Resenha do Artigo: História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas de história oral de Verena Alberti e Amilcar Araújo Pereira. Rio de Janeiro: CPDOC, 2004. 15f.

Verena Alberti é licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense (1982), mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), doutora em Teoria da Literatura pela UniversitatGesamthochschule Siegen, Alemanha (1993), e pós-doutora em Ensino de História pelo Institute of Education da University of London (2009). Trabalha no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV), onde é coordenadora do Setor de Documentação e professora da Escola Superior de Ciências Sociais e História e do Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais. Atua também como professora de História no Ensino Médio da Escola Alemã Corcovado, no Rio de Janeiro. Tem experiência no campo da História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História e em História Contemporânea do Brasil, com destaque para as seguintes áreas: ensino de história, história oral, narrativa, história das relações raciais e história do pensamento sobre o riso. Publicou, entre outros, "O riso e o risível na história do pensamento" (1999, 2002), "Manual de história oral" (1990, 2004) e "Ouvir contar: textos em história oral" (2004), e organizou "Histórias do movimento negro no Brasil" (em co-autoria com Amilcar Araujo Pereira, 2007).

Amilcar Araújo Pereira é Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com um ano de estágio doutoral na Johns Hopkins University, nos Estados Unidos (2008). Tem experiência nas áreas de Ensino de História, história das relações raciais, história e cultura afro-brasileiras, história oral, movimentos sociais e formação de professores. Atualmente é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O artigo tem por finalidade expor os resultados do projeto de um banco de entrevistas de historia oral a respeito do movimento negro no Brasil. O projeto foi desenvolvido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas e conta com o apoio do South-South Exchange Programme for Research on the History of Development (Sephis), sediado na Holanda, e do Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex) do Ministério da Ciência e Tecnologia.Os autores discutiram temas que estão ligados a identidades negras, lideranças negras e a consciência negra dos entrevistados. Por meio do recurso das entrevistas e depoimentos, os autores estão interessados em preservar a memoria do movimento social que tem uma importância incontestável para sociedade brasileira, conscientizando assim, tantos os “brancos” como os próprios negros.

Segundo os autores a historia oral: “é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea. As entrevistas de história oral são tomadas como fontes para a compreensão do passado, ao lado de documentos escritos, imagens e outros tipos de registro. Caracterizam-se por serem produzidas a partir de um estímulo, pois o pesquisador procura o entrevistado e lhe faz perguntas, geralmente depois de consumado o fato ou a conjuntura que se quer investigar. Além disso, fazem parte de todo um conjunto de documentos de tipo biográfico, ao lado de memórias e autobiografias, que permitem compreender como indivíduos experimentaram e interpretam acontecimentos, situações e modos de vida de um grupo ou da sociedade em geral. Isso torna o estudo da história mais concreto e próximo, facilitando a apreensão do passado pelas gerações futuras e a compreensão das experiências vividas por outros.”

A partir disso as entrevistas são geridas para atingir a relação entre historia social e a trajetória individual de cada entrevistado. “Nesse sentido, a conversa inicia-se com perguntas sobre a infância e a socialização do entrevistado: onde e quando nasceram, origens familiares, primeiros estudos etc. Em seguida, procura-se acompanhar sua trajetória até a atuação no movimento negro, tentando observar as condições que o conduziram a essa escolha. Os marcos significativos para a formação e a consolidação do movimento negro são tratados na entrevista, tanto os que contaram com a participação direta do entrevistado como os que já fazem parte de uma “memória coletiva” do grupo.”

É a historia do movimento negro através do método da historia oral, tendo por objetivo apreender a construção da identidade racial como negro e do seu auto reconhecimento da sua própria consciência como tal. Seguem-se algumas entrevistas que explicam essas realidades. A experiência de Frei David Raimundo dos santos revela como um “moreninho de cabelo crespo” tinha a possibilidade de não ser considerado negro ou de não se considerar. A experiência serviu para que o mesmo se visse e tivesse consciência de sua negritude:

