OS RATOS - Dionélio Machado
O barulho de pequenas mandíbulas aumenta o tormento do protagonista Naziazeno. Os ratos roem os fragmentos do que lhe resta, talvez o menino tenha deixado uma migalha de pão na mesa ao lado do maço de notas. O pensamento espiral avança na noite de insônia: encontros, negativas, buscas, necessidade, jogo, fome, fracasso, cansaço, lembrança do semblante tristonho da mulher, dor no corpo, a doença do menino, o resultado do bicho, inaptidão, negativas, impotência... Até que nas cores esmaecidas do entardecer, o protagonista consegue o dinheiro para pagar a conta do leiteiro e retorna para casa.
O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução. Paliativos!
O livro “Os ratos”, do escritor gaúcho Dionélio Machado, inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato.
A mulher lamenta todos os cortes: a manteiga, sapato novo... Mas leite é fundamental para o desenvolvimento do filho de quatro anos já tão abatido pela doença.
Vinte e quatro horas... Naziazeno sai para o trabalho com a obrigação de trazer o dinheiro, observa os passageiros do bonde, tenta em vão esquecer do leite. Mas como? Os olhares dos vizinhos, a voz da esposa, o filho...
Naziazeno tenta pedir um empréstimo ao diretor da repartição, o que é negado na frente dos outros funcionários. Sai em busca dos amigos, não os encontra, joga os trocados no bicho e na roleta. A sorte não está ao seu lado. Continua pelas ruas, visita os agiotas, desvia dos credores... Carcomido pela fome e cansaço, escuta apenas negativas... Ao fim do dia, numa operação complicada com um anel penhorado, consegue o dinheiro emprestado do amigo Alcides.
Retorna para casa com dinheiro suficiente para pagar o leiteiro, tirar os sapatos da mulher do sapateiro, comprar um vinho, um pedaço de queijo e um pequeno mimo para o filho. Conta as notas e as moedas para o pagamento do fornecimento do leite e, novamente, percebemos a precariedade da situação econômica do protagonista.
Ele se deita na certeza de que o leiteiro encontrará o dinheiro de madrugada e tudo estará solucionado com a continuidade do fornecimento, mas toda a inquietação e a angústia que dominaram seu dia num corpo faminto e fraco, agora ganham força com a modesta refeição. Tenta dormir, fecha os olhos, fingi não perceber a luz amarelada ao lado da cama, reclama com a mulher que ronca, escuta os pequenos movimentos do filho, mas o pensamento costura seus passos, as imagens dos olhares reprovadores, a sensação de vergonha, inaptidão e impotência, a repartição, os funcionários e os vizinhos que o observam em cada negativa, testemunham a cristalização do seu fracasso e murmuram que ele não paga as contas.
Tudo retorna e as vivências são retalhadas numa intensa noite de insônia. O leitor se aprisiona na narrativa, torce para que o personagem relaxe na conquista do possível, mas também está preso demais às angústias presenciadas e à certeza de que é apenas mais um dia. E quantos dias?
O bonde passa de madrugada, a mulher ressona alto, o filho ensaia um choro... Não há relógio na casa de Naziazeno, porém as horas passam lentas enquanto ele não consegue se libertar de seu drama diário. O que poderia sonhar? Não consegue pensar em nada que não sejam os passos, as negativas, o diretor da repartição, sua inaptidão para conseguir uma renda extra, o azar no jogo, as contas que não pagou...
Observa o rosto gorducho e apático da esposa. Ela dorme...
Ouve pequenos ruídos de mandíbulas de ratos. São os ratos a devorar o que lhe resta. O dinheiro posto em cima da mesa, ao lado da panela do leite, deve estar sendo devorado pelos roedores. Tenta se levantar, mas a noite o prende à cama... Os ratos devoram o leite do filho, lembra-se do rapaz do bonde que almoçava leite, a mulher que reclama e diz que sem leite não pode ficar... O leite e os ratos, talvez uma migalha de pão...
O avançar das horas o aflige. Como pode não dormir e despertar para trabalhar? Será que não dormiu em algum lapso de pensamento? A mulher e o filho continuam dormindo...
Abruptamente, a porta da cozinha é aberta. Barulho de passos e de leite derramado com abundância. O leiteiro... Naziazeno adormece antes que a porta se feche.
O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores.
A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dionélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário.
Talvez neste momento incorporemos suas vivências nas lembranças de cada capítulo consumido. A ficção está eivada de realidade. O pensamento espiral nos consome nas tantas vinte e quatro horas que compõem nossas vidas.
O fornecimento de leite é apenas uma metáfora. O leitor, em cada pausa, poderá se confundir com a trama, lembrar do cheque especial, do resgate do penhor, da conta atrasada... Afinal, poderá compor também suas necessidades e, como Naziazeno, se perguntar qual sua aptidão. Questionar suas funções na repartição. Observar sua representação no mundo no olhar dos outros funcionários
Certamente, o livro “Os ratos” não é uma leitura recomendada para quem sofre de insônia, ou para quem administra o cotidiano no empate de seus rendimentos e dívidas.
Podemos ainda ouvir as mandíbulas dos vorazes ratos devorando nossos rendimentos: a pesada carga tributária, os aumentos constantes das taxas públicas e da gasolina, os juros do especial... Na esfera de uma noite insone, podemos remontar nossos passos, julgar nossas ações e nos culpar por algumas omissões e comodismos.
A viagem literária proporciona uma visão mais ampla da trajetória. O destino ainda é uma expectativa e é previdente que possamos analisar a viabilidade de novos rumos sem ficar presos às urgências diárias de nossas necessidades.
Dionélio Machado se destacou na segunda fase do modernismo na literatura brasileira, com uma prosa intimista ou de sondagem psicológica, com a abordagem da relação do “eu” com o contexto inserido. Além de escritor, Dionélio foi médico psiquiatra e conheceu as obscuridades do psiquismo dos indivíduos comuns, percebeu o limiar das possibilidades, medos e anseios e, numa narrativa original, envolveu-nos definitivamente na condição de seus leitores.
A leitura deste livro me foi recomendada pelo Walmor Marcellino (escritor, jornalista e grande amigo) que inclusive me emprestou um exemplar da obra, editado em 1940, moído pelos anos. Espero que a memória e a obra do escritor permaneçam imunes às mandíbulas da alienação e do esquecimento. “Os Ratos” ganhou o Prêmio Machado de Assis em 1933.