CRISE E REFORMA DO ESTADO: uma questão de cidadania e valorização do servidor, de Caio Marini
Herick Limoni*
1 - INTRODUÇÃO
O mundo está em constante transformação. Desde os primórdios as pessoas se vêem às voltas com a necessidade de se adaptar às mudanças. Algumas necessárias, outras não. Com a maximização dos relacionamentos entre povos e, principalmente, países, culminando com a chamada globalização, a necessidade de adaptação às contingências passou a ter lugar de destaque, muitas vezes adquirindo ares de essencial. É muito em razão dessa necessidade de adaptação que surge o termo reforma. Em nossas casas, quando estás já estão um tanto quanto ultrapassadas, velhas, o que acarreta inúmeros problemas de ordem estrutural, o mais indicado é que se faça uma reforma, a fim de sanar as irregularidades e permitir que ela fique de pé por mais alguns anos, até que nova reforma será necessária. Assim também acontece com o Estado. De tempos em tempos o Estado precisa promover reformas a fim de sanar irregularidades ou adaptar-se a alguma contingência. Por exemplo, hoje, no Brasil, muito se fala em reforma da previdência, reforma do judiciário, que são gargalos para a administração pública e por isso carecem de modificações. Mas como toda mudança é traumática, em maior ou menor grau, as reformas, ainda que extremamente necessárias e imprescindíveis, quase sempre encontram resistências que as impedem de ser implementadas. Quebrar as resistências é, hoje, o maior desafio dos governos em relação às reformas, e isso só será possível, principalmente em países com regimes democráticos, como o Brasil, a partir do momento que o Estado souber demonstrar, de forma clara, a importância dessas reformas, angariando a aprovação de todos os atores envolvidos, como forma de legitíma-las, sob pena de nos tornarmos um país ultrapassado.
2 – SÍNTESE DA OBRA
2.1 – A crise do Estado: governabilidade e governança
Segundo o autor, estes são componentes fundamentais nos processos de mudança na administração pública, sendo que governabilidade diz respeito à legitimidade dos governos para empreender as transformações necessárias e governança diz respeito a sua capacidade de implementá-las.
Para ele, durante muito tempo os países latino-americanos, principalmente o Brasil, sofreram uma crise de governabilidade, uma vez que os processos de escolha dos governantes careciam de legitimidade, em razão de serem implementados de forma não democrática, ou seja, sem a participação e aprovação da sociedade. No Brasil, essa situação começou a mudar após a queda do regime militar. A ausência de democracia inviabilizava as reformas, por ausência de credibilidade e de comprometimento da sociedade com as mudanças que se pretendia implementar. Para o autor, ainda que o cenário na América Latina não seja o ideal, houve certa evolução, principalmente em razão dos avanços nos processos de democratização. Ele ressalta, ainda, que a democracia, por si só, não garante condições efetivas para se implementar as reformas, principalmente em regimes presidencialistas, onde, muitas vezes, as reformas dependem de processos complicados de negociação entre os poderes, e ainda que se garanta a governabilidade, a ampliação da governança é necessária. Ainda que ambientes democráticos representem alguns entraves políticos à implementação de reformas, estes ocorrem muito mais em virtude da sobreposição de interesses pessoais aos coletivos, o que, por si só, não é capaz de ofuscar as vantagens desse tipo de regime.
Para o autor, o momento atual impõe ao Estado a necessidade de rever seus papéis, funções e mecanismos de funcionamento, mas que isso não é suficiente, havendo a necessidade de se impor novas exigências à sociedade como um todo. É preciso que se encontrem alternativas de superação das desigualdades, ampliando o espaço de inclusão na vida social, política e econômica, e isso só será possível através da internalização de conceitos como cidadania e equidade. Para isso, é necessário que se construa e se fortaleça mecanismos de parceria Estado-Sociedade.
2.2 – O esgotamento do paradigma burocrático
Após um balanço de trinta anos das reformas administrativas implementadas em países da América Latina, Bernardo Kliksberg (1987), aponta elementos positivos e negativos dessas reformas. Como positivos, ele destaca: desenvolvimento de alta sensibilidade sobre a necessidade de reforma junto à opinião pública; o estabelecimento de instituições especializadas de pesquisa e capacitação sobre o tema e a formação de profissionais, oriundos desses países, que representem respeitável massa crítica no campo das reformas administrativas.
