MAR DE DENTRO - LYA LUFT

“Sinto-me um pouco intrusa vasculhando minha infância. Não quero perturbar aquela menina no seu ofício de sonhar.”

Lya Luft

Navegamos no mar da autora. A primeira onda já nos conquista com a imagem da menina em seu ofício de sonhar. Não podemos perturbar os nossos sonhos íntimos nos ofícios cotidianos. O riso infantil sobrevive aos desencantos maduros e muitas vezes nos deixamos banhar pelo intenso “mar de dentro” e imergimos nos mistérios das primeiras histórias que alicerçam o presente.

Lya Luft ilumina a origem ao desvendar o interior da escritora madura, traduzida em lembranças e metáforas infantis no livro autobiográfico “Mar de dentro”.

A descoberta da morte no final de um vôo pássaro quando a criança ainda não conhece a dor da perda é o início da aventura instigante de plantar a vida nos solos férteis. A infância é o abrigo seguro para as tantas construções que empreendemos no decorrer da vida, é o céu possível para os almejados vôos...

Compreendemos o amadurecimento de Lya Luft na narração crescente de suas vivências inaugurais. O desbravamento dos segredos familiares, a grandeza da percepção infantil nos questionamentos da menina, as tantas dúvidas virginais... O enredo é intercalado com as percepções amadurecidas da autora.

“...nunca mais pertencer a nada com tamanha certeza.”

Descobertas narradas com rara beleza nos retratos da memória. A casa da infância, os cheiros, as músicas... cenários eternos que navegam em nossos encantamentos. A fragmentação do continente original em ilhas solitárias, perguntas sem respostas, sensações de porquês, sentimentos contraditórios e desconhecidos... Primeiros mares de ambigüidade... Primitivos mergulhos de convicções...

As palavras e os pensamentos são desvendados nas infantis explicações. A menina compreende que as pessoas ao seu redor também são preenchidas de palavras, pensamentos e silêncios. Um momento mágico do auto conhecimento navegando nas ondas alheias. “Foi uma das primeiras noções que tive do secreto e do sagrado de tudo que parecia tão simples ali próximo de mim. E do espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores.”

As alegorias desfilam nas matinês infantis. O universo da infância de sua mãe é presente num baú de antigos carnavais. A alegria da menina desvendo o tempo, se apropriando das máscaras e da meninice de sua ascendente... “Usar uma fantasia era viver atrás de biombos – era ser todas as possibilidades.”

A relação das crianças com os adultos, os estranhamentos, a necessidade de compreender os significados do mundo amadurecido, a descontinuidade de algumas ondas perdidas em espuma nas areias da incompreensão. “Depois silêncios, e o meu medo. Solidão ruim de estar à margem daquele novelo de segredos adultos, onde eu era amada, certamente – mas não iniciada.”

A autora confessa que retalhos de sua vida estão perdidos entre as ficções. Sua obra literária é o porto seguro para as memórias naufragas. A segurança do solo firme surgiu após quarenta anos no primeiro romance. “E só então eu descobriria: nasci para fazer isso. Tudo antes fora apenas um tatear no escuro, um pressentimento – um medo talvez.”

As ondas suaves de fantasias e descobertas no amadurecimento de um oceano exterior e infinito no abrigo do incomensurável mar de dentro... A autora encontrou as velas, costuradas de palavras, para se aventurar na viagem do tempo e preservar o ofício de sonhar da menina que flutua nas espumas presentes. Encerramos a leitura, içando as âncoras de nossa maturidade, deixando o vento nos levar aos continentes essenciais de nossas vidas...

“A cada um cabe inventar os significados, interpretar as charadas, preencher os silêncios.”

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 25/01/2005
Código do texto: T2389