O Grande Circo Místico (Negro Refletor, Flores de Organdi)

Não sei se é saudosismo de minha parte, mas desde os primeiros dos meus quarenta e quatro anos imagino que o circo dos britânicos do início do século XX possui um encanto muito distinto dos circos de hoje em dia. Um encanto intenso, místico, profundo, que consegue mesclar um quê de infantilidade com um pavor indescritível no qual as maquiagens dos palhaços tornam-se máscaras disformes apavorantes e poéticas ao mesmo tempo. Uma impressão dúbia, multifacetada, na qual as piadas dos clowns são cômicas e tétricas, e os cavalos que trotam elegantemente ao som da valsa parecem flutuar em um sonho absurdo.

Quando qualquer circo chega à cidade, não me interesso de imediato. Mas em meu íntimo, sinto uma agitação ao ver os panfletos que anunciam os trapezistas, equilibristas e demais atrações do espetáculo. Talvez porque estes panfletos sejam semelhantes aos do início do século, ou por que eu saiba que foi de um panfleto desses que surgiu uma das músicas que marcaram minha infância e juventude – Being For The Benefit Of Mr. Kite!, dos Beatles.¹

Nunca tive o sonho, a ambição - ou seria pretensão? - de me sentir como um britânico médio assistindo a esse espetáculo surrealista. O que eu sempre quis foi assistir a este espetáculo sendo eu mesmo – brasileiro, desquitado, de classe média, morando sozinho com um cachorro e um peito cheio de lembranças felizes e tristes. O que eu queria era ver esse espetáculo em português, sonhar na minha língua. E enquanto refletia sobre o assunto, peguei-me mesclando essa admiração com minha outra paixão: a música.

Sempre fui um amante de música. Não de um estilo específico, não de uma filosofia específica, mas de música em geral. Ouço de tudo: músicas boas e ruins, músicas que me fazem rir ou chorar, músicas que arrepiam todos os meus pêlos e transmitem um frio gostoso pela espinha. Pensando bem, poucas coisas que realmente conheci na vida me causam tantas sensações quanto a música. A música é a droga que não mata e o sexo que não engravida por acidente. Não tem um lado negativo – é um portal às mais diversas sensações e sentimentos.

Imaginei uma síntese possível entre o circo surreal e a música, e o que me veio à mente em primeiro lugar foi a música dos Beatles. Porém, obviamente, Being For The Benefit Of Mr. Kite! não é cantada em português. Refleti e cogitei a possibilidade de uma obra que preenchesse meus requisitos e, decidido, iniciei uma busca intensa pelo meu Graal.

Minhas buscas por “circo” e “música” resultaram em diversas informações nada interessantes, como músicas circenses ou cantigas infantis. Porém, uma dessas cantigas chamou minha atenção, principalmente pelo nome de seus compositores. “Chico Buarque de Hollanda e Edu Lobo?”, pensei comigo mesmo. “Dois de meus artistas prediletos são co-compositores de uma cantiga infantil?”. Fui atrás da letra, e minha atenção se redobrou na parte que diz:

O padre também pode até ficar vermelho

Se o vento levanta a batina

Reparando bem, todo mundo tem pentelho

Só a bailarina que não tem

Sala sem mobília, goteira na vasilha

Problema na família, quem não tem?

Sorri ligeiramente ao término da leitura. Sempre me surpreendia ao entrar em contato pela primeira vez com alguma letra de Chico Buarque. “Cantiga infantil? Que tipo de cantiga infantil tem a palavra ‘pentelho’?”. Ao aprofundar a busca por informações sobre esta música, deparei-me com o nome do disco no qual ela estava contida e levei um susto. “O Grande Circo Místico”.

Sou um grande admirador de poesia, e por isso o nome soou extremamente familiar. Jorge de Lima, o grande poeta alagoano, escreveu um poema com o mesmo nome em 1938. O poema, belíssimo, segue assim:

O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps

Resolveu que seu filho também fosse médico,

Mas o rapaz, fazendo relações com a equilibrista Agnes,

Com ela se casou, fundando a dinastia Knieps

De que tanto se tem ocupado a imprensa.

Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,

De que nasceram Marie e Oto.

E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora

Que tinha no ventre um santo tatuado

A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre,

Quis entrar para um convento,

Mas Oto Frederico Knieps não atendeu

E Margarete continuou a dinastia do circo

De que tanto se tem ocupado a imprensa.

Então, Margarete tatuou o corpo

Sofrendo muito por amor de Deus,

Pois gravou em sua pele rósea

A via-sacra do Senhor dos Passos.

E nenhum tigre a ofendeu jamais;

E o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,

Quando ela andava nua pela jaula adentro,

Chorava como um recém-nascido.

Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,

Pois as gravuras sagradas afastavam

A pele dela o desejo dele.

Então, o boxeur Rudolf que era ateu

E era homem fera derrubou Margarete e a violou.

Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.

Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.

Mas o maior milagre são as suas virgindades

Em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;

São as suas levitações que a platéia pensa ser truque;

É a sua pureza em que ninguém acredita;

São as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;

Mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.

Marie e Helene se apresentam nuas,

Dançam no arame e deslocam de tal forma os membros

Que parece que os membros não são delas.

A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.

Marie e Helene se repartem todas,

Se distribuem pelos homens cínicos,

Mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.

E quando atiram os membros para a visão dos homens,

Atiram a alma para a visão de Deus.

Com a verdadeira história do Grande circo Knieps

Muito pouco se tem ocupado a imprensa.

Em meu íntimo sabia que uma parceria entre Edu Lobo e Chico Buarque baseada em um grande poema de Jorge de Lima resultaria em uma obra espetacular. Li a relação das músicas do álbum e logo notei que se tratava de um disco conceitual.

1. Abertura do Circo (instrumental)

2. Beatriz (Milton Nascimento)²

3. Valsa dos Clowns (Jane Duboc)

4. Opereta do Casamento (Coro)

5. A História de Lily Braun (Gal Costa)

6. Oremus (Coro)

7. Meu Namorado (Simone)

8. Ciranda da Bailarina (Coro Infantil)

9. Sobre Todas As Coisas (Gilberto Gil)

10. O Tatuador (instrumental)

11. A Bela e a Fera (Tim Maia)

12. O Circo Místico (Zizi Possi)

13. Na Carreira (Chico Buarque e Edu Lobo)

Fiquei perplexo. Como pude ficar alheio a um disco que, além de mesclar minha paixão pelo surrealismo circense com a música e literatura, apresentava tantos intérpretes brasileiros de qualidade? Como a existência deste disco é quase ignorada pela mídia especializada em música?

Procurar por uma cópia foi mera conseqüência. Entrei na maior loja de CDs da cidade e perguntei se havia alguma cópia disponível. Após uma longa espera enquanto o vendedor procurava no banco de dados, recebi a informação que eu mais temia. “A edição para CD deste álbum foi limitada, e não pode ser encontrada em lojas como a nossa. O senhor pode adquirir uma cópia do álbum apenas em sebos ou similares”. Ao ver minha expressão de decepção, o prestativo vendedor me deu uma lista de endereços com os melhores sebos da região.

Visitei um por um. A maioria era especializada em livros e ofereciam apenas os discos mais conhecidos de Chico Buarque, como Construção e a Ópera do Malandro. Ao perguntar pelo Grande Circo Místico, sempre recebia um olhar de curiosidade seguido por um “não”. Foi quando, no último sebo da lista dada pelo rapaz da loja, entrou pela porta um menino. Ele aparentava seus treze anos, era ligeiramente gordo, usava roupas largas, um boné e trazia nos braços um disco azul, com um cavalo branco desenhado na capa. Logo acima, lia-se O Grande Circo Místico escrito em forma de arco.

