IMAGENS DO INCONSCIENTE - DRA. NISE DA SILVEIRA

“O eletrochoque me desespera, apaga minha memória, entorpece meu pensamento e meu coração, faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca do seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele, que exige sua volta e no qual ele não pode mais entrar. Na última série, fiquei durante os meses de agosto e setembro na impossibilidade absoluta de trabalhar, de pensar e de me sentir ser...”

Carta escrita por Artaud ao seu psiquiatra em 1945

Nada se compara ao brilho da carreira da psiquiatra, servidora pública, Dra. Nise da Silveira, que inovou no tratamento da doença mental com determinação e coragem, contrariando as práticas enraizadas nas instituições existentes mantidas pelo Poder Público. Não se deixou engessar nos tratamentos estabelecidos como padrão e ousou investir em novas concepções de estudo do psiquismo do paciente e de sua inserção na realidade.

Em 1946, ao retornar ao trabalho no Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro (Rio de Janeiro), rebelou-se contra o tratamento vigente na terapêutica psiquiátrica, consistente na eletroconvulsoterapia, psicocirurgia (lobotomia), coma insulínico e uso contínuo de fortes psicotrópicos. Dedicou-se, com entusiasmo, ao início de uma nova fase da terapêutica ocupacional: um método em que os internos expressavam suas emoções com atividades verbais e não verbais e os sintomas encontravam oportunidade para se exteriorizarem no mundo, em um ambiente cordial, centrado num monitor sensível.

A pintura e a modelagem se destacam, dentre as atividades desenvolvidas, como ações que permitiam acesso ao mundo interno dos esquizofrênicos. Suas qualidades terapêuticas proporcionavam dar formas às emoções tumultuosas, despotencializar as figuras ameaçadoras e objetivavam o movimento em direção à consciência, como verdadeiros instrumentos de encontro com a ordem interna do enfermo.

Por esses dois motivos “compreensão do processo psicótico e valor terapêutico”, foi inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente em 20 de maio de 1952. Segundo Mario Pedrosa, o Museu “é mais do que um museu, pois se prolonga de interior adentro até dar num atelier onde artistas em potencial trabalham, criam, vivem e convivem”.

No livro “O mundo das imagens”, Dra. Nise relata o desenvolvimento do seu trabalho com estudos comparativos entre internos tratados com métodos diferentes; tece estudos comparativos entre a demência orgânica e a demência esquizofrênica; envolve-nos com a vida dos internos e os expressivos mundos interiores expostos em suas obras, e nos introduz num mundo de imagens com rituais, ações, arquétipos e símbolos.

Conhecemos cada um dos internos, conseguimos entender suas emoções com os relatos de suas vidas e da forma como ingressaram no hospital psiquiátrico. Percebemos o abandono de anos de internação e a impossibilidade de muitos encontrarem ainda portas abertas no mundo consciente.

Não foi só o trabalho no Museu da Imagem do Inconsciente que marcou a vida desta grande mulher. Ela participou da experiência piloto da Casa das Palmeiras, iniciada em 1956, destinada ao tratamento e à reabilitação dos egressos de estabelecimentos psiquiátricos.

Esta casa representou o entreato entre a rotina do sistema hospitalar e a vida em família e em sociedade. O principal tratamento aplicado era a terapêutica ocupacional e a Casa das Palmeiras cumpriu o objetivo de cortar o ciclo inexorável das internações e reinternações de seus freqüentadores.

Em 1992, ano em que foi publicado o livro “Imagens do Inconsciente”, Dra. Nise afirmou “Acreditamos que a experiência da Casa das Palmeiras comprova a necessidade e viabilidade de instituições em regime de externato. Poderiam ser criadas nos ambulatórios dos hospitais psiquiátricos federais e estaduais, em hospitais-dia, adaptando-os com decidido esforço às condições de nossa realidade. Assim, será de fato implantada uma nova política de saúde mental que virá evitar as onerosas e cruéis internações.”

Dra. Nise formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1926, com apenas 21 anos, e apresentou um trabalho sobre a criminalidade entre as mulheres baianas. Ingressou no serviço público em 1933, quando prestou concurso para médica psiquiatra da antiga Assistência a Psicopatias e Profilaxia mental. No período compreendido entre 1936 e 1944, foi afastada do serviço público por motivos políticos. Denunciada como comunista, foi presa na mesma ocasião da prisão de Graciliano Ramos.

Filha única de uma pianista e de um matemático demonstrou desde cedo ser independente e persistente em suas vontades, refletindo essa maneira de ser em toda sua vida profissional. Seguidora dos conceitos da psicologia junguiana tinha por Jung admiração e respeito, vendo-o como inspirador e mestre. Jung a estimulou a estudar mitologia e os arquétipos para aprofundar seu trabalho e veio ao Brasil conhecer o Museu da Imagem do Inconsciente.

Aposentada compulsoriamente na carreira de médica psiquiatra da Divisão Nacional de Saúde Mental por ter atingido os 70 anos, não deixou de exercer cargos no Museu da Imagem do Inconsciente e de participar da vida e da obra dos seus freqüentadores.

O acervo do Museu tem um valor incalculável e destacou grandes nomes no mundo das artes plásticas como Fernando Diniz, Emydio, Raphael e Carlos. Coleção de fama internacional que representa uma contribuição de grande importância para o estudo científico do processo psicótico.

“Foi observando-os e às imagens que configuravam, que aprendi a respeitá-los como pessoas, e desaprendi muito do que havia aprendido na psiquiatria tradicional. Minha escola foram esses ateliers.”, conclui Dra. Nise.

Diante do exemplo de grandeza, dedicação e profissionalismo da psiquiatra, pioneira na busca da cura das doenças mentais por intermédio da arte, só podemos esperar que outros profissionais abracem a causa da saúde mental com o amor e a coragem que ela dedicou e que a tratem como um serviço público prioritário, resgatando a dignidade da condição humana e a ética no desempenho das atividades profissionais.

Nise da Silveira não é apenas um exemplo, mas um mito a ser compreendido e analisado na elaboração dos projetos de vida e na construção dos sonhos.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 25/01/2005
Código do texto: T2387