Dentre os pontos negativos apontados por Kliksberg, o autor destaca: a natureza da mudança administrativa (produziu simples redesenhos de organogramas, normas e legislação); dicotomia entre política e administração (desconsidera os atores que determinam os movimentos das organizações – grupos intraburocráticos de pressão, grupos externos à organização e os usuários dos serviços); pobreza do pensamento estratégico (prioriza a introdução de metodologias de simplificação em detrimento de uma análise global da efetiva necessidade da realização da atividade) e política de pessoal meramente logística (controle ao invés de motivação e participação dos funcionários). O autor argumenta, ainda, que a realização dos objetivos da reforma do Estado passa, necessariamente, pelo questionamento da suficiência do paradigma burocrático vigente, uma vez que tal modelo funcionava num contexto onde a premissa que condicionou a gestão, tanto pública quanto privada, se baseava na lógica de que o futuro era uma mera extensão do passado, ou que o passado explicava o futuro, bastando, para se resolver os problemas de gestão, olhar o passado e projetar o futuro. Esse modelo atendia às necessidades em razão da estabilidade que imperava na época, não se aplicando ao ambiente dinâmico atual, pois, sabe-se hoje, que o sucesso do passado não garante o êxito futuro. Nesse contexto, a capacidade de reação veloz às mudanças torna-se um diferenciador das organizações de sucesso contemporâneas.
2.3 – A experiência internacional recente
2.3.1 – O modelo gerencial
O conceito de “gerencialismo” na administração pública diz respeito aos desafios de implementar programas que visem o aumento da eficiência e melhoria da qualidade dos serviços, o que, para o autor, parece ser a tendência dominante. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha foram invadidos por esses conceitos, tendo como ênfase inicial programas de redução de custos.
Nesse contexto, Abrúcio (1996) apresente uma classificação do modelo gerencial, baseados nos seus objetivos principais, relação com a sociedade e ordem de criação. Em resumo, a classificação é a seguinte: gerencialismo puro (preocupação com a eficiência, economia e produtividade); New Public Management (efetividade e busca da melhoria da qualidade do serviços, na perspectiva dos clientes/usuários); Public Service Oriented (equidade, resgate do conceito de esfera pública e ampliação do dever social de prestação de contas). Essa evolução, segundo o autor, introduz duas importantes inovações: a valorização da descentralização como meio de implementação de políticas públicas e a mudança do conceito de cidadão, que passa a ter uma conotação mais coletiva, incluindo direitos e deveres. Na seqüência, o autor apresenta as experiências levadas a efeito nos Estados Unidos, Inglaterra e França.
2.3.2 – O caso norte-americano
A experiência norte-americana em relação à implementação de políticas públicas ganhou espaço na bibliografia internacional a partir da publicação do livro “Reinventando o Governo” (1994), de David Osborne e Ted Gaebler, no qual os autores apresentam o conceito de governo empreendedor, baseado num conjunto de dez princípios, dentre os quais destacam-se: Governo catalisador (redefinição do papel do governo, de provedor direto para promotor); Governo competitivo (destaca as vantagens da competição estatal contra o monopólio); Governo da comunidade (transfere responsabilidades da burocracia para o cidadão); Governo orientado por missões e resultados (muda o enfoque em regras e procedimentos para missões e resultados) e Governo voltado para clientes (serviços com qualidade e enfatizando o controle social). Percebe-se, através desses princípios, a preocupação latente dos atores públicos em engajar a sociedade na definição de políticas públicas, cujo cliente é a própria sociedade, visando uma melhora substancial na prestação dos serviços ofertados, mas também dividindo responsabilidades com este ator até então esquecido.
Em razão de sua publicação, Osborne transformou-se em importante assessor do vice-presidente norte-americano à época, Al Gore, na reestruturação da administração pública norte-americana, que teve como objetivos principais a melhoria da qualidade e racionalização dos gastos. Dessa experiência surgiu o relatório “The National Performance Review” (1993), que identificou os principais obstáculos à implementação dos princípios apresentados por Osborne e Gaebler, com destaque para o excessivo monopólio estatal, alto grau de burocratização, falta de incentivos para o sucesso e a impunidade nos casos de fracasso, além da ausência de mecanismos encorajadores de processos de criação de inovação. Como soluções, o relatório propôs a redução significativa da burocratização, a fim de liberar as organizações para cumprirem suas missões, a focalização no consumidor, a delegação de poder aos empregados e a racionalização.