Fiquei petrificado. O disco que eu procurava tanto, com tanto desespero, entrou pela porta nos braços de um jovem. Não me contive e fui ao seu encontro. Indaguei ao jovem os motivos que o levavam a vender tal relíquia, e recebi uma resposta emocionada (e emocionante). Desde criança, ele ouvia o álbum com a mãe; porém, ela havia falecido dias antes, e ele queria desfazer-se destas músicas que traziam tantas saudades. E terminando de falar, estendeu seus braços e me ofereceu o disco, assim, de mãos beijadas. Sem reação, tentei agradecer, mas o garoto já havia saído da loja.

Fui para casa como se estivesse flutuando. Por mais triste que fosse o motivo que levou o álbum às minhas mãos, não podia deixar de estar extasiado com a oportunidade que se estendia diante de mim. O caminho entre a loja e minha casa foi reduzido a poucos passos.

Quando o disco começou a tocar, meu corpo se arrepiou. A Abertura do Circo era um canto extremamente triste, com vozes entoando à mesma seqüência de notas em tons diferentes, ora descendo meio tom, ora subindo meio tom. Algo semelhante a um coral religioso. E então, com uma mudança brusca, uma música circense entrou no lugar. O choro do coro foi substituído por uma fanfarra, e é possível imaginar palhaços dançando em roda e pessoas aplaudindo números de equilibristas. E o tema seguiu até o fim da música, de quase três minutos e meio.

Então, um piano extremamente calmo começou. O tempo lento e as harmonias suaves tornaram minha sala um sonho de criança. Então, a voz de Milton Nascimento canta as primeiras palavras da letra:

Olha, será que ela é moça?

Será que ela é triste?

Será que é o contrário?

Será que é pintura o rosto da atriz?

Se ela dança no sétimo céu

Se ela acredita que é outro país

E se ela só decora o seu papel

E se eu pudesse entrar na sua vida...

A maneira como ele as canta, com uma melancolia profunda e lírica, toca o fundo do meu coração. Imagino Beatriz interpretando uma peça extremamente triste, enquanto tenta se equilibrar no sétimo céu, em sua casa com paredes feitas de giz. Se Agnes fosse Beatriz no poema original, talvez o filho de Frederico Knieps tivesse se apaixonado mais ainda.

A letra aborda a vida da atriz de uma maneira extremamente poética. Deparo-me com um eu-lírico receoso em se envolver com uma atriz. Ele se pergunta se ela é alguém de fato ou se trata apenas de uma tela em branco, pronta para receber quaisquer papéis oferecidos. Além disso, reflete sobre a efemeridade do sucesso, quando pergunta “E se ela um dia despencar do céu”, ou seja, do topo da carreira.

Então, reparo um detalhe que evidencia ainda mais a genialidade dos compositores. Quando Milton canta a palavra “céu”, a música atinge sua nota mais aguda, mais alta. Em contraponto, quando Milton fala “chão”, a nota que a acompanha é a mais grave, a mais baixa da música.

O surrealismo que eu procurava nos circos britânicos ficou obscenamente explícito nesta música. No final, quando a letra diz “e se um arcanjo passar o chapéu”, não pude segurar um leve sorriso de satisfação, como se tudo o que eu estava procurando estivesse presente naquela frase.

Quando os cinco minutos de Beatriz terminam, um suave instrumento de sopro entra tocando notas livres, e logo dão lugar à doce voz de Jane Duboc. “Em toda canção o palhaço é um charlatão”. Ela canta docemente acompanhada por uma orquestra que produz um lençol sonoro delicado e suave. E quando reparo na letra, fico catatônico.

Abra o coração do palhaço da canção

Eis que salta outro farrapo humano e morre na coxia

Dentro do seu coração de pano

Um palhaço alegre se anuncia

(...)

