EM NOME DA LEI E DA ORDEM: A propósito da política de segurança pública, de César Barreira

Por Herick Limoni*

1 - INTRODUÇÃO

O processo de evolução das sociedades é contínuo e exige, invariavelmente, mudanças drásticas, perpassando por aspectos culturais e comportamentais. Muito dessa evolução se dá através de acontecimentos trágicos, que exigem maior interação e superação dos atores afetados. Foi assim com a sociedade japonesa pós 2ª Guerra Mundial, onde foi necessária uma intensa mobilização social na reconstrução do país, culminando no surgimento de uma das três maiores potências mundiais da atualidade. Não tivesse havido convergência de propósitos, o resultado, possivelmente, não seria o mesmo.

No Brasil, uma das mudanças mais significativas do século XX, e que ainda não foi plenamente absorvida pela população e pelos órgãos governamentais, foi o processo de redemocratização, caracterizado pela transição de um regime de exceção – a ditadura – para o chamado Estado de Direito. Tal mudança impactou, e ainda impacta, o modo de vida da população brasileira e as instituições que compõem o sistema de defesa social, com destaque para aquelas que, em razão de sua missão constitucional, têm maior contato com a população (Polícias Militar e Civil e Corpo de Bombeiros Militar).

Após mais de vinte anos sob a vigência de um regime militar, marcado pela violência, autoritarismo e abusos diversos, essa transição não seria fácil, em razão dessa cultura que se estabelecera durante o referido regime. Tal regime somente não se perpetuou pelo fato de que a população, destinatária dos serviços de segurança pública, mais ciente de seus direitos e deveres, passou a exigir maior eficiência e respeito por parte dos organismos policiais, ainda que de forma tímida e desarticulada. A imprensa, até então controlada e fiscalizada pelo Estado, teve, também, papel preponderante nesse processo transitório.

Nesse sentido, o autor apresenta um estudo sobre esse processo de transição no Estado do Ceará, fazendo um recorte histórico nos quatro primeiros governos pós-ditadura, compreendidos entre os anos de 1987 a 2002, analisando as políticas implementadas no campo da segurança pública daquele Estado, diagnosticando seus principais erros e acertos.

2 – SÍNTESE DA OBRA

A mudança do regime ditatorial para o democrático exigia outras mudanças. O novo panorama, além de suscitar uma mudança drástica na forma de atuação dos órgãos de segurança pública, exigia, ainda mais, um rompimento com as “velhas” práticas policiais utilizadas durante o regime militar, a fim de minimizar as heranças negativas deixadas pelo referido regime.

Nesse sentido, o primeiro governo cearense pós-ditadura, inaugurado com a eleição de Tasso Jereissati, tentou implantar um novo sistema de governo, principalmente no campo da segurança pública, tendo como adjetivos o “novo” e o “diferente”, a fim de se distanciar das imagens negativas dos governos anteriores, caracterizada por práticas ilegais e no uso indiscriminado da violência por parte do aparato policial, além de uma imagem popular de que os órgãos de segurança pública atuavam em favor das classes dominantes, em detrimento dos pobres, negros e favelados, fatos estes que minavam a confiança da população em relação aos órgãos do sistema de defesa social.

Internamente, o governo procurou recuperar os princípios da hierarquia, da disciplina e da moralidade, que haviam sido profundamente afetados pelo regime militar, optando por “separar o joio do trigo”, isolando a parte considerada “podre” dos órgãos de segurança pública. Para isso o governo optou por trazer, de outro Estado, aquele que seria o novo secretário de segurança pública, o que acabou por gerar um mal-estar dentro dos órgãos de defesa social. Externamente, o governo buscava recuperar a confiança e a credibilidade junto à população, através de práticas mais eficientes de combate ao crime e da implantação da lei e da ordem.

Em razão das práticas de pistolagem, tão comuns, à época, naquele Estado, e buscando dar legitimidade ao discurso de um Estado “novo”, o governo implantou, ainda em 1987, a campanha contra a pistolagem, considerada o marco do novo governo. Nessa campanha, além do combate sistemático aos executores desse tipo de crime, o governo investiu também contra os mandantes, gente poderosa e influente, buscando minimizar o sentimento da população de que a polícia somente trabalhava em desfavor dos menos favorecidos, como bem explicita o autor

As inovações estratégicas do plano de segurança para o estado do Ceará foram paulatinamente traçadas e construídas ao longo desta campanha, notabilizando-se pela busca de neutralidade e independência diante do poder econômico e político, quebrando as amarras com “ações ilegais” dos órgãos de segurança pública ligadas aos setores dominantes.

As políticas até então implantadas começavam a dar resultados quando alguns escândalos afetaram interna e externamente os órgãos de segurança pública do Estado. O primeiro ocorreu no ano de 1993, quando um pedreiro, após ser preso pela acusação de ter furtado um televisor, fora torturado pelos responsáveis por sua prisão, fato constatado por delegados de entidades de direitos humanos, pela imprensa cearense, parlamentares e advogados da OAB – CE, após uma denúncia anônima, comprovando que a tortura, como prática herdada do regime militar, ainda não havia sido completamente extirpada. Tal fato serviu, ainda, para levantar outras questões até então esquecidas, como as péssimas condições das delegacias do Estado, a superlotação e o não fornecimento, por parte do Estado, de alimentação para os detentos.

O segundo fato ocorreu no final de 1997, quando militantes do Movimento dos Sem Terra (MST), acampados em frente à Secretaria do Desenvolvimento Rural do Estado, na capital Fortaleza, foram, durante a madrugada, cercados pela Polícia Militar, que impediu qualquer contato dos manifestantes com a população, através de um cordão de isolamento humano. O episódio foi marcado pela violência e truculência por parte dos policiais, enfraquecendo o discurso governista de que a polícia, a partir de então, seria uma polícia para todos, rompendo os laços que a ligavam a uma imagem de polícia das elites em detrimento dos mais necessitados.