Entrei em março, e em 13 de maio, a turma – nós éramos em trinta e tantos alunos seminaristas, a maioria de origem alemã e italiana, do Sul do Brasil –, inventaram de comemorar a Lei Áurea no refeitório ao meio-dia. O refeitório imenso, pegaram uma mesa, botaram no meio do refeitório e deram o toque de navio negreiro, e naquele dia os negros seminaristas deveriam sentar n aquela fazer com os negros. E como eu nunca me imaginei negro, sempre me vi como alguém “queimadinho da praia”, das praias capixabas e não muito mais do que isso, alguém que... “Eu sou moreno porque eu sou mais de praia e ponto final!” Não assumia minha negritude. E então, frente a esse fato, criou-se um clima muito difícil. Na verdade, eu nem puxei para mim a missão de sentar naquela mesa do meio. Sentei normalmente nas mesas laterais como os demais brancos. E na hora da brincadeira alguém gritou: “Êpa, tem uma cadeira vazia. Falta alguém. É o David.” Então foi lá meia dúzia de alemães me puxar pelas pernas, pelos braços e me botar na cadeira, no meio da mesa. Eu disse: “Pera aí. Vocês estão me ofendendo publicamente. Vocês estão me agredindo, estão me chamando de negro diante de todo mundo. Isso é agressão. Não aceito uma coisa dessas.” E assim que me soltaram no meio daquela mesa eu enfiei a mão na jarra de água, derrubei uns dois copos, quebrei algumas coisas e saí, fui embora para o meu quarto para arrumar a mala e vir embora. (Entrevista gravada em 11/5/2004).

Segundos os autores: “Frei David conta que o frei responsável pelo seminário não deixou que fosse embora sem antes conversar com ele. Ele teve um papel muito importante na “conversão” (a expressão é nossa) de Frei David para sua “negritude” – tanto que é chamado de “formador” por nosso entrevistado: “E ali teve um formador que foi um cara muito estratégico, um cara muito capaz, muito bem preparado.” Este “formador” chamou-o para uma conversa após o jantar e disse: “Você tem aí a foto de sua mãe?”

Eu disse: “Tenho sim.” Enfiei a mão na carteira, peguei a foto da mãe e mostrei para ele. Mãe branca, e ele olhou: “Ué, sua mãe é branca?” Eu disse: “Lógico, eu sou branco, minha mãe tem que ser branca.” (...) “Tem uma foto do seu pai?” Eu disse: “É, frei, ter, eu tenho, mas está lá na mala.” “Vai lá buscar.” Eu disse: “Mas a mala já está fechada e eu estou pronto para ir embora...” Ele disse: “Mas, vai lá. Você vai embora, eu quero conhecer pelo menos o seu pai de foto.” Eu vou lá, muito chateado com essa história de buscar a foto do pai. Eu abro a mala, pego lá no fundo da mala a foto dele e trago. E todo humilhado, abro e mostro para ele a foto do pai. E ele vai e diz: “Seu pai é negro!” Aí deu um choque geral. Parado, nem saí do lugar, nem para frente, nem para trás, nem baixava... Ele foi lá, pegou um copo d’água e tome água e senta... “O que está acontecendo?” Eu não conseguia falar, e ele disse: “Olha, você sofre de uma doença grave de que você não é culpado.” “Eu? Doença?” Ele disse: “É. Você sofre de uma doença perigosíssima, contagiante, você pegou essa doença, você não é culpado e chama-se ‘ideologia do embranquecimento’. E só você tem o remédio para derrubar essa doença fora. Se você não trabalhar, não atacar essa doença, vai te estragar todo e você vai ser uma pessoa sempre sofrida.” Eu disse: “E como é essa doença?” Ele falou: “Essa doença leva a pessoa a rejeitar seu povo, sua raça, sua etnia.” Ele apontou para ele: “Eu, alemão, leio livro em alemão sobre meu povo toda semana. Tudo ligado à Alemanha eu estou lendo, estudando minha cultura, meu povo... estou alimentando e mantendo. E você faz isso?” “Não senhor. Eu nunca li um livro sobre o negro.”