Dentro dele sai mais um palhaço

Um palhaço com olhar caído

E esse charlatão vai cantar sua canção

Que comove toda a arquibancada com tanta agonia

Dentro dele um coração folgado

Cantarola uma outra melodia

Poucas pessoas vêem os palhaços como atores ou pessoas que representam de verdade. A maioria ignora que, apesar de muitas vezes fazerem brincadeiras infantis e sem qualquer profundidade, são pessoas com problemas iguais aos de qualquer outra que não estão atrás da maquiagem. E Chico mostra isso, mais uma vez, com uma letra que beira o surrealismo, mostrando palhaços que nascem dentro de corações de palhaços, com diferentes humores. No poema de Jorge de Lima, o clown será um dos responsáveis pela continuidade da dinastia Knieps ao se casar com a filha de Frederico e Agnes.

A música me toca profundamente, mas de uma maneira diferente da lírica Beatriz. Sinto algo extremamente melancólico, triste, que me remete diretamente a como eu imaginava ser as piadas dos clowns ingleses.

Quase de repente, uma pesada orquestração começa, com um ritmo acelerado. Imagino se não há uma manada de elefantes prestes a entrar pela porta de minha sala. E então, um coro começa a cantar uma letra sobre uma família extremamente conservadora, daquelas que exibiam o lençol manchado de sangue após a noite de núpcias.

Mas se houvesse algum embaraço

Dera a moça um mau passo

Quanto horror e desdém

Ela ia parar no convento, ia dormir ao relento

Ou deitar nos trilhos do trem

Do pudor da noiva a bandeira, após a noite primeira

Desfraldava-se ao sol

A sua virtude escarlate, igual brasão de tomate

Enobrecendo o lençol

E a letra segue sugerindo uma fraude de tal “mancha”. E uma súbita quebra de ritmo ocorre, quando dois cantores (um homem e uma mulher) cantam em harmonia, sobre um fundo sonoro suave:

Oh meu Pai, oh meu Pai, por favor,

Condenai o nosso amor de langor e luxúria

Mas poupai, oh meu Pai, nosso filho

Da fúria do Senhor!

O desenrolar da música é extremamente bem humorado. A supostamente “virgem” noiva tem seu filho logo no primeiro mês de casamento, e assim uma crise se instalou no seio da família exemplar e tudo se desestruturou. Mas a última frase da música, “Fé na flauta e pé na pista”, oferece uma mensagem otimista, uma motivação para sempre seguir em frente. Provavelmente a letra e o título são uma referência ao casamento de Oto e Lily Braun.

Dei uma gostosa gargalhada após o término da música. Lembrei-me de meu casamento e da preocupação de meu ex-sogro com a castidade de minha ex-mulher. “A moça é direita, viu? Pode tirar a prova”.

No meio de meu pensamento sobre a castidade de minha antiga esposa, um sensual saxofone tomou conta da sala. Começa um jazz e a voz de Gal Costa entra em um tom doce, perfumado. A música parece ter saído de algum compositor norte-americano da década de 30, mas não; quem a compôs foi Edu Lobo, em plena década de 80.

Conforme Gal ia cantando, mesclando inglês com português e falando sobre a vida de uma cantora de cabaré, fui notando uma semelhança com minha própria experiência matrimonial. Lembrei-me do quão diferente foi minha vida durante o namoro e o casamento. E logo após descrever o primeiro encontro entre ela e o futuro marido (Oto), canta:

Como amar esposa

Disse ele que agora só me amava como esposa

Não como star

Me amassou as rosas

Me queimou as fotos, me beijou no altar

Nunca mais romance

Nunca mais cinema, nunca mais drinque no dancing

Nunca mais cheese

Nunca uma espelunca

Uma rosa, nunca,

Nunca mais feliz

Realmente, eu conseguia contar nos dedos todas as vezes que, em sete anos de casado, levei minha mulher para jantar ou para fazermos algo divertido. Nós casados parecíamos um casal diferente de nós namorados. Senti-me nu diante da letra de Chico.

