A SUSPEITA - FRIEDRICH DÜRRENMATT
“Nada é tão ruim quanto uma suspeita.”
Friedrich Dürrenmatt
Baerlach, comissário de polícia aposentado, recupera-se de uma intervenção cirúrgica. O mal está diagnosticado. Apenas uma sobrevida. Talvez um ano.
O protagonista folheia uma revista americana de 1945 e assusta-se com a frieza do médico nazista que se deixou fotografar enquanto operava um abdome sem anestesia. O paciente mostra a foto para o seu médico, Dr. Jungerlobel, e percebe o mal estar que o domina. O médico se surpreende com a semelhança do homem retratado com seu colega da faculdade de medicina, apesar da diferença de nome e da impossibilidade do mesmo estar na Alemanha na data legendada.
“Nada é tão difícil de afogar quanto uma suspeita, porque nada existe que volte à tona tão facilmente e com tanta freqüência.”
Novos indícios, lembranças da juventude confidenciadas pelo Dr. Jungerlobel, semelhanças de cicatrizes entre os médicos, registro de suicídio comum entre nazistas... O crime contra a humanidade gera no convalescente comissário a necessidade de desvendar o mistério. Surge um sobrevivente no breu da noite para dar seu testemunho: “...como sempre se acredita num milagre quando a miséria atinge o máximo”.
O comissário articula as técnicas de investigação. Necessita do ideal da justiça para continuar a própria luta contra a doença concentrada em seu corpo. No diálogo com o escritor, editor de um pequeno periódico, seu idealismo é iluminado na figura de D. Quixote:
“Mas um autêntico D. Quixote tem orgulho da sua armadura. A luta contra a estupidez e o egoísmo do homem foi sempre difícil e custosa, inseparável da pobreza e da humilhação, mas é uma luta sagrada, que deve ser levada avante com dignidade e sem lamúrias.”
O doente convence o médico a transferi-lo à Clínica para ricos em Zurique, de propriedade do médico suspeito, Dr. Emmenberger, para continuar suas investigações. Apesar de oficialmente o médico retratado, Dr. Nehle, ter se suicidado em agosto de 1945, o comissário permanece convicto de que tudo foi armado para encobrir o real autor das atrocidades nos campos de concentração nazistas.
Desde a chegada, a relação entre médico e paciente é traçada com insinuações e ameaças veladas. O próprio protagonista afirma o uso do medo nas respectivas profissões: “O senhor quer dominar-me para me curar e o medo é um dos meios que emprega. O mesmo se dá em minha diabólica profissão. Nossos métodos são os mesmos. Por enquanto só pelo medo posso agir contra quem procuro.”
As suspeitas se confirmam no diálogo com a Dra. Marlok, ex-prisioneira de um campo de concentração por ser comunista que se salvou ao se tornar amante do médico nazista. Seu pessimismo é radical e marca o distanciamento da jovem comunista da cúmplice de um torturador viciada em morfina.
“Eu abandonei toda esperança. É absurdo defender-se e entregar-se à luta por um mundo melhor. O próprio homem deseja seu inferno, prepara-o em seus pensamentos e o inicia com seus atos.”
O ambiente é medo. O comissário permanece refém das circunstâncias sem poder ir além do seu raquítico corpo. Um espelho no teto descobre a doença cruelmente. O médico surge e declara a sentença de morte do paciente. Algumas horas...
O niilismo do médico contrasta com o idealismo do comissário aposentado que insiste em condenar os responsáveis pelos crimes contra a humanidade: “É absurdo crer na matéria e num humanismo: só se pode crer na matéria e no eu. Não há justiça (como poderia a matéria ser justa?), só existe a liberdade, que não pode ser merecida, o que suporia uma justiça, que não pode ser outorgada (quem a outorgaria?), que, entretanto se deve assumir. A liberdade é a coragem do crime, pois ela própria é um crime.”
Sem anestesia! A envolvente narrativa da novela policial “A Suspeita” de Friedrich Dürrenmatt, com as espirais das suspeitas e o imprevisível desfecho, abre um corte profundo em nossa sensibilidade para a reflexão da moral e da ética na sociedade. Só há possibilidade de cura com a dor da percepção e com a busca do tratamento possível para nossos males.
Friedrich Dürrenmatt (1921/1990) nasceu na Suíça e se consagrou como dramaturgo e escritor do período pós-guerra. Autor da peça “A visita da velha senhora”, além de diversos textos teatrais e novelas policiais. Em toda a obra literária, a análise da ordem do mundo e a crítica ao senso de justiça e ao comportamento do homem são temas centrais.
Uma intervenção precisa em nossas emoções e valores. Sem anestesia...