E aquilo ali começou a me despertar uma questão estranha: “Puxa vida, meu pai é negão, nunca falou nada sobre o negro para mim.” Aí comecei a fazer a releitura, voltar na história: “Meu pai praticamente neutralizou os filhos dele da família dele, dos irmãos dele, dos pais dele.” Ou seja, nós todos nascemos sem conhecer a família dele. E ele nos colava o máximo possível à família da minha mãe: brancos. (...) Então ali eu comecei a entender como é que se desenvolvia em nós, em mim e em meus irmãos, a consciência de rejeição da questão racial. (...) E ali, em 76, começou a nascer o despertar da consciência racial, a leitura crítica das relações raciais no Brasil e o quanto isso estava muito mal resolvido, o quanto isso era uma fonte de estrago de vida, porque, puxa vida, o bonito é a pessoa se amar conforme Deus a criou. E se eu vivia aquilo, comecei a me perguntar: “Como é que vivem os demais negros?” (Idem).

Outra entrevista com Jurema Batista ( Participou da fundação do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras e atualmente é deputada estadual no Rio de Janeiro) também nos mostra como se deu a “conversão” para esta tomada de consciência:

Um dia ia ter um debate aqui na Faculdade Santa Úrsula e nós tínhamos o Centro Acadêmico de História chamado Luís Gama, que era um pessoal até da Bahia, negros da Bahia que dirigiam o Centro, o C.A. de História. (...) Aí me convidaram para um debate, e eu falei: “Eu?”Disseram: “É, para esse negócio de negro...” Eu falei: “Eu? Não quero saber disso. Está ficando maluco?” Eles disseram: “Porque tem racismo no Brasil...” Eu falei: “Que racismo? Onde é que vocês inventaram esse negócio? Era só o que faltava. Vocês estão trazendo coisas dos Estados Unidos para cá. Não tem esse negócio aqui não, só na África do Sul.” E aí eles ficaram insistindo, insistindo para eu ir lá. (...) Daqui a pouco entra um “rastafari” na minha sala: “Vamos lá que a gente está te esperando.” (...) Aí eu fui para o debate a laço. [riso] Cheguei lá, quem estava na mesa? Carlos Alberto Medeiros, Lélia Gonzalez e esse rapaz que depois veio a ser meu assessor, ele foi até assassinado, Hermógenes. (...) Aí cheguei lá com o Carlos Alberto Medeiros falando daquela forma com a qual ele falava, ainda por cima era muito bonito, na época, muito rapazinho. E a Lélia lá falando daquele jeito que ela falava, maravilhosa. (...) Aquela forma contundente com que ela falava, apaixonada. Mas eu briguei emocionalmente com ela. Eu falei: “Essa mulher está ficando doida. Onde é que essa mulher arrumou isso?” Foi muita resistência, mas, ao mesmo tempo, alguma coisa ela falou que tocou tão profundamente... (...) E eu sabia assim: “Lélia Gonzalez vai estar fazendo palestra não sei onde...” Eu ia. Comecei a ir onde eu sabia que ela estava e ficava ouvindo, aí entendi tudo. Foi exatamente nesse momento que eu tomei consciência da questão racial. Eu fiquei muito brava, muito brava... Era uma “militante pitbull”, entendeu? Porque eu fiquei com muita raiva. Depois eu entendi isso, no processo psicanalítico, inclusive. Porque eu fui enganada a vida inteira. A vida inteira eu bebi na tal estória de que no Brasil não tinha racismo. (Entrevista gravada em 26/4/2004; grifo nosso).

Conclui-se que, por meio das entrevistas com o método da História Oral é possível perceber como se dá o processo da formação das identidades e lideranças do movimento negro, num contexto de percepção que passa por diversos contextos de idade, pertencimento de grupo ou não. Ao examinar os discursos dessas lideranças que passaram a formar-se, percebemos as perfectivas históricas da pluralidade político ideológico que delineiam o Movimento Negro do Brasil. Este movimento é caracterizado pela luta de negros na perspectiva de resolver os impasses que estes mesmos sofrem na sociedade, que são originários das discriminações raciais, que marginalizam o negro do mercado de trabalho, no sistema educacional, social, político e cultural.

Referências:

ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. História do movimento negro no Brasil: constituição de acervo de entrevistas de história oral. Rio de Janeiro: CPDOC, 2004. 15f.