Depois do término da música, que parecia um musical da Broadway, um órgão toca um acorde e o mesmo canto tétrico que abre o disco começa a ser entoado. A mesma sensação de perda que o canto me passou na primeira audição se repetiu. Peguei o disco e li na contracapa que esta faixa se chamava “Oremus”. Realmente, aquela música facilmente poderia ser executada em uma igreja, durante alguma missa sobre a paixão de Cristo. O interessante foi notar que a faixa se prolonga por longos três minutos, sem grandes variações, apenas com a triste cadência sendo repetida. Deixei-me envolver completamente, e por esses três minutos eu fiquei triste.

Uma orquestração surge do silêncio deixado pela música anterior. A cantora é Simone, interpretando a bela “Meu Namorado”. Conforme a música se desenvolve, uma bela canção de amor é revelada. Não uma declaração, mas quase um agradecimento à pessoa amada.

Ele vai me iluminando

Não me iluminando um atalho sequer

Sei que ele vai me guiando

Guiando de mansinho pro caminho que eu quiser

Meu namorado, meu namorado

Minha morada é onde for morar você

A leveza da música combinada à voz grave de Simone resulta em uma combinação deliciosa aos ouvidos. A letra pode ser interpretada, também, como uma declaração de amor de Margarete (filha de Lily) para Deus. A ausência de exageros a torna uma das mais ponderadas canções de amor de Chico Buarque.

Toda a complexidade dos arranjos da música de Simone é substituída por alguns simples acordes de teclado. Então, diversas crianças começam a cantar a letra que eu havia lido antes de conseguir o disco, “Ciranda da Bailarina”.

Procurando bem

Todo mundo tem pereba

Marca de bexiga ou vacina

E tem piriri

Tem lombriga, tem ameba

Só a bailarina que não tem

O ar infantil da canção é encantador. Não encontro referência direta ao poema de Jorge, mas talvez a bailarina seja a própria Margarete ou alguma de suas filhas. E a música se desenvolve, e começa a estrofe que eu havia lido anteriormente.

O padre também pode até ficar vermelho

Se o vento levanta a batina

E logo quando eu esperava a parte mais divertida, a “parte do pentelho”, ouço exatamente isso:

Reparando bem, todo mundo tem

Só a bailarina que não tem

Fico sem palavras. Acho que minha expressão de decepção se assemelhou à de uma criança que espera um doce e ganha uma meia. Não podia acreditar que a censura havia mutilado a música dessa maneira (de uma forma muito semelhante, aliás, à quando retiraram a sífilis de Fado Tropical, também do Chico). A palavra foi simplesmente cortada, e os pentelhos foram aparados sem nenhum pudor.

O volume da música abaixou até ficar inaudível, e um violão entra em cena, juntamente com os falsetes de Gilberto Gil em “Sobre Todas As Coisas”. Os acordes dissonantes tocados com calma e liberdade servem de pano de fundo para uma das letras mais filosóficas do disco. Consigo enxergar Ludwig implorando à Margarete:

Pelo amor de Deus, não vê que isso é pecado?

Desprezar quem lhe quer bem

Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém

Abandonado pelo amor de Deus

(...)

Não, nosso Senhor

Não há de ter lançado em movimento Terra e Céu

Estrelas percorrendo o Firmamento em carrossel

Pra circular em torno ao Criador

Com um pensamento totalmente lógico, ele tenta convencê-la de que Deus não havia criado tudo o que criou apenas para que estes o louvassem eternamente. É uma música extremamente introspectiva e lírica, e a interpretação de Gilberto Gil me causa calafrios de tão profunda e bela.

Em seguida, começa “O Tatuador”. Com um ritmo constante e tranqüilo, guiado basicamente por cordas e oboé, a música é basicamente um interlúdio. É gostosa de ouvir, mas não me causou nenhuma sensação em particular. Certamente refere-se às tatuagens que Margarete fez no corpo.

