UMA ROLHA NA LÁGRIMA - MARIA LINDGREN

“Mas a fantasia de organdi continuava a me esperar...”

Maria Lindgren

Uma rolha na lágrima. Por associação penso encontrar uma antiga garrafa escondida na areia com um papiro dobrado no interior e libertar o aroma e o sabor de um tinto vinho distante das praias globalizadas. Degustá-lo com suavidade e deixar que a magia das primaveras embriagadas fortaleça a lucidez para perceber a lágrima na aridez do cotidiano.

Aproveito o entardecer chuvoso no Rio de Janeiro para me aventurar na descoberta de “Uma rolha na lágrima” de Maria Lindgren (Editora Mondrian). Os contos e crônicas costuram tempos distantes dos “eus” fictícios e reais da menina exibida de Niterói e da mulher debruçada sobre as palavras na zona sul carioca. Na apresentação “Memórias Compulsórias”, a escritora afirma a intenção de desafiar o senso comum e mostrar com densidade as confissões de vida de uma mulher ousada e sincera: relatos de dor, encontros, ilusões e a constante redescoberta de si própria.

Uma viagem que seduz logo na origem e realça como é imprescindível sentir cada parte da trajetória. A cada conto nos transformamos em um novo ponto de partida e percebemos a intensidade das tantas travessias narradas. Reflexivos, incorporamos os retalhos dos imigrantes portugueses em busca do ideal do novo mundo, como também sentimos o envelhecimento das possibilidades no mundo contemporâneo marcado por injustiças sociais. Diferenças globalizadas após a queda dos tantos muros que ainda resguardavam a utopia.

O vinho do Porto e a mesa farta. Certamente, realidades ou fantasias que nunca abandonaram os sonhos da autora mesmo quando eram apenas lembranças dos áureos tempos do bazar do pai em Niterói. Conflitos familiares, pequenos objetos, antigas fotografias, poetas portugueses, religião, diários de viagens... Argumentos que universalizam sua obra e intercalam alegorias autênticas na fantasia de carnaval com o xale de franjas vestindo o fado. Os contos de Maria Lindgren alinhavam recordações e sonhos, alegria e nostalgia... Talvez o desvendamento da metáfora inicial do título.

“O Capacorna”. Cruzar a linha do Equador... “A viagem pelo mar, contada e decantada por minha mãe, sintetizava o meu desejo de aventuras românticas, perseguido e nunca vivido”. A narrativa teatralizada sobre a travessia dos recém-casados flutuando num mar a ser descoberto se transforma no ideal romântico a ser perseguido pela narradora. Adotamos o olhar de Maria Lindgren e observamos o navio surgir nas brumas dos nossos sonhos. “Talvez, um dia...”

Boêmios no frescor da idade, a alegria dos freqüentadores do Luna Bar do Leblon e a dissolução do grupo nas dobras dos tempos estão gravados no conto Marília-Marina. Percebemos a continuidade da vida e a impossibilidade de retornar às mesmas perspectivas. A autora abre um espelho e eis a personagem do passado com os cabelos crespos e os lábios vermelhos numa mesa de jovens embasbacados cercado por novos desconhecidos...

“Desmoronar” significa perceber as vivências com nostalgia, sentir dor ao percorrer os antigos olhares, mas se levantar com ímpeto. Sentimos a mudança. Gostaríamos de permanecer no apartamento aprazível do conto “Estranho par”, mas a autora novamente nos encoraja a guardar a nostalgia e acreditar no futuro. “Adeus, casa velha! Parto para construir uma novinha em folha. Tem que dar certo!” O livro encerra ao chegar em “A Santa Terrinha”, porto inaugural de José em Mouramorta, pequena aldeia de Portugal.

A beleza dos contos de Maria Lindgren está em cada palavra. A construção segura e poética que alicerça o vivido no papel e faz com que cada leitor perceba as imagens, ouça as músicas, compreenda os sentimentos desembrulhados e depois, com otimismo, possa elaborar as próprias vivências na trajetória de quem pode assumir plenamente a vida.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 24/01/2005
Código do texto: T2334