ENSAIO DE ORQUESTRA - FILME DE FELLINI
O filme inicia com a demonstração exaltada dos egos dos instrumentos musicais incorporados nos personagens. Encontramos todos os tipos que habitam as organizações contemporâneas com as máscaras e alegorias musicais. O louco, a fútil, o autoritário, o saudosista... Cada músico fala do seu instrumento e da sua experiência e enfatiza a importância de sua participação na realização do concerto. Todos são protagonistas.
O cenário é perfeito para a representação do espetáculo. Uma capela centenária com túmulos e o ensaio do que estar por vir com as ruínas do que fora outrora. A morte contracena com a vida na afinação dos instrumentos. Fellini dirige a possibilidade de ensaio diante da apresentação única do viver.
A batuta rígida do maestro duela com as determinações sindicais. Os músicos desafiam os direitos quando almejam o estrelato e seguem rigorosamente o convencionado ao contrariar as determinações do regente. O maestro exaspera suas frustrações em palavras ríspidas e desnecessárias, a orquestra atravessa a regência com descaso e ironia, o sindicalista aproveita o tablado para representar sua autoridade, os antigos copistas.
Intervalo. O maestro confessa como se sente ridículo: “me sinto um fantasma”... Contudo, logo reassume o personagem, com soberba, diante das câmeras de televisão para afirmar que a música é o mundo e ele, quando está na regência, sente-se dono do mundo... Não! Sente-se um sargento sem autoridade... O olhar apático denuncia o espectro do morto.
Retorno sem luz. À sombra das velas, as paredes assumem o horror dos insultos e ressentimentos, expressos nas máculas da construção monástica, contra qualquer autoridade. Estrondos fragilizam os sons, mas os músicos estão contagiados numa rebelião desordenada e não percebem nada além do que a orquestrada revolta. O chão de todos está abalado. O que esperam? Qual o objetivo almejado com tanta agressividade?
Uma revolução, um golpe... Alguns músicos colocam um enorme metrônomo no lugar do regente, a automação da arte, a minimização do homem... Outros protestam contra qualquer tipo de disciplina. A morte do encanto da música, a subestimação do dom, o andamento impessoal dos marcadores de tempo...
Antigos copistas falam saudosos sobre os “áureos” antigos tempos de autoridade dos maestros e de decoro da orquestra. Tentam em vão resgatar a história enterrada nos túmulos construídos pelos novos tempos.
As paredes racham e parte da estrutura do prédio secular cai com o choque da bola de demolição. Opinião pública? O monastério está sendo demolido pela realidade externa, enquanto o interior de cada um se abre como uma ameaça.
Os músicos assustados voltam para os instrumentos. Submissos, colocam-se em forma na orquestra sobre o que restou. Entregam-se à música de forma sublime, enquanto a harpista solitária, atingida pelos escombros, é separada para sempre de seu instrumento, a gaiola dourada em que aprisionou os sonhos e abrigou as lembranças infantis. O maestro reassume a regência e o mesmo tom ditatorial durante a apresentação, esconde-se nos mesmos impropérios.
O filme encerra com as palavras do político italiano Alessandro Pertini: “Este filme pertence ao mundo inteiro, é uma parábola superior. Após o desastre cada um reencontrará a própria consciência. Não se trata de uma tomada de consciência forçada: o maestro se une aos músicos, não haverá reparação.”
O filme de Federico Fellini, contextualizado na Itália da década de 70, reabre um novo roteiro em meus pensamentos. A vida orquestrada, a dialética nas posições assumidas, a visão trágica e a utópica, a loucura coletiva, a lucidez tardia...
Perco-me nas ideologias como se estivesse tentando compreender o tempo do monastério centenário. As posições políticas, o terrorismo, o enfraquecimento dos movimentos sindicais e trabalhistas, o idealismo, as questões sociais ganham a dimensão infinita do que cada um pode ser dentro das suas possibilidades. A segurança de ser inteiro sob a ameaça de uma ruptura com a realidade ameaçadora do mundo exterior.
Será possível reencontrar a própria consciência após todas as tragédias que presenciamos? Ou será que, como a harpista, estaremos mortos para as gaiolas douradas que construímos na infância?