E subitamente um baixo elétrico começa a tocar um riff extremamente truncado, com um compasso exótico. Logo ele é acompanhado por uma bateria e piano, e pela inconfundível voz de Tim Maia.

Não brilharia a estrela, oh bela

Sem noite por detrás

Sua beleza de gazela

Sob o meu corpo é mais

O título da canção é “A Bela e a Fera”, e logo compreendo os versos de Chico Buarque. A letra gira em torno da fera tentando convencer sua amada a amá-lo, mas de uma maneira oposta à de “Sobre Todas As Coisas”. Em certo ponto, Tim vocifera:

Recebe o teu poeta, oh bela

Abre o teu coração

Abre o teu coração

Ou eu arrombo a janela

Fico encantado com as diferentes abordagens que o mesmo compositor fez sobre o mesmo tema. Gilberto tenta convencê-la pela lógica; Tim Maia praticamente ameaça a amada com sua voz grave e palavras agressivas. Reproduz com perfeição o espírito de Rudolf, que se converteu após violar a religiosa Margarete.

É quando uma suave melodia começa, junto com uma fina chuva em minha janela. As primeiras notas de O Circo Místico soam doces, e a delicada voz de Zizi Possi começa uma poética reflexão sobre a vida (e sobre a história da dinastia Knieps).

Qual

Não sei se é nova ilusão

Se após o salto mortal

Existe outra encarnação

(...)

Negro refletor

Flores de organdi

E o grito do homem voador

Ao cair em si

A música por si só é reflexiva. A melodia tranqüila, pausada, soa como um pano de fundo para meditar, e interpretação de Zizi é impecável.

Então, inesperadamente, um ritmo acelerado começa, lembrando de leve a Opereta do Casamento. A melodia quase circense segue e os compositores do álbum, Chico Buarque e Edu Lobo, iniciam a despedida descrevendo a rotina de um circo que se muda de cidade para cidade.

Saltar, sair

Partir pé ante pé antes do povo despertar

Pular, zunir

Como um furtivo amante antes do dia clarear

Apagar as pistas de que um dia ali já foi feliz

Criar raiz e se arrancar

(...)

Voar, fugir

Como o rei dos ciganos quando junta os cobres seus

Chorar, ganir

Como o mais pobre dos pobres dos pobres dos plebeus

Ir deixando a pele em cada palco e não olhar pra trás

E nem jamais, jamais dizer

Adeus

E é assim que o disco termina: com a palavra Adeus sem dizê-la de fato. O suave riscar da agulha sobre o vinil parou e fiquei reflexivo. Chico deu um tratamento muito interessante às letras. A partir de detalhes pequenos, que mal são citados no poema, ele expande as fronteiras para algo mais universal (quase como Guimarães Rosa fazia com o sertão mineiro).

Guardei o disco com todo o cuidado do mundo. Nele não havia apenas um circo, mas músicas felizes, tristes, belas, engraçadas, enfim: não estava diante de um disco brasileiro, e sim de um disco universal.

Edu Lobo, Chico Buarque e Jorge de Lima transformaram minha vida em circo.

¹Being For The Benefit Of Mr. Kite! (The Beatles): Música do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado em 1967. Sua letra foi baseada em um cartaz de um circo inglês do fim do século XIX e cita, entre outras coisas, um cavalo que dança valsa e um malabarista que dá dez cambalhotas antes de cair no chão.

²Beatriz: Chico Buarque alterou o nome original (Agnes) para Beatriz, assim como sua função (equilibrista) para atriz. “Quando eu estava fazendo as letras para as músicas de Edu Lobo, no balé O grande circo místico, havia um tema para a equilibrista que eu não conseguia solucionar. No poema de Jorge de Lima, a equilibrista se chamava Agnes, que, aliás, é um belo nome, mas a letra não saía. Então troquei Agnes por Beatriz, transformei a equilibrista em atriz e coloquei-a no sétimo céu, em homenagem à Beatrice Portinari, de Dante. Beatriz carregando minhas obsessões..."