O terceiro episódio aconteceu, também, no ano de 1997, que se mostrou trágico para as forças de segurança do Estado. Em janeiro daquele ano, um agente da Polícia Civil, de sobrenome França, foi preso com um veículo roubado. Até então, infelizmente, apenas mais uma situação recorrente em todas as polícias do Brasil, não fosse pelo fato de que, após sua prisão, o agente fizera diversas denúncias de atos ilícitos, com a participação de membros das duas polícias, como também de parte da cúpula de segurança pública do Estado. Tais denúncias diziam respeito ao envolvimento de policias com o tráfico de drogas, prostituição e crimes de extorsão e corrupção. Tal fato afetou, profundamente, a idéia de moralização que o governo tentava implantar, como também aumentou o medo e a insegurança da população.

Após os acontecimentos de 1997, o governo decidiu, novamente, promover alterações nos órgãos de segurança pública. A principal mudança foi a substituição da Secretaria de Segurança pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania (SSPDC), nomeando um general-de-divisão do exército para dirigi-la. Um dos principais objetivos da nova secretaria era o de unificar as atividades de segurança pública desenvolvidas pelas polícias, corpo de bombeiros e corregedorias. Em que pese a tentativa, a unificação aconteceu somente em alguns trabalhos, em razão da ausência de uma política clara de unificação. Em maio daquele mesmo ano, o governo contratou a consultoria de Willian Bratton, ex – prefeito de Nova Iorque responsável pelo programa tolerância zero. A consultoria propôs a criação de um projeto de segurança composto de nove distritos-modelo para Fortaleza, partindo das nove áreas militares já existentes, a fim de unificar as ações das polícias civil e militar responsáveis por tais áreas e estreitar a colaboração entre as duas corporações no combate à criminalidade. Daí também surge a idéia de “policiamento comunitário” e a criação dos Conselhos Comunitários de Defesa Social (CCDS), na busca pela parceria e maior participação da comunidade local nos trabalhos de segurança pública.

A criação de tais conselhos trouxe, também, alguns aspectos negativos, segundo o autor. O primeiro diz respeito ao fato de que os conselhos passaram a ocupar, em parte, um espaço dos serviços de inteligência, uma vez que as ações passaram a ser baseadas em informações passadas pelas comunidades. O segundo diz respeito ao fortalecimento de alguns estereótipos no campo da violência, tendo em vista que o apoio comunitário parte de um saber empírico, não cientifico e não metódico, o que tende a contaminar todo o processo. O terceiro diz respeito aos desvios das funções constitucionais das polícias, uma vez que, ao atuarem mais próximas às comunidades, estas são cada vez mais exigidas a atuarem em assuntos não criminais, tais como brigas de vizinhos, desavenças entre casais, etc. O grande dilema dessa questão é que, justamente quando a necessidade de aplicação da lei está aumentando, em razão do aumento dos índices criminais, que necessitam de intervenção dos aparelhos policiais do Estado, tem aumentado, quase que na mesma proporção, a solicitação policial para atuação em ocorrências diversas daquelas para as quais foram criadas.

O autor destaca, por fim, que mesmo após todas as ações implementadas os índices criminais não diminuíram, assim como também não modificaram o cenário de medo e insegurança da população. Ressalta, ainda, que para se obter a legitimidade tão esperada, somente novas estratégias de policiamento não são suficientes, devendo haver uma “mudança de mentalidade”, que passa, necessariamente, por uma formação mais humanista dos contingentes policiais, para uma melhor prestação de serviço à população.

4 – REFLEXÃO CRÍTICA

O autor cita o caso do estado do Ceará, mas que poderia, devido ao atual panorama da segurança pública nacional, ter acontecido em qualquer um dos estados brasileiros. O problema da segurança pública, como bem sabemos, não se restringe a essa ou aquela região, a esse ou aquele estado. É um problema que ultrapassa as fronteiras do nosso país.

As polícias militares de todo o país, como forças auxiliares e reserva do exército, em maior ou menor grau em relação às polícias civis, herdaram a cultura do autoritarismo e do abuso de poder, consagrados por práticas ilegais. Acontece que, hoje, a população está cada vez mais ciente de seus direitos, o que inviabiliza uma polícia com os traços de outrora.

No caso específico do estado do Ceará, o governo optou por uma mudança radical na cúpula da segurança pública local. Tal medida, que já enfrentaria grandes dificuldades em razão de que, nesses casos, são poucos para “comandar” muitos, agravou-se pelo descontentamento de parte desse contingente em relação à indicação de um “forasteiro”, o que, de certa forma, significava atestar a incompetência dos recursos humanos interno.

Outro fato que merece destaque é a contratação de uma consultoria estrangeira, na tentativa de solucionar problemas locais. Não se pode esquecer que a realidade de Nova Iorque é muito diferente da realidade brasileira, onde a justiça é lenta, as leis não são cumpridas e impera a cultura da impunidade, maximizada pela corrupção, em todos os níveis. Desta forma, adotar políticas já levadas a efeito em outros lugares, sem levar em consideração as características regionais e culturais locais, pode não resultar nos efeitos desejados.

O que fica de positivo nessas ações é o chamamento à população para participar, juntamente com as polícias, dos problemas relativos à segurança pública, ainda que tardiamente, já que nossa Carta Magna, em 1988, já previa que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. E esse é um caminho sem volta.

* Bacharel e Mestre em Administração de Empresas