2.3.3 – O caso inglês
A Inglaterra teve como marca registrada na administração pública a separação entre administração e política, visando garantir neutralidade e proteção contra as alternâncias de poder. Nesse caso, a dicotomia entre administração e política teve menos impacto que em outros países. Como marco da administração pública inglesa, o autor aponta o relatório Fulton, elaborado em 1968. William Plowden (1984), destaca, dentre as medidas do citado relatório, a criação de um novo Departamento de Serviço Civil, a criação de uma nova Escola Superior de Administração Civil e a eliminação de divisões existentes dentro do serviço. Tal período, compreendido entre o final dos anos 60 e início dos anos 70, foi marcado por significativas reestruturações, baseadas no princípio de eficiência, abrangência e autonomia municipal.
Ainda que tais medidas tenham representado significativos avanço na implementação de políticas públicas na Inglaterra, foi no período de Margaret Thatcher que ocorreu a mais profunda reforma da administração daquele país, num ambiente caracterizado pelo alto custo da máquina pública e baixa eficiência na qualidade dos serviços prestados. A primeira medida desse governo foi reduzir os quadros e extinguir o tradicional Ministério da Função Pública, a fim de definir qual a finalidade de cada órgão e seu custo para o governo. A segunda medida foi a caracterizada pela privatização. Na terceira, buscou-se a melhoria da qualidade do serviço público e aumento da eficiência, tendo como destaque a criação de uma unidade para tal fim, a Efficienty Unit. A quarta medida, denominada “Next Step Program”, deu origem ao processo de criação das Agências Executivas, cuja idéias central era separar as funções de formulação das de execução de políticas públicas. Nele surge a criação de um contrato denominado “Framework Document”, que define a relação do ministério com a agência. Nesse período, o autor destaca a implementação do programa de melhoria dos padrões de prestação dos serviços públicos, denominado “Citizen´s Charter”, que incentivava a competitividade, com remuneração atrelada ao desempenho. Esse período também é marcado pela ampla divulgação dos resultados alcançados e pela realização de auditorias para avaliar o desempenho na prestação dos serviços.
2.3.4 – O caso Francês
Na França, o princípio norteador do serviço público é o de assegurar o interesse geral, garantindo a todos condições de igualdade, através de uma modelo que enfatiza o caráter estatizante e centralizador.
Michel Crozier (1989) analisa o significado do “Estado à Francesa”, após um salto fantástico dado pela sociedade daquele país a partir de 1945. Segundo o autor, merece destaque o papel das relações humanas como expressão das práticas administrativas, enfatizando a intervenção estatal em todos os níveis. Como conseqüência do enfoque em “manter o interesse geral a qualquer preço”, o autor argumenta que tal procedimento fortalece a lógica burocrática, privilegiando os controles, mais particularmente os controles de conformidade. Ainda segundo o autor, tal enfoque é aceitável em ambientes estáveis, mas insuportável em ambientes dinâmicos, onde a inovação desempenha um papel cada vez mais decisivo.
Em razão da ineficiência desse modelo em ambientes instáveis, a França se viu na necessidade de adotar um modelo menos estatizante e centralizador, mais adequado à nova realidade ambiental, e para isso criou um documento base para a reforma do Estado, que definiu os seguintes objetivos prioritários: definir o papel do Estado; focalizar o cidadão; reformar o Estado central; delegar responsabilidades; racionalizar o aparelho do Estado; renovar a gestão dos recursos humanos e renovar a gestão orçamentária. O processo de modernização também passa pela desconcentração de atividades, transferindo-as para os níveis locais e pela descentralização, transferindo funções do poder central para os departamentos ou governos locais. Outra tendência observada pelo autor diz respeito à contratualização das atividades dos órgãos públicos, apoiadas por um sistema de informações e de avaliação. Tais medidas visam aproximar do usuário a execução ou centro de decisão (desconcentração e descentralização) e dotar a administração pública de maior eficiência e eficácia nos serviços e melhor atendimento ao usuário (contratualização).
Como se vê, a preocupação da França em prestar um serviço de melhor qualidade aos usuários destes, é bem mais acentuada que em outros países, notadamente os estudados pelo autor, Estados Unidos e Inglaterra.
Revista do Serviço Público, ano 47, v. 120, nº 3, set-dez 1996
* Bacharel e Mestrando em Administração de Empresas, com ênfase em Segurança Pública e Defesa Social.