Centauro

UM HOMEM PELA METADE

A ficção é a maneira encontrada pelo homem

para viver tudo aquilo que a vida normal

não o permitiu.

Centauro é um dos seis contos publicados em 1978 no livro Objecto quase por José Saramago. O conto nos apresenta as últimas desventuras do último centauro. Não, o conto não narra a história do centauro. Narra os conflitos entre o cavalo e o homem – ou sua metade. O último centauro corre entre as fronteiras a procura do nada. Vivendo a angustia de não poder ser homem, tampouco cavalo, de ser centauro.

Saramago nos traz um mito sob um olhar diferente: o centauro é dócil, aflito e temeroso. Ele traça a evolução da história, a transformação do mundo sob seu olhar. O mundo que outrora fora de quimeras, centauros e unicornios foi transformando-se de modo a não deixar espaço para estes seres. Sendo ateu, o autor expoem o pensamento de que o cristianismo acabou por matar estes seres. Contudo, mesmo em meio as perseguições o último centauro permaneceu vivo.

“O cavalo parou”, assim é iniciado o conto. Mas de onde vem? De uma jornada de séculos e milênios. O cavalo é apenas um cavalo. Sente o que sente um cavalo, e até os desejos animais pode desfrutar. Pode correr por entre as silvas e cobrir as éguas que o oferecem. Sente sede, sente sono e sonha. Não sonha como os outros de sua espécie, embora as patas finjam galopar pelos campos dos sonhos do centauro. O dorso inferior e as patas são de um animal. O dorso superior e a cabeça não.

O homem não é um homem. É a metade de um. Não possui a parte que julgam fundamental para afirmar o gênero. Vê-se preso às patas equinas do animal e por isso sofre. Não pode satisfazer as desejos do corpo e da alma – se é que o centauro possui uma alma inteira de homem. Mas ele pensa como homem. Saramago nos apresenta um ser diferente do que encontramos na mitologia. Dócil, angustiado, aflito. Sentia medo dos outros homens. Andava às escuras, sempre com a proteção da noite – para se proteger dos outros, ou talvez, para fingir não enxergar quem era.

Metade do cavalo e metade do homem, formavam o centauro – inteiro. Embora a história pareça relatar a vida do centauro, sendo ele o protagonista, isto pouco acontece. Visto que, o cavalo ou o homem protagoniza as cenas. Com o tempo o homem aprendeu a lidar com os impulsos do animal. Domando-o com a força do cérebro, que controlava todo o centauro, e em outras vezes cedendo à sua impaciência. Simples coisas como beber água ou deitar na grama, exigiam do homem grande esforço.

Durante o conto, o autor faz inúmeras referencias ao sonho. Diz que o único momento em que se tornara centauro fora durante o sonho. Pois homem e cavalo faziam o sonho do centauro. Podiam não beber água, comer não precisavam, mas sonhar era necessário. Era preciso tornar-se centauro. Era um ser de sonho, de ficção. Não havia como sê-lo de outra maneira senão do sonho. Esta noção de ficção e realidade é duplicada por meio do sonho.

Em determinado trecho do conto, o homem se deixa levar pela vontade do cavalo, anda durante o dia iluminado pela luz do sol e é visto pelos homens. Quando atacado por um cão, o cavalo defende o centauro. Embora sinta o fervor na pele diante do confronto, o homem sente-se humilhado por não fazer parte.

Durante sua caminhada o centauro ultrapassa fronteiras dos países. Fronteiras estas que encaixam-se com fronteiras entre a realidade e a ficção. Como se ao caminhar descoberto, sem a proteção do luar, ultrapassasse sua própria fronteira – entre seus medos. Como se ao ser visto e perseguido por homens e cães, passasse a ser centauro novamente, e ultrapassasse a fronteira da morte. Pois sendo visto voltara a viver.

Em uma de suas caminhadas durante o dia, o centauro vê uma mulher emergir das águas de um rio. E encanta-se por ela de tal modo que, em um impulso animal, a toma nos braços levando-a consigo para longe. Mas diferente do que pensa, a mulher sente-se ainda mais encantada em saber que o ser que permeava seus sonhos realmente existia. Ela pede que ele a cubra, mas ele não pode. O homem não pode. Então, o centauro sai em dispara, angustiado ainda mais por não conseguir ser por completo um homem.

Todos souberam da existência do centauro. Os homens puseram-se a caçá-lo como a um monstro. Estando em um precípio de onde via o mar foi atacado pelos homens. Homem e cavalo lutaram juntos defendo o centauro. Todavia, faltando-lhe apoio nas patas, apoiou-se no vazio e caiu. Uma pedra polida por anos a fio partiu o centauro, separando homem e cavalo. O homem, enfim era somente homem - ou metade de um.

O fim do conto parece trágico, mas não é. Pois não há como existir um mito se este vivo estiver. A morte fez-se necessária. Pois sem ela, o centauro deixaria de ser um mito naquela região. O desejo foi realizado. A metade do homem separada do animal, o fez um homem por completo.