramente culpada, inteira vermelha). Esse processo de maculação pela cor vermelha diz respeito, no poema, à perpetuação do pecado através das gerações, na qual nenhum ser humano está isento da “culpabilidade”, esta originária no primeiro casal, principiador da humanidade.

A última estrofe encerra a etapa final do mito. Após o desejo de integração ao sagrado e da seguinte decadência do homem, chega-se ao banimento, à expulsão do casal adâmico do paraíso. O sentimento de indignação diante dessa aliança irrealizável com o sagrado é visivelmente identificado na expressão inicial (“Maldito seja”), como uma espécie de agouro ou praga. Na verdade, tal maldição refere-se à repercussão do pecado original na humanidade, pois esta só existe devido ao ato pecaminoso de Adão e Eva, daí o sentimento indignado do eu lírico. A maçã atirada surge como a representação do pecado, o conhecimento do mundo antes mencionado. E o outro mundo, no caso, configura o mundo dos homens revestidos de sua mortalidade, por causa da perda da inocência sagrada. Não só a maçã, mas uma mantilha de ouro e uma espada de prata são atiradas para outro mundo. Enquanto que a maçã é o símbolo do proibido, a mantilha de ouro comporta a ideia de pureza, castidade, lembrando o véu virginal. Por isso, liga-se à representação do feminino. Já a espada de prata é o símbolo da virilidade, do falo, armamento utilizado pelos antigos cavaleiros medievais, estando, portanto ligada ao masculino. Ao serem lançadas no outro mundo, ou seja, no mundo dos mortais, esses elementos foram perseguidos por rapazes, raparigas e crianças. “Correram os rapazes à procura da espada”, isto é, o homem buscando firmar-se enquanto masculino (ser reprodutor). A espada de prata pode, ainda, remeter ao ato masturbatório (a prata alude ao sêmen), quando o rapaz descobre-se detentor do falo. Lembrem-se dos versos do poema Meu Sonho, de Álvares de Azevedo, nos quais também aparece tal sugestão libidinosa: “Cavaleiro das armas escuras/ Onde vais pelas trevas escuras/ com a espada sanguenta na mão.”; “As raparigas correram à procura da mantilha”, no caso, o ser feminino à procura da pureza, do recato, da beatitude virginal; “e correram, correram as crianças à procura da maçã”, ou seja, a inocência provando do pecado, o conhecer do mundo e das coisas. O verbo correr, aqui enfatizado, reforça a questão do ser humano estar atrelado ao destino da mortalidade.

Em síntese, o discurso poético de Herberto Helder no poema Se houvesse degraus na terra busca atingir a espiritualização da matéria por meio da transcendência, questionando e reinventando o mito bíblico de Adão e Eva. Em suas metáforas, o poeta perscruta a dualidade humana, baseada no desejo de elevação celestial e na consciência da carnalizada pecaminosa.

Saulo Sozza e Mariana de Sousa
Enviado por Saulo Sozza em 30/01/2012
Código do texto: